ANO 1225, Cazorla, Andaluzia.
O sol ardia sobre os picos rochosos das montanhas, nas árvores das florestas e nas plantações de oliveiras que rodeavam Cazorla, uma vila em meio ao al- Andaluz, o sul da península ibérica.
Cercada por muralhas, as casas brancas e ruas de pedras estendiam-se ao lado de uma vertente escarpada. Acima delas, as torres e muros altos de um castelo destacavam-se na paisagem montanhosa.Com tantas defesas, este local isolado era deixado em paz, esquecido entre os ninhos das águias, enquanto exércitos cruzavam o vale abaixo. Cristãos e muçulmanos confrontavam-se em uma guerra que já durava uma centena de anos, alternando períodos de paz com os de confronto e conquistas.
Era uma manhã quente de verão.
Dois homens saiam dos portões do castelo rumo à praça da igreja, local de encontro dos moradores.
Um deles era um jovem de dezesseis anos, alto e de corpo forte apesar da pouca idade. Usava túnica e calças de couro como um caçador, mas trazia um anel de ouro nos dedos com o brasão da família; os cabelos compridos e castanho-claros chegavam aos ombros e orgulhosos olhos azuis destacavam-se no rosto de traços angulosos.
Como de costume, ele escutava os conselhos matinais do pai, Dom Diego, que caminhava ao seu lado, vestindo a túnica de seda bordada com brasões de um nobre.
– Aaron, um dia você herdará tudo isso – Dom Diego repetia mais uma vez. –Conheça cada um dos homens pelos quais será responsável, do mais simples ao mais poderoso, e os trate igualmente.
– Sim, senhor! – Aaron concordou com um sorriso brincalhão. – Prometo tratar a todos com justiça. Principalmente se tiverem filhas bonitas...
O pai parou em meio à rua e pousou a mão no ombro dele.
– Você deve ser um exemplo aos moradores e vassalos. Um dia não estarei mais aqui e todos precisam respeitá-lo! – advertiu-o com um olhar sério. – Deve tomar cuidado com as jovens que corteja...Aaron franziu as sobrancelhas e praguejou em silêncio. Algum borrachuelo cornudo[1] denunciara ao pai sua recente conquista: Estela, a filha de uma criada do castelo. Que llebase el diablo quien lo habia hablado, resmungou, amaldiçoando mentalmente o delator ao pedir que o diabo o carregasse.
No entanto, em voz alta, disse apenas:
– Serei respeitado! – procurou tranquilizá-lo. Tempos atrás teria respondido de maneira ríspida ao ser interpelado por seus casos amorosos passageiros. No entanto, os cabelos escuros do pai haviam se tornado grisalhos nas têmporas e rugas profundas que antes não existiam agora marcavam os olhos e o redor da boca. A transformação ocorrera nos últimos meses. Embora o pai não tocasse no assunto, todos desconfiavam de que não estava bem de saúde e por isso preocupava-se com sua descendência e os negócios de suas terras.
Erguendo um dedo para o alto para pontuar seu sermão, Dom Diego insistiu:
– O corpo é como um cavalo... Um bom cavaleiro deve saber domá-lo! Mestre Juan, nosso médico, disse que os jovens têm suas necessidades amorosas, mas a contenção, rebateu o padre Lorenzo, é uma virtude divina.
Ao escutá-lo, Aaron ergueu uma sobrancelha e sorriu de canto.
– E o senhor deu razão ao médico ou ao padre? – indagou curioso.
O pai deu de ombros.
– O vinho que bebemos enquanto conversávamos nos impediu de chegar a qualquer conclusão – admitiu por fim. – Teremos mais um debate esta noite, mas enquanto isso... – parou a frase ao meio e piscou um olho.
Os lábios de Aaron torceram-se em um meio sorriso. Apesar de todo aquele discurso, como de costume ele o protegia e fazia vista grossa aos seus pequenos pecados. Ambos se entendiam sem necessitar de muitas palavras. Aquela piscada queria dizer: “Enquanto isso... seja discreto.” Em resposta, assentiu e piscou um olho de volta: “vou ser discreto, finja que nada vê.”
