POV ENRICA
Aproveitei o momento para agir. A luz tremulante da lareira iluminava os ferimentos abertos em seu pelo negro, o sangue escorrendo em filetes espessos. Precisava cuidar disso antes que a infecção fizesse seu trabalho.
Peguei minha caixa de primeiros socorros, os dedos ágeis trabalhando com a familiaridade de anos lidando com agulhas e tecidos. Não era muito diferente.
Ajoelhei-me ao lado dele e passei os dedos com cuidado sobre sua pele quente, identificando as flechas alojadas em seu corpo. Ambas exigiriam precisão para serem removidas sem causar mais danos.
Respirei fundo e agarrei a haste da flecha do ombro, sentindo a rigidez da madeira sob meus dedos.
— Isso vai doer…
Ele dormia, mas sua respiração se alterou quando comecei a puxar. O som da carne se rasgando sob a pressão da retirada me fez prender o ar, mas continuei. Um último puxão, e a flecha deslizou para fora, trazendo consigo um fluxo quente de sangue.
Imediatamente pressionei um pano limpo contra o ferimento. O lobo se mexeu, soltando um rosnado baixo, mas não acordou. Continuei, removendo a segunda flecha com a mesma precisão e, com mãos firmes, limpei cada ferida. O cheiro metálico do sangue misturava-se ao aroma amadeirado da cabana, impregnando o ar com um peso difícil de ignorar.
Após desinfetar os ferimentos, enfaixei-os com tiras de pano limpas, amarrando-as com destreza. Minha vida como costureira me ensinara mais do que bordados e bainhas. Havia algo de tranquilizador no ato de remendar algo partido, mesmo que esse algo fosse um ser vivo de presas afiadas.
Quando terminei, afastei-me um pouco, observando meu trabalho. O lobo negro respirava fundo, sua forma colossal relaxada diante do fogo. Meu olhar deslizou pelo seu corpo poderoso, agora vulnerável, e uma estranha sensação se enraizou em meu peito.
Ele parecia… mais humano assim.
Sacudi a cabeça, afastando pensamentos insensatos. Eu estava exausta, e o medo do que aconteceu lá fora ainda pulsava em minhas veias.
O calor da lareira lançava sombras oscilantes pela cabana, preenchendo o espaço com uma atmosfera morna e reconfortante. O lobo negro respirava de forma pausada, mas seus músculos ainda carregavam a tensão de quem desconhecia o verdadeiro descanso.
Meus olhos correram pelo corpo dele, analisando cada detalhe com atenção. A ferida do ombro já não sangrava tanto, e sua respiração parecia mais controlada. Ele estava melhor. Pelo menos, fisicamente.
Ajoelhei-me para recolher os panos manchados de sangue, cuidando para não fazer barulho. Foi quando senti o peso do olhar sobre mim.
Ergui os olhos e encontrei os dele. Um vermelho profundo e atento, brilhando sob a luz vacilante do fogo. Não havia ameaça ali, apenas uma curiosidade cautelosa.
— Você está se recuperando. — murmurei, sem esperar resposta.
Ele apenas piscou devagar, como se processasse minha presença. Depois, fechou os olhos novamente, permitindo-se afundar outra vez no sono.
Suspirei, aliviada. O fato de ele ter despertado, ainda que por breves segundos, indicava que não estava tão fraco quanto antes.
Continuei a organizar os suprimentos, tentando ignorar a sensação de estar sendo observada, mesmo que seu olhar já não estivesse sobre mim. Foi então que, ao afastar um dos panos, algo frio e metálico roçou contra meus dedos.
Franzi o cenho e segurei o objeto, erguendo-o para examiná-lo sob a luz do fogo. Era um pingente, preso a uma corrente de prata. O rubi e o ônix incrustados nele cintilavam com um brilho quase hipnótico. Mas foi o brasão gravado no metal que fez meu estômago se revirar.
