Aaron acomodou-se nos travesseiros, tentando pensar em qualquer outra coisa. Ignorando o ardor que queimava seu peito, ele respirou fundo algumas vezes, esforçando-se para voltar a atenção ao local onde estava, um quarto grande de janelas amplas que se abriam para um jardim.
Quando Layla ausentava-se, o tempo demorava a passar. Ele já decorara o número dos azulejos que enfeitavam a parede. O teto era desenhado em relevos de marfim e os móveis de madeira se pareciam com obras de arte. Ainda não se reencontrara com o irmão de Layla, mas este de certo era extremamente rico.
Um rapazinho mimado, querendo mostrar aos amigos e ao emir que era um guerreiro. E com a sorte de um principiante, o lechuguino[1] o vencera em combate… pensava com despeito, porque seu orgulho ferido não permitia que aceitasse a derrota.De súbito, como se seus pensamentos o tivessem conjurado, a porta do quarto se abriu com um estrondo, e seu captor surgiu através dela.
– Encontrei-me agora com Layla! – Yasi vociferou em tom furioso. – Minha irmã estava chorando! O que fez para magoá-la?
Ele encarou-o em silêncio, mantendo uma expressão indiferente no rosto. Por dentro, angustiava-se. Layla chorava por qual motivo? No entanto, retrucou em tom de desprezo, provocando o lechuguino atrevido:
– Não fiz nada... Apenas disse que o vencerei, se por acaso Deus me conceder a sorte de reencontrá-lo em combate.Yasi cerrou o cenho e ergueu o queixo em desafio.
– Insha'Allah! Que Allah nos permita.
Aaron aborrecia-se. O rapaz era mais jovem do que se lembrava. Não se conformava. Como um moleque pudera derrotá-lo?
– Não sabia que deixavam crianças participarem de batalhas... – resmungou, contrariado.
– Tenho dezoito anos... – Yasi replicou, empinando ainda mais o nariz e encarando-o com ar orgulhoso. – Para lutar não é preciso de força, apenas inteligência. É obvio que guerreiros selvagens como leões do deserto desenvolvem apenas os músculos, e não, a mente.
Aaron abriu e fechou a boca, mas ficou em silêncio. Dezoito anos..., resmungou para si.
Sua humilhação triplicava-se. Se os cavaleiros que comandava soubessem a idade do pirralho que o derrotara, as piadas seriam tantas que ele não poderia nunca mais voltar ao posto de capitão.Enquanto Aaron resmungava, Yasi observava o cavaleiro atentamente. Na maioria da vezes, as pessoas não diziam a verdade. Ou mentiam de propósito ou, ainda mais comum, mentiam a si mesmos; a verdade escondia-se sob as palavras. Aaron o encarava com um ar de desprezo e o provocava, mas os olhos dele ardiam, perturbados.
De súbito, compreendeu que o castelhano sentia-se humilhado pelo fato de ter sido vencido e agora ser um prisioneiro. Evitara vê-lo naquelas semanas, atormentado pela ideia de que ele havia sido o responsável pela morte do pai, entretanto, saber do contrário o deixava tão aliviado que até o colocava em uma disposição amistosa.
– O ódio jamais entrou nesta casa antes – afinal, Yasi resolveu apaziguá-lo ao invés de continuar brigando. – Não lhe farei mal. Quando estiver curado pedirei um resgate ao seu rei e o liberarei.
– Que se dane o rei! – Aaron rugiu. – E acha que estou com receio do que fará comigo? Pois não tenho nenhum!
Yasi continuava a refletir. Se o cavaleiro não se preocupava com o que aconteceria com ele, então mais alguma coisa o incomodava. Aproximou-se e sentou-se na cadeira ao lado da cama.
– Do que têm medo? – Estreitou os olhos, analisando-o com um ar sério.
Enfurecido, Aaron soergueu o corpo dos travesseiros.
– Medo? Está me chamando de covarde? – bradou, sentindo o sangue lhe subir à cabeça.
E, perdendo o controle, sem aviso, jogou-se em cima dele.