Deixando escapar um suspiro resignado, Dom Diego apontou com o queixo para o lado. Mostrava uma jovem ruiva que subia a rua carregando um jarro de água sobre o ombro; a responsável pela breve discussão.
– Até mais! –Já esquecido da conversa, Aaron despediu-se com um aceno e correu para a garota.
❋❋❋
A manhã chegara ao fim, e o sol do meio do dia abrasava as ruas.
Aaron entrou na taberna, dando graças pelo ar fresco dentro dela e pela visão de uma grande jarra de cerveja sobre a mesa diante da qual seu pai sentava-se. Ele conversava com um homem gordo e de nariz rombudo; Ruan, o chefe da guilda dos comerciantes da região.
– Senõr Aaron! – O comerciante ergueu-se ao vê-lo aproximar-se.
Ele cumprimentou-o e deixou-se cair em uma cadeira ao lado do pai.
– Dia quente hoje! – reclamou, passando a manga da túnica na testa suada.
– Encontros furtivos com garotas deixam o dia ainda mais quente... – Dom Diego replicou em tom baixo.
E a seguir, voltou-se para o taberneiro: – Cerveja fresca para meu filho!O homem correu para atendê-lo. Rapidamente, uma grande caneca foi posta a frente de Aaron, que a esvaziou em goles ainda mais rápidos.
– Mais uma! – gritou, batendo a caneca na mesa com força. Depois virou-se para o mercador: – Quais novidades nos traz?
O homem sentara-se novamente e respondeu em um tom sério:
– O rei Fernando de Leão e Castela formou um exército e ataca as cidades árabes, reconquistando territórios para os cristãos.
– São boas notícias! – ele animou-se.
O mercador meneou a cabeça em negativa.
– Grupos de mercenários estão revidando e contra-atacando as vilas.
– Guerra! – Aaron se pôs de pé, entusiasmado. – Quando poderei juntar-me ao exército castelhano, pai? – perguntou com um olhar de ansiedade.
Dom Diego cerrou o cenho e fez sinal para que o filho se sentasse.
– Não gosto de guerra... – disse. – A convivência entre muçulmanos, judeus e cristãos foi relativamente pacífica por muito tempo. Cada um deve respeitar a crença religiosa do outro, pois na verdade rezamos para o mesmo Deus.
– Tenho amigos entre os árabes – acrescentou o mercador. – E guerras costumam prejudicar o comércio.
Aaron mal podia acreditar no que ouvia; franzindo a testa, protestou:
– Nas batalhas podemos provar nosso valor! E não aqui, cuidando de oliveiras e ovelhas... Quando poderei ir? – indagou novamente ao pai, pressionando-o.
– Você se tornará um guerreiro em alguns anos... – respondeu ele. – No entanto, antes deverá se casar e gerar descendentes.
O rosto de Aaron fechou-se. Aquele assunto o desagradava.
– Minha futura esposa está à léguas de distância e ainda não nos conhecemos.
– Mas ela logo estará aqui! Com estes rumores de guerra decidi apressar esta união. Talvez precisemos de aliados no futuro.
Aaron mordeu os lábios, irritado.
– Acabei de pedir Estela em casamento...
Os olhos do pai arregalaram-se, assim como os do mercador e os do taberneiro que acompanhavam a conversa. Dom Diego levantou-se com um pulo e bateu a mão na mesa. O barulho ecoou pelas paredes e todos os que se encontravam no local voltaram-se para ele, sobressaltados.
– Você fez o quê, cabron desbergonçado[2]? – ele vociferou, cerrando o cenho, furioso.
Aaron deu de ombros e enfrentou seu olhar.
– Você me ouviu!
Ao redor todos escutavam atentos, e Dom Diego quase arrependeu-se daquela discussão pública. No entanto, a vila era pequena o suficiente para que segredos não existissem; muitos já deviam saber sobre o apimentado romance do filho.
– Pois sua noiva logo chegará e não gostará de encontrar-se com Aaronzinhos circulando pelas ruas! – retrucou em tom firme.