Uma coroa de espinhos dourada entrelaçada com um sol negro e asas de ferro.
Engoli em seco.
Eu conhecia aquele símbolo. Era do Reino Vartheos.
Minhas mãos apertaram o pingente, o coração disparando. O que um lobo como aquele fazia com algo tão precioso? A única explicação lógica era a pior de todas.
Ele era um animal de guerra. Ou, pior… um pet real.
Meus olhos voltaram-se para a criatura adormecida. Sua respiração serena contrastava com a onda de inquietação que agora tomava conta de mim.
Se ele pertencia à realeza… Alguém viria atrás dele. E eu estava condenada.
***
POV CALEB
A escuridão sempre foi minha aliada. Nela, eu caçava, matava e sobrevivia. Mas agora, ela parecia diferente. Densa. Sufocante. Como se tentasse me arrastar para um vazio do qual eu não poderia escapar.
Então, algo cortou a escuridão.
Um cheiro. Doce, quente. Nada como o sangue ou a terra molhada que eu estava acostumado. Era reconfortante, mas, ao mesmo tempo, errado. Um erro que me fazia querer me afundar nele.
Meu corpo protestou ao mínimo movimento, a dor queimando por cada fibra dos meus músculos. Mas o cheiro persistia, se infiltrando em minha mente, me puxando para longe da inconsciência.
Meus olhos se abriram.
A visão ainda estava turva, mas clara o suficiente para perceber que eu não estava mais na floresta. O calor envolvia meu corpo, uma luz branda tremulava nas sombras. Pisquei algumas vezes, tentando me situar.
E então, eu a vi. Os olhos verdes.
Os mesmos que me fitaram antes da escuridão me consumir. Agora, estavam ali de novo. Observando. Medindo. Seu olhar era intenso, cheio de algo que eu não sabia nomear.
Por que ela ainda estava aqui?
Minha mente começou a encaixar os fragmentos de lembranças. Neve. Sangue. Uma voz sussurrando promessas de que eu estaria seguro.
O toque de mãos humanas. O toque dela.
Meus instintos gritaram para que eu reagisse, que me movesse, que tomasse controle da situação. Mas eu apenas permaneci ali, a observando.
Ela se movia pelo cômodo com uma calma absurda. Como se eu não fosse uma fera ferida capaz de matá-la em segundos.
Cada passo dela parecia ecoar dentro de mim de uma maneira estranha, desconfortável. Eu nunca me importei com presenças antes. Mas agora…
O que era essa sensação? Por que minha mente se fixava nela?
A vigiei silenciosamente, analisando cada traço, cada expressão. Seu rosto demonstrava cansaço, mas ela não parecia hesitar em continuar. Por quê? O que a fazia cuidar de algo como eu? Não havia medo nela. Nem repulsa. Apenas aquela calma estranha que me confundia.
Mas logo algo dentro de mim se agitou. Um incômodo. Uma inquietação desconhecida.
Por que eu me importava com onde ela estava?
Meus sentidos se aguçaram quando sua presença desapareceu do cômodo. Minha respiração se tornou pesada. O cheiro dela ainda estava ali, mas seu calor, não.