Yasi não estava preparado para o ataque, e Aaron, apesar de ainda abatido, era pesado. O corpo do cavaleiro caiu sobre ele como o tronco de uma árvore despencando; sua cadeira caiu para trás e os dois tombaram com um estrondo que ecoou pelas paredes do quarto.
Yasi soltou um grito de susto; Aaron, um rugido de raiva.
Em um piscar de olhos, um homem entrou no quarto com uma espada em punho, pulando por cima de Yasi e apontando a lâmina para a garganta de Aaron.
– Não se mova, patife! – vociferou, os olhos escuros brilhando com um ar assassino. Tinha uma barba aparada em ponta e um rosto fino e ameaçador.
– Pare, Youssef! – Yasi ergueu a mão e gritou, antes que seu mestre de armas matasse o prisioneiro.
Aaron continuava deitado no chão sob a mira da arma, ofegando de dor porque batera o tronco ferido ao cair.
– Mantém um guarda-costas atrás de você e eu é que sou covarde? – rosnou indignado, assim que conseguiu recuperar o fôlego. – Não sabe se defender sozinho?
– Não! Eu… – Yasi começou a se explicar enquanto se levantava, passando a mão na túnica para desamassá-la. Tinham acabado de treinar, e por isso ele e o mestre de armas estavam juntos ao encontrar Layla.
– Ele tem razão! – o mestre de armas interrompeu-o, voltando-se para Yasi com um olhar de reprovação. – Deixou-se pegar de surpresa... E por um inimigo ferido! – repreendeu-o, afastando a lâmina da garganta de Aaron.
Yasi abriu a boca para retrucar, no entanto Layla entrou no quarto com a velocidade do vento e parou de olhos arregalados ao ver a cena. O irmão e o mestre de armas rodeavam Aaron, caído ao chão com o rosto contraído em um esgar de dor.
Soltando uma exclamação sobressaltada, ela atirou-se na direção dele, protegendo-o com um braço e passando o outro por trás de seu corpo para ajudá-lo a soerguer-se.
– Graças a Allah ouvi o barulho! O que estão fazendo? – gritou ao irmão.
– Eu… – Yasi espalmou as mãos em defesa.
Ela o encarou com olhos irados.
– Não se ataca um homem ferido! Queriam torturá-lo?
Deixando escapar um suspiro, Youssef voltou a espada à bainha. Meneando a cabeça com uma expressão decepcionada, resmungou:
– Todos estes anos e não aprendeu nada do lhe ensinei! – disse a Yasi, e depois deu meia volta e saiu.
Yasi deixou escapar um suspiro de desânimo e virou-se para Layla e Aaron. Ela o ajudava a erguer-se, e o cavaleiro apoiava-se nos braços dela, os olhos voltados para o rosto da irmã com uma expressão de adoração como se ela fosse a pessoa mais importante da vida dele. E Layla lhe devolvia um olhar semelhante…
Subitamente, ele compreendeu a verdadeira causa da agitação de Aaron. Layla.
Ele mordeu os lábios, refletindo. Ela dissera que cuidaria do cavaleiro ferido porque prometera ao médico, mas a dedicação das últimas semanas seria somente por causa disto?
Por Salomão! Por Mohammed! E por Issa[2]!, bradou mentalmente uma lista dos profetas, esperando que qualquer um deles o ajudasse. E ajudasse a irmã, caso sua desconfiança fosse real.
Afinal, adiantou-se, ajoelhando-se ao lado de ambos, e auxiliou Layla a levar o castelhano selvagem novamente para a cama.
Acomodando-se sobre os travesseiros, parecendo mais calmo, Aaron voltou-se para Layla.
– Seu irmão não me atacou – disse. – Fui eu que pulei em cima dele.
Ainda assim, ela continuava aborrecida.
– Aposto que ele disse algo para provocá-lo!
– Não! – Yasi procurou defender-se. – Eu só falei que… – hesitou, coçando a cabeça e tentando se lembrar do início da confusão. – Na verdade, nem sei o que dizia, quando ele pulou em cima de mim como um leão!