Aaron baixou a cabeça, humilhado, segurando uma resposta atravessada. Felizmente, o pai pareceu compadecer-se dele; sentou-se de novo e bateu amigavelmente em seu braço.
– Beba, filho! Sua cerveja irá esquentar... Depois conversaremos – disse em tom mais cordial.
O mercador aproveitou o fim da discussão entre pai e filho para terminar seus negócios.
– Trarei o carregamento das espadas e armaduras de Toledo na próxima semana – apressou-se a confirmar a venda.
Ao ouvir isso, Aaron voltou a sorrir. Armas de Toledo! Mal podia acreditar em sua sorte. Que cristãos e muçulmanos continuassem a lutar por suas religiões, desde que ele pudesse participar da diversão.
– As espadas de Toledo são as melhores! – exclamou com entusiasmo.
– Meu filho tem um temperamento forte e impulsivo – Dom Diego interveio. – E entre o casamento e a guerra certamente prefere a última. Não é verdade, Aaron?
– Nada melhor do que uma batalha – ele concordou, ansioso para partir. – Heróis se fazem nas guerras!
❋❋❋
No fim da tarde pai e filho seguiam de volta ao castelo. O sol ainda brilhava forte, mas a brisa que soprava continuamente através da região montanhosa amenizava o calor. Pássaros voavam acima deles em rasantes alegres, inconscientes dos rumores de guerra e dos problemas logo abaixo.
– Você precisa gastar sua energia com os treinos de armas e não cortejando as mulheres da vila – Dom Diego voltou ao assunto.
A ideia da guerra e de novas armas de Toledo deixara Aaron de bom humor.
– Mamãe diz que o senhor era terrível quando tinha a minha idade. Como seu herdeiro, devo imitá-lo! – retrucou, soltando uma gargalhada.
Dom Diego finalmente sorriu.
–Não dê ouvido ao que ela diz... – brincou.
– Deveria deixar-me escolher minha noiva! – Aaron continuava a protestar.
Dom Diego parou diante do portão do castelo e voltou-se para ele.
– Sei que o contrato de noivado não o agrada, mas os tempos são outros agora – alertou-o. – Você ouviu sobre a guerra. Sua noiva trará um bom dote em dinheiro e com isso conseguiremos mais cavaleiros e soldados para fortificarmos a cidade.
Aaron também parou, fitando o pai com um olhar contrariado.
– Já estamos protegidos – ressaltou, apontando as muralhas do castelo que se erguiam diante deles e cercavam a vila.
Ignorando os protestos, Dom Diego voltou a caminhar. Deixando escapar um suspiro aborrecido, Aaron o seguiu.
Ambos cumprimentaram os guardas no portão e subiram pela rampa íngreme em direção ao pátio interno da fortaleza.
– E eu sou muito jovem... – Aaron insistia.
–Acalme-se! Você gostará dela... Ela será uma boa esposa.
– Mas e Estela? – ele indagou, aflito. – Não sei... Talvez a ame!
– Talvez? – Dom Diego ergueu as sobrancelhas e o fitou de canto.
– Talvez... Como posso saber o que é o amor?
O pai sorriu.
– Quando amar de verdade, saberá! – respondeu, notando a expressão confusa que marcava o rosto do filho. – Não se apresse!
Aaron baixou as pálpebras com um ar envergonhado. Passado o desejo, começava a se arrepender do pedido apressado.
– Mas e o pedido de casamento que acabei de fazer à Estela? Nós estávamos... você sabe... – hesitou, corando um pouco – entre abraços quentes, então eu me entusiasmei e...
– Inventaremos uma caçada – Dom Diego por fim decidiu. – Ela durará alguns dias e quando retornarmos sua garota estará esquecida da promessa.
– Obrigado, pai... – Aaron ergueu os olhos e respirou aliviado. Depois, virou-se e correu para dentro da ala principal do castelo, chamando pela mãe e pela irmã mais velha.