POV CALEBUm rosnado baixo escapou de minha garganta. Meu corpo ainda estava fraco, mas a necessidade de encontrá-la se sobrepôs à dor. Me obriguei a me mover. Cada músculo queimava. Meu peito protestou, minhas pernas tremeram.Mas eu não poderia simplesmente ficar ali.O piso rangeu sob meu peso quando consegui me erguer. Minha cabeça girou. Meu focinho captou um rastro fraco, e eu já estava pronto para segui-lo quando…A porta se abriu. Lá estava ela.Os cabelos ligeiramente desalinhados pelo vento frio. O olhar fixo em mim. O cheiro dela tomou o ar, afogando meus sentidos, preenchendo cada espaço vazio dentro de mim.Relaxei sem perceber. Ela voltou.— Eu trouxe frutas para você. — A voz dela era suave, mas hesitante. — Não tenho mais nada… Me desculpe.Ela se desculpava? Apenas a observei. Comida não era o que eu queria. Mas deixei que se aproximasse, sentando-se ao meu lado, oferecendo um pedaço da fruta.Seus dedos hesitaram antes de tocarem meu focinho. E quando finalmente tocar
POV CALEBO castelo surgiu no horizonte como uma sentinela silenciosa, um farol sombrio na vastidão gelada de Vartheos. As torres perfuravam o céu acinzentado, e as bandeiras negras tremulavam com o vento cortante, carregando o brasão do reino como um aviso.Eu deveria me sentir em casa. Mas não me sentia.Cada pedra, cada sombra naquele castelo deveria me ser familiar. Mas agora, parecia estranho. Como se eu fosse um estrangeiro em minha própria terra.O frio me recebeu como um golpe de lâmina quando pisei dentro dos portões. Meu corpo protestou contra a transformação, músculos enrijecidos queimando com a dor da mudança abrupta. Minha pele nua se arrepiou, e o vento cortante me lembrou de que eu ainda estava ferido, exausto e marcado pela batalha.Um dos guardas hesitou antes de retirar seu próprio manto e me estender, sem dizer uma palavra. Peguei a peça de roupa e a vesti rapidamente, cobrindo os cortes e hematomas que ainda latejavam. Meu corpo pulsava de dor, mas aparecer diante d
POV CALEB— Você quer que eu me case por obrigação? — minha voz saiu baixa, mas carregada de fúria contida. — Nenhuma fêmea real aceitaria um Alfa como eu.Amelia estreitou os olhos.— E por que não aceitaria?Soltei uma risada amarga.— Porque metade do reino me teme e a outra metade sussurra que eu sou um predador de ômegas. — Cruzei os braços, sentindo a irritação queimando dentro de mim. — Você sabe disso. Você sabe o que dizem sobre mim.— Rumores — Amelia rebateu, sua voz carregada de impaciência. — Palavras de covardes que falam demais e sabem de menos.— Mas que se espalham como veneno. — Passei a mão pelo rosto, exausto. — Você acha que alguma família real me entregaria uma de suas filhas para ser minha Luna, sabendo o que sussurram pelos corredores? Sabendo que eu perdi o controle mais vezes do que deveria?Minha mãe me estudou em silêncio por um longo momento antes de soltar um suspiro cansado.— Vá descansar, Caleb. — Sua voz perdeu um pouco da rigidez, embora sua expressão
POV CALEBMeus deveres como príncipe exigiam minha atenção, e eu tentava, com todas as forças, me convencer de que nada havia mudado. Mas era mentira. Os salões do castelo fervilhavam com a movimentação costumeira, conselheiros discutindo alianças, soldados marchando pelos corredores de pedra, ecos de ordens e estratégias que deveriam ser minha prioridade. Mas não eram. Minha mente estava em outro lugar. Com ela.A lembrança de seu cheiro ainda pairava ao meu redor, insistente como um veneno que não podia ser expelido. O vazio deixado por sua ausência se espalhava dentro de mim como uma ferida aberta. Eu não deveria sentir isso. Eu odiava sentir isso.— Você está estranho, Caleb. — Samuel quebrou o silêncio ao meu lado, cruzando os braços enquanto me analisava com o olhar atento. — Desaparece por quatro dias, volta cheio de ferimentos e agora age como se estivesse possuído. O que diabos aconteceu?— Foi um vacilo — murmurei, sem vontade de prolongar o assunto. — Vacilo? — Oli