Torcendo o nariz, Layla continuou a encará-lo com um ar desconfiado.
Por fim, Yasi decidiu que já fora humilhado o suficiente diante de um prisioneiro.
– Vou pedir para Hiram acompanhá-la quando estiver aqui – avisou-a, e dando meia volta, saiu apressado.
❋❋❋
Layla ergueu a cadeira do chão e sentou-se nela, examinando Aaron. As mechas de cabelos castanho-claros lhe cobriam parte do rosto, e ele olhava para as próprias mãos com um ar angustiado.
– Você está bem? – Ela desejava abraçá-lo e consolá-lo, mas sabia que de maneira nenhuma poderia fazer isto.
– Sim… – Aaron enfim voltou os olhos para ela.
Olhos azuis selvagens e fascinantes, Layla piscou, esforçando-se para sustentar o olhar dele, sentindo o coração doer sem motivo; permaneceu em silêncio, esperando que ele falasse.
Aaron torceu o rosto e, respirando fundo, por fim, disse:
– Mercenários árabes atacaram minhas terras e meu pai foi morto por eles. E por minha culpa! Eu era jovem e arrogante, e o instiguei a lutar para defender os camponeses...
Ele parecia triste e desamparado ao revelar aquilo; Layla ergueu-se da cadeira e sentou-se na beirada da cama.
– Ele partiu com honra, cumprindo seu dever, assim como meu próprio pai.
Aaron segurou a mão dela e a apertou entre as suas.
– Eu sempre me pergunto… – hesitou por um momento – porque Deus permitiu que eu permanecesse vivo ao invés de meu pai. Por dez anos, tudo o que fiz foi lutar e matar.
Layla sorriu.
– Allah deve saber o que está fazendo!
Aaron não conseguia sorrir de volta. Soltou a mão dela e suspirou, voltando o rosto para o lado.
Continuar a olhá-la era impossível; ele perderia a cabeça e a tomaria em seus braços. Já estava forte o suficiente para isso e, talvez, para algumas coisas mais… Fechou os olhos, tentando ignorar o perfume suave dela.
– Allah está me punindo – deixou escapar em um murmúrio – colocando você ao meu lado!
– Punindo? – Ela franziu a testa, sem entendê-lo. – Minha presença lhe é insuportável? – exclamou em um sobressalto ofendido e começou a se erguer.
Em um gesto rápido, Aaron virou-se e segurou-a pela cintura. Seu ferimento doeu com o movimento, mas ele ignorou a dor e a trouxe para mais perto.
Layla abriu os olhos, surpresa. Seu leve gesto de resistência não durou muito; ela relaxou entre os braços dele, sentindo o coração disparar.
– Insuportável é o desejo de beijá-la desde que meus olhos pousaram em seus lábios – Aaron sussurrou, admirando os olhos esverdeados, doces e luminosos. Ardendo de desejo, acariciou o rosto dela com o dorso dos dedos, tocando a pele aveludada como se tocasse as pétalas de uma flor. Atordoado por uma sensação indescritível, como se algo trespassasse seu peito como uma lança causando dor e prazer simultâneos, continuou para o pescoço, sem saber o que estava fazendo, completamente enlouquecido.
Layla deixou-se ficar imóvel sob as carícias suaves, que contrastavam com a força e a ferocidade de Aaron.
Os lábios dele tocaram os dela de leve, fazendo-a estremecer.– Layla… –
Ele desejava repetir este nome até o fim de sua vida. Tomou os rosto dela entre as mãos, contemplando-a com olhos apaixonados. Voltou a beijá-la, desta vez com mais ardor, a língua explorando-a e dirigindo o beijo como se com o gesto também se apossasse da vontade dela.Layla deixou escapar um gemido baixo de satisfação e aprofundou o beijo, enquanto o acariciava.Aquilo fez a alma impetuosa de Aaron derreter e sua razão virar pó. Virando o corpo, ele a deitou sobre os travesseiros e colocou-se sobre ela. Apoiando-se nos antebraços, a beijou de novo, um beijo intenso e quente como uma noite de verão.
– Aaron! Pare! – de súbito Layla ordenou em tom assustado.
Ele parou no mesmo instante. O que estava fazendo?
Rapidamente, sentou-se na beirada da cama, afastando-se dela o mais que podia, enquanto Layla escorregava para o outro lado e se levantava com um pulo.
Os dois se encararam, ofegantes, de olhos abertos e espantados. Tudo havia durado apenas um momento, mas ambos se sentiam como se fulminados por um raio.
Layla tinha o rosto vermelho e os cabelos revoltos; o véu havia se soltado e caído sobre o travesseiro.– Aaron… – Por um momento, ela desejou voltar aos braços dele, mas depois, apavorada consigo mesmo, deu meia volta e correu para fora.
Ele afundou-se na cama, pegando o véu esquecido por Layla entre as mãos. Levou-o ao rosto, e o perfume doce impregnado no tecido fez seu coração doer.
Assim que ela o deixava, as dúvidas voltavam a ferroá-lo como mil demônios gritando em sua mente. Deveria partir o mais breve possível e voltar ao exército, aos campos de batalha e ao conhecido Aaron, aquele cheio de fúria e desejo de vingança, para finalmente conseguir livrar-se deste tormento. Obrigou-se a pensar em Estela, a bela ruiva que dispensara um pouco antes de ser capturado. Seria fácil conquistá-la novamente... No entanto, a ideia fazia seu estômago revirar-se.
De repente, soube. Não haveria volta! Jamais poderia retornar a sua antiga vida. Fechou os olhos e arquejou, desesperado, confuso, sentindo o corpo queimar com um desejo insaciável e a alma rodopiar em meio ao atormentador turbilhão de uma tempestade.
[1] Ver 12, rapaz jovem, ainda sem barba, que gosta de seduzir as mulheres. Decorem, porque Aaron repetirá isso a exaustão.
[2] Issa é o nome de Jesus Cristo para os muçulmanos.
Com as mãos atrás das costas, Yasi andava de um lado ao outro diante das estantes repletas de livros na ampla biblioteca.Ele mordia os lábios e murmurava consigo mesmo com uma expressão preocupada. Após a morte dos pais, tornara-se o chefe da casa e responsável pelo bem estar de todos. Os inúmeros criados e homens de armas do palacete viviam em paz, os negócios herdados do pai – aluguéis de casas pelas principais cidades de al-Andalus e participação em pequenos comércios - continuavam a prosperar mesmo durante a guerra contra os castelhanos.Contudo, ele se descuidara da maior de suas obrigações, o futuro de Layla.Tanto o pai como ele já deveriam a ter casado, mas não o haviam feito porque a amavam demais e não queriam se afastar dela. E agora ele sofria as consequ&e
No quarto, Aaron tamborilava os dedos sobre o tampo da mesa, olhando para o alto com ar desanimado. Dias haviam passado e suas forças retornavam, mas agora era o tédio que o aborrecia.Como prometera, Yasi viera todas as manhãs ajudá-lo a caminhar, e ainda lhe trazia também notícias:– O rei Fernando e o emir continuam negociando. Seu rei quer tomar Córdoba de maneira pacífica e prometeu respeitar os cidadãos da cidade.– Ele colocará os nobres para governá-la e vocês irão pagar os impostos a eles ao invés de pagar ao emir – Aaron comentou.– Tudo continuará como antes, então?Aaron refletira. Não eram amigos, mas ao menos haviam passado a se respeitar. E Yasi era irmão de Layla, portanto, deveri
O salão principal do palacete havia sido preparado para o evento.As velas nas arandelas no teto estavam todas acesas e vasos de flores perfumavam o local. Criados postavam-se nos cantos, com ares orgulhosos por receber tão ilustre convidado; um menestrel dedilhava o alaúde, preenchendo o ambiente com a música suave.O vizir e três assistentes que o acompanhavam sentavam-se diante da mesa, sobre a qual o banquete fora servido. Carnes