Dom Diego acompanhou-o com olhos preocupados; a seguir, virou-se e devagar subiu as escadas que levavam ao alto da muralha. Quando chegou ao término dos degraus íngremes já ofegava pela falta de ar e precisou sentar-se na amurada para recuperar o fôlego.
Dali podia avistar a cadeia de montanhas e o vale abaixo, coloridos em tons avermelhados pelos raios do sol baixando no horizonte. A beleza da paisagem o acalmava, enquanto refletia. Sabia que agira mal, resguardando o filho após aquele erro precipitado ao invés de deixá-lo resolver o caso com Estela por si próprio.
No entanto, ele lembrava-se de sua própria juventude e da expectativa alegre e impaciente pela aventura e pelo amor. Havia sido apaixonado pela vida e tivera um temperamento tão tempestuoso quanto o de Aaron; por isso não o criara com a firmeza necessária para corrigir sua alma turbulenta.
E agora era tarde para resolver tais erros…, concluiu, sabendo que não tinha muito tempo pela frente.
❋❋❋
Alguns dias depois, Aaron e o capitão da guarda treinavam no pátio. O calor do fim de tarde estava insuportável e o ar pesado como se uma tempestade se aproximasse, embora o céu estivesse claro e sem nuvens.
Erguendo a espada, Aaron desviou-se de mais um golpe desferido pelo capitão e investiu para cima dele com um ataque brutal. O outro aparou a lâmina e rodou o corpo.– Tranquilize-se! –
o capitão avisou-o, defendendo-se de outro golpe e revidando com uma finta. – Não gaste toda sua energia em um só golpe!Em resposta, Aaron recuou um passo, baixando a espada e a devolvendo à bainha presa ao cinto.
– Chega, Miguel! – exclamou. – Preciso de um banho gelado e uma cama macia.
O capitão também embainhou sua espada.
– Não terá nenhum dos dois em meio à batalha – retrucou.Subitamente, ambos ouviram um grito de alerta.
– Homens armados ao sul! – No alto de uma das torres, um soldado apontava para o horizonte.
Logo depois, Aaron e o capitão chegavam até ele. Os três estreitaram os olhos, procurando identificar quantos homens eram e se estavam apenas cruzando as terras ou dirigiam-se para lá. Uma nuvem de poeira cercava os invasores, levantada pelo galope dos cavalos.
No momento seguinte, alertado pelos soldados Dom Diego juntava-se a eles.
– Estão vindo em nossa direção? – perguntou ao capitão.
– Infelizmente sim... – Miguel respondeu com uma ruga de preocupação entre os olhos.
– E estão bem armados – acrescentou o soldado que dera o sinal.
– Quantos são?
– Perto de trinta – desta vez foi Aaron quem respondeu.
Dom Diego observou o bando que se tornava cada vez mais nítido.
Os homens usavam turbantes e montavam cavalos ágeis que cavalgavam com as caudas erguidas, contudo não traziam brasão ou bandeira para identificá-los. Mercenários mouros[3]. Soldados que vendiam seus serviços a quem pagasse mais, cristãos ou muçulmanos; a religião não importava, apenas o dinheiro.
– Fechem os portões da vila e leve seus homens para as muralhas externas – ordenou ele ao capitão. – Avise aos moradores para refugiarem-se dentro do castelo.
Miguel assentiu, e em seguida afastou-se acompanhado pelo soldado. Aaron ameaçou ir atrás deles, mas foi impedido pelo pai, que pousou a mão em seu ombro.
– Espere! – Dom Diego tinha a testa franzida e os olhos azuis como os de Aaron, sombreados. – Dias atrás você estava ansioso para ir à guerra, mas parece que ela veio até nós.
– Deixe-me ir... Eu quero lutar, pai! – ele esbravejou, pronto para partir. – O capitão diz que posso enfrentar uma batalha!
Ao invés de responder ao pedido, Dom Diego fez um sinal com a mão apontando os mercenários. Os atacantes acendiam tochas e as erguiam sobre as cabeças.
Um deles abaixara a tocha contra uma árvore seca; o fogo ardeu nos galhos e avançou para relva ao lado. Outros o imitavam, e logo o fogo espalhava-se através das plantações. Os camponeses tentavam fugir, mas os mercenários empunhavam arcos e disparavam flechas, abatendo-os.
– O que estão fazendo? – Aaron cerrou o cenho, nervoso.
Dom Diego tinha as mãos tensas, agarradas à amurada de pedra onde se debruçava.
– Atraindo-nos para fora... – respondeu. – A única chance deles nos vencerem é se deixarmos a segurança das muralhas. Jamais conseguirão tomar esta fortaleza se as defendermos daqui de dentro.
Aaron impacientava-se, sentindo-se impotente por assistir o massacre dos camponeses sem agir.
– Vamos ficar aqui sem lutar? – Os olhos dele fulminaram os do pai, ardendo de indignação.
– Por enquanto sim. Até que eu ordene o contrário! Junte-se à sua mãe e irmã. Elas se sentirão mais seguras com você ao lado delas.
– Me ordena guardar as mulheres enquanto sofremos um ataque? – Aaron rugiu, inconformado, voltando os olhos para os campos abaixo.
O fogo já devorava as plantações que cercavam a vila. Camponeses corriam desesperados entre os cavalos dos atacantes e continuavam a ser mortos por golpes de espada ou flechadas. De onde estavam não conseguiam ouvir os gritos, mas podiam imaginá-los.
– Deixe-me ir, pai! – ele implorou. – Liderarei os soldados e tenho certeza de que os venceremos!
– Aqueles são mercenários. – Mais uma vez, o pai meneou a cabeça, negando. – Soldados experientes, já participaram de incontáveis batalhas. Nossos homens estão treinados, mas há muito tempo não participam de uma luta de verdade. Quer que todos sejam mortos e sua família dizimada?
Aaron sentia o sangue ferver. Por fim, perdeu o controle.
– Covarde! – gritou, acusando-o. – De que adianta comprar armas se não nos deixa usá-las? Você jurou proteger seus servos e nada faz enquanto são mortos sob seus olhos!Dom Diego torceu o rosto como se tivesse sido esbofeteado. Os olhos dele detiveram-se nos olhos indignados do filho, e depois se voltaram aos mercenários e camponeses ao longe.
– Está bem! – enfim ele decidiu-se, esforçando-se para controlar a voz e não rebater à ofensa. – Você está certo! Devo lutar! Mas você ficará aqui dentro e cuidará da proteção do castelo.
A seguir, virando-se rapidamente, dirigiu-se às escadas da torre.
Já arrependido das palavras cruéis, Aaron correu atrás dele e interrompeu seus passos.
– Perdoe-me... – disse, segurando-o pelo braço. – Deixe-me lutar ao seu lado! Você está doente.
Dom Diego o encarou com olhos duros.
– Sim... Estou doente! E por isso mesmo não vou arriscar meu herdeiro contra um bando de mercenários.
– Por favor... – Aaron suplicou novamente, apertando o braço dele com mais força.
–
Obedeça-me, filho! Alguém precisa cuidar das defesas – Dom Diego ordenou, soltando o braço com um solavanco. A seguir, dando-lhe um último olhar de advertência, virou-se e correu para as escadas.❋❋❋
Protegidos dentro das muralhas que cercavam a vila e o castelo, Aaron e os soldados deixados sob suas ordens assistiram os mercenários investirem sobre os cavaleiros que saíram pelos portões para o contra-ataque. Após uma dura batalha, finalmente os defensores de Cazorla conseguiram expulsá-los.
Entretanto, Dom Diego retornara ferido por um golpe de espada forte o suficiente para perfurar a cota de malha entre uma fresta da armadura. Dias depois, cercado pela família, dava seu último suspiro.
Na beira do leito, Aaron assistiu a morte dele, tentando segurar as lágrimas, enquanto a angústia e a culpa o devastavam.– Ele estava certo... – sussurrou entre soluços contidos para a mãe, quando o enterraram. –
Jamais deveriam ter partido para o ataque! Bastava aguardar na proteção das muralhas e todos estaríamos bem agora. Mas eu insisti e...Ela pousou a mão nos cabelos dele, interrompendo-o. Perdera a conta de quantas vezes seu filho repetira aquela frase.
– Deus é o verdadeiro senhor de nossos destinos... – consolou-o. –
Seu pai contou-me que discutiram. Disse-me que você tinha razão, que a obrigação dele era proteger os camponeses. E ele morreu honradamente, em vez de definhar por meses no leito... – A voz dela era suave, repetindo a resposta dada nas outras vezes sem que Aaron, atormentado pela culpa, a ouvisse.Após alguns meses, a antes pacífica e próspera vila transformara-se em um local de desespero e morte. As colheitas tinham se queimado e muitos camponeses haviam sido mortos.
Moradores da vila e do castelo, e até mesmo Aaron, juntaram-se aos que sobraram, puxando os bois que traziam os arados e jogando novas sementes nas valas dos campos. Entretanto estavam no fim do verão e não houvera tempo para as plantações crescerem. O inverno viera e, com ele, a fome. E com a fome, doenças, que por fim terminaram por causar a morte da mãe e da irmã de Aaron, assim como a de muitos outros.
Com agora dezessete anos, o jovem herdeiro tornara-se o senhor do castelo e dava as ordens antes dadas pelos pais.
Seu futuro casamento foi suspenso. A ideia de juntar-se à Estela foi esquecida, assim como a própria garota. No coração dele não havia mais espaço para o amor, somente para o ódio e para o vazio que ameaçava dominá-lo, enquanto a culpa continuava a atormentá-lo. Quando se deitava no leito durante a noite, sempre sozinho, murmurava palavras de raiva e vingança ao invés de uma prece. E então, finalmente resolveu: lutaria contra os árabes como forma de pagar o que fizera, jurando que viveria apenas para vingar-se e morreria em meio à guerra.
E ao alvorecer de uma manhã de outono, deixando Miguel, o capitão, responsável por cuidar de suas terras, despediu-se e partiu, sabendo que jamais iria revê-las.
[1] bêbado cornudo em castelhano.
[2] rapaz desavergonhado.
[3] Os árabes, berberes, e seus descendentes eram chamados de mouros na Andaluzia medieval. Embora também possamos encontrar a denominação “árabe” generalizada para uma vasta população islâmica de diferentes origens. Utilizarei mouros ou árabes indiscriminadamente conforme minha inspiração.
Ano 1235, Arredores de CórdobaDistante algumas milhas das muralhas de Córdoba, dois exércitos confrontavam-se em colinas opostas sob o sol quente da manhã de verão.Na fileira da frente do exército cristão, vestindo uma armadura que lhe cobria o peito e parte das pernas e uma túnica vermelha sobre ela, Aaron observava os cavaleiros árabes que ocupavam o outro lado do campo. Os inimigos montavam cavalos ágeis e erguiam as espadas em ameaça, berrando brados ululantes de guerra.Ao examiná-los, os olhos azuis escuros de Aaron tornaram-se ainda mais sombrios e o rosto coberto parcialmente por um capacete contorceu-se de ódio. Há dez anos, desde que deixara suas terras, ele vivia para a g
Duzentos anos atrás, Córdoba havia sido uma das principais cidades dos califados árabes do Ocidente e uma das mais populosas do mundo.A grande mesquita na região central transformara-se em um local de peregrinação; palácios e jardins dominavam as ruas. Um aqueduto trazia água limpa e abundante para os banhos públicos, fontes, cascatas e lagos artificiais que a enfeitavam. Grandes filósofos haviam morado nela, atraídos pela enorme biblioteca, orgulho de um povo que prezava o conhecimento, a ciência e as artes. Quando a paz reinava, nobres árabes e europeus de diferentes religiões eram educados em suas escolas.Após a morte do grande chanceler que a governava, a disputa pelo poder trouxera uma inevitável decadência. Intrigas intermin&aacut
Layla estava parada ao lado de Ibn Russud, o médico, e da filha dele, Rebeca, e os observava atentamente.O médico usava o quipá dos judeus na cabeça cobrindo parte dos cabelos grisalhos e vestia uma túnica longa e escura. A filha, uma jovem bonita de cabelos morenos e lisos presos em um penteado simples, também usava um vestido escuro e sem adornos.Ambos haviam ajoelhado ao lado do cavaleiro que permanecia desacordado com o rosto pálido e a respiração entrecortada, e após limparem o ferimento dele com uma poção, suturavam as bordas da ferida. Depois de um tempo Ibn Russud levantou-se, enquanto a filha terminava o curativo com mãos hábeis.– Muitas vezes,
Aaron abriu as pálpebras com um gemido. A lateral do corpo e o ombro latejavam de dor e sua vista embaçava-se; o rosto queimava e a boca estava seca como se tivesse caminhado pelas areias do deserto.– Água... – esforçou-se para pronunciar a palavra.Alguém levantou sua cabeça e encostou a borda de um copo em seus lábios. Sedento, ele começou a beber com sofreguidão, e depois tossiu, meio engasgado.– Calma! – a voz de uma mulher disse. Uma voz que o fazia lembrar-se de tâmaras doces e verões encalorados.Ele piscou para dissipar a névoa que toldava sua visão e estreitou os olhos, desejando ver a dona da voz. Um par de olhos verdes o fitaram de perto e o fizeram pestanejar, indagando-se se ainda sonhava.
O peito de Aaron ardia, não somente com a dor da ferida, mas também com a dor de uma angústia quase mortal.Quando acordava, Layla estava ao seu lado; quando dormia, estava em seus sonhos. Sabia agora que ela não era uma cortesã como pensara de início, mas sim a senhora da casa, irmã do maldito lechuguino[1] que o havia capturado.A inimiga o en
Aaron acomodou-se nos travesseiros, tentando pensar em qualquer outra coisa. Ignorando o ardor que queimava seu peito, ele respirou fundo algumas vezes, esforçando-se para voltar a atenção ao local onde estava, um quarto grande de janelas amplas que se abriam para um jardim.Quando Layla ausentava-se, o tempo demorava a passar. Ele já decorara o número dos azulejos que enfeitavam a parede. O teto era desenhado em relevos de marfim e os móveis de madeira se pareciam com obras de arte. Ainda não se reencontrara com o irmão de Layla, mas este de certo era extremamente rico.Um rapazinho mimado, querendo mostrar aos amigos e ao emir que era um guerreiro. E com a sorte de um principiante, o lechuguino Com as mãos atrás das costas, Yasi andava de um lado ao outro diante das estantes repletas de livros na ampla biblioteca.Ele mordia os lábios e murmurava consigo mesmo com uma expressão preocupada. Após a morte dos pais, tornara-se o chefe da casa e responsável pelo bem estar de todos. Os inúmeros criados e homens de armas do palacete viviam em paz, os negócios herdados do pai – aluguéis de casas pelas principais cidades de al-Andalus e participação em pequenos comércios - continuavam a prosperar mesmo durante a guerra contra os castelhanos.Contudo, ele se descuidara da maior de suas obrigações, o futuro de Layla.Tanto o pai como ele já deveriam a ter casado, mas não o haviam feito porque a amavam demais e não queriam se afastar dela. E agora ele sofria as consequ&eRebeca
No quarto, Aaron tamborilava os dedos sobre o tampo da mesa, olhando para o alto com ar desanimado. Dias haviam passado e suas forças retornavam, mas agora era o tédio que o aborrecia.Como prometera, Yasi viera todas as manhãs ajudá-lo a caminhar, e ainda lhe trazia também notícias:– O rei Fernando e o emir continuam negociando. Seu rei quer tomar Córdoba de maneira pacífica e prometeu respeitar os cidadãos da cidade.– Ele colocará os nobres para governá-la e vocês irão pagar os impostos a eles ao invés de pagar ao emir – Aaron comentou.– Tudo continuará como antes, então?Aaron refletira. Não eram amigos, mas ao menos haviam passado a se respeitar. E Yasi era irmão de Layla, portanto, deveri