POV CALEBQuando alcancei a floresta, me afastei o suficiente para que ninguém me visse e deixei minha forma real tomar o controle. A dor veio primeiro — ossos estalando, músculos se expandindo, pele ardendo no processo brutal de transição, o pelo negro de minha forma lupina. O mundo se tornou mais instintivo, mais afiado. Cada som e cheiro se intensificaram, e entre todos eles, um me puxava para frente. O dela.Corri pela neve, cortando a escuridão da noite com velocidade brutal. Meu corpo se movia sozinho, guiado por algo que eu não compreendia, mas não ousava desafiar.E então, a cabana apareceu diante de mim. O cheiro dela ainda estava ali, mas algo estava errado.Minha respiração desacelerou, captando o gosto da angústia impregnado no ar. Um rosnado baixo escapou da minha garganta, minha pele formigando com uma fúria surda. Ela estava sofrendo. E eu não sabia por quê.Aproximei-me com cautela, ocultando-me entre as sombras das árvores. Meus olhos captaram a luz fraca tremeluzindo
POV CALEBA respiração dela estava baixa, ritmada, como se o peso de suas próprias palavras ainda estivesse se acomodando dentro dela. Enrica não percebeu o impacto do que dissera, mas eu senti cada sílaba reverberando no fundo do meu peito.Ela estava sozinha. E isso me incomodava mais do que eu queria admitir.Seus dedos ainda estavam sobre minha pelagem, quentes, hesitantes, mas sem recuar. Seu cheiro oscilava entre incerteza e um alívio que me aquecia de uma forma inexplicável. Mas havia algo mais ali, escondido sob as camadas de controle que ela tentava manter. Um vazio.— Às vezes, acho que me acostumei com isso — ela continuou, sua voz um sussurro para si mesma. — Mas noites como essa me lembram que não.A forma como seu corpo se curvava levemente, como se estivesse acostumada a se manter pequena, invisível, me fez rosnar baixo. O som reverberou no fundo da minha garganta. Não era uma ameaça, mas carregava algo primitivo, algo que nem eu conseguia nomear.Ela estava tão acostuma
POV CALEBAvancei um pouco, mantendo meus movimentos lentos, cuidadosos. Eu queria que ela entendesse que eu não era uma ameaça. Que nunca seria. Meus olhos se fixaram nos dela, minha respiração quente escapando em baforadas suaves na pouca distância que nos separava.Ela estendeu a mão, hesitante, seus lábios se entreabrindo como se quisesse dizer algo, mas se conteve. Suas pupilas dilataram, o coração acelerado bombeando sua essência pelo ar. Meu lobo rugiu em satisfação silenciosa. Ela sentia a conexão, mesmo sem entender o que era.E então, seus dedos tocaram algo inesperado. Meu pingente.Passou o polegar devagar sobre os símbolos cravados na joia. Meus músculos tensionaram no mesmo instante. O olhar dela se fixou na peça de metal, e sua expressão mudou. Curiosidade, surpresa… suspeita.— O que é isso? — murmurou, passando o polegar lentamente sobre o brasão de Vartheos gravado na joia. — Você pertence ao castelo?O simples som daquela pergunta fez algo em mim se incendiar. Meu pe
POV ENRICA— Ah! — soltei um riso surpreso, olhando para ele. — Então era isso? Você só queria brincar? O grande lobo negro ficou sobre mim, as patas firmes ao lado do meu corpo, o olhar fixo no meu. O peito dele subia e descia devagar, e por um momento, achei que ele ficaria assim, apenas me analisando. E então uma língua quente deslizou pela minha bochecha, longa e molhada, me fazendo soltar outro riso. — Ei! — protestei entre gargalhadas, tentando me afastar, mas ele não parou. O lobo continuou, lambendo meu pescoço, depois meu ombro, roçando o focinho contra minha pele exposta. Seu calor era intenso, e cada toque da língua dele enviava cócegas por todo o meu corpo. — Você realmente gosta de fazer isso, hein? — brinquei, entre risos, tentando revidar ao passar a mão pelo pelo espesso dele. Meus dedos se afundaram na pelagem negra, e o senti se contrair levemente antes de relaxar contra mim. Mas então, como se um estalo passasse por ele, o lobo parou. Seus músculos fica