2: Sob o Olhar do Lobo

POV ENRICA

Aproveitei o momento para agir. A luz tremulante da lareira iluminava os ferimentos abertos em seu pelo negro, o sangue escorrendo em filetes espessos. Precisava cuidar disso antes que a infecção fizesse seu trabalho.

Peguei minha caixa de primeiros socorros, os dedos ágeis trabalhando com a familiaridade de anos lidando com agulhas e tecidos. Não era muito diferente.

Ajoelhei-me ao lado dele e passei os dedos com cuidado sobre sua pele quente, identificando as flechas alojadas em seu corpo. Ambas exigiriam precisão para serem removidas sem causar mais danos.

Respirei fundo e agarrei a haste da flecha do ombro, sentindo a rigidez da madeira sob meus dedos.

— Isso vai doer…

Ele dormia, mas sua respiração se alterou quando comecei a puxar. O som da carne se rasgando sob a pressão da retirada me fez prender o ar, mas continuei. Um último puxão, e a flecha deslizou para fora, trazendo consigo um fluxo quente de sangue.

Imediatamente pressionei um pano limpo contra o ferimento. O lobo se mexeu, soltando um rosnado baixo, mas não acordou. Continuei, removendo a segunda flecha com a mesma precisão e, com mãos firmes, limpei cada ferida. O cheiro metálico do sangue misturava-se ao aroma amadeirado da cabana, impregnando o ar com um peso difícil de ignorar.

Após desinfetar os ferimentos, enfaixei-os com tiras de pano limpas, amarrando-as com destreza. Minha vida como costureira me ensinara mais do que bordados e bainhas. Havia algo de tranquilizador no ato de remendar algo partido, mesmo que esse algo fosse um ser vivo de presas afiadas.

Quando terminei, afastei-me um pouco, observando meu trabalho. O lobo negro respirava fundo, sua forma colossal relaxada diante do fogo. Meu olhar deslizou pelo seu corpo poderoso, agora vulnerável, e uma estranha sensação se enraizou em meu peito.

Ele parecia… mais humano assim.

Sacudi a cabeça, afastando pensamentos insensatos. Eu estava exausta, e o medo do que aconteceu lá fora ainda pulsava em minhas veias.

O calor da lareira lançava sombras oscilantes pela cabana, preenchendo o espaço com uma atmosfera morna e reconfortante. O lobo negro respirava de forma pausada, mas seus músculos ainda carregavam a tensão de quem desconhecia o verdadeiro descanso.

Meus olhos correram pelo corpo dele, analisando cada detalhe com atenção. A ferida do ombro já não sangrava tanto, e sua respiração parecia mais controlada. Ele estava melhor. Pelo menos, fisicamente. 

Ajoelhei-me para recolher os panos manchados de sangue, cuidando para não fazer barulho. Foi quando senti o peso do olhar sobre mim. 

Ergui os olhos e encontrei os dele. Um vermelho profundo e atento, brilhando sob a luz vacilante do fogo. Não havia ameaça ali, apenas uma curiosidade cautelosa. 

— Você está se recuperando. — murmurei, sem esperar resposta. 

Ele apenas piscou devagar, como se processasse minha presença. Depois, fechou os olhos novamente, permitindo-se afundar outra vez no sono. 

Suspirei, aliviada. O fato de ele ter despertado, ainda que por breves segundos, indicava que não estava tão fraco quanto antes. 

Continuei a organizar os suprimentos, tentando ignorar a sensação de estar sendo observada, mesmo que seu olhar já não estivesse sobre mim. Foi então que, ao afastar um dos panos, algo frio e metálico roçou contra meus dedos. 

Franzi o cenho e segurei o objeto, erguendo-o para examiná-lo sob a luz do fogo. Era um pingente, preso a uma corrente de prata. O rubi e o ônix incrustados nele cintilavam com um brilho quase hipnótico. Mas foi o brasão gravado no metal que fez meu estômago se revirar.

Uma coroa de espinhos dourada entrelaçada com um sol negro e asas de ferro.

Engoli em seco. 

Eu conhecia aquele símbolo. Era do Reino Vartheos. 

Minhas mãos apertaram o pingente, o coração disparando. O que um lobo como aquele fazia com algo tão precioso? A única explicação lógica era a pior de todas.

Ele era um animal de guerra. Ou, pior… um pet real.

Meus olhos voltaram-se para a criatura adormecida. Sua respiração serena contrastava com a onda de inquietação que agora tomava conta de mim.

Se ele pertencia à realeza… Alguém viria atrás dele. E eu estava condenada.

***

POV CALEB

A escuridão sempre foi minha aliada. Nela, eu caçava, matava e sobrevivia. Mas agora, ela parecia diferente. Densa. Sufocante. Como se tentasse me arrastar para um vazio do qual eu não poderia escapar.

Então, algo cortou a escuridão.

Um cheiro. Doce, quente. Nada como o sangue ou a terra molhada que eu estava acostumado. Era reconfortante, mas, ao mesmo tempo, errado. Um erro que me fazia querer me afundar nele.

Meu corpo protestou ao mínimo movimento, a dor queimando por cada fibra dos meus músculos. Mas o cheiro persistia, se infiltrando em minha mente, me puxando para longe da inconsciência.

Meus olhos se abriram.

A visão ainda estava turva, mas clara o suficiente para perceber que eu não estava mais na floresta. O calor envolvia meu corpo, uma luz branda tremulava nas sombras. Pisquei algumas vezes, tentando me situar.

E então, eu a vi. Os olhos verdes.

Os mesmos que me fitaram antes da escuridão me consumir. Agora, estavam ali de novo. Observando. Medindo. Seu olhar era intenso, cheio de algo que eu não sabia nomear.

Por que ela ainda estava aqui?

Minha mente começou a encaixar os fragmentos de lembranças. Neve. Sangue. Uma voz sussurrando promessas de que eu estaria seguro.

O toque de mãos humanas. O toque dela.

Meus instintos gritaram para que eu reagisse, que me movesse, que tomasse controle da situação. Mas eu apenas permaneci ali, a observando.

Ela se movia pelo cômodo com uma calma absurda. Como se eu não fosse uma fera ferida capaz de matá-la em segundos.

Cada passo dela parecia ecoar dentro de mim de uma maneira estranha, desconfortável. Eu nunca me importei com presenças antes. Mas agora…

O que era essa sensação? Por que minha mente se fixava nela?

A vigiei silenciosamente, analisando cada traço, cada expressão. Seu rosto demonstrava cansaço, mas ela não parecia hesitar em continuar. Por quê? O que a fazia cuidar de algo como eu? Não havia medo nela. Nem repulsa. Apenas aquela calma estranha que me confundia.

Mas logo algo dentro de mim se agitou. Um incômodo. Uma inquietação desconhecida.

Por que eu me importava com onde ela estava?

Meus sentidos se aguçaram quando sua presença desapareceu do cômodo. Minha respiração se tornou pesada. O cheiro dela ainda estava ali, mas seu calor, não.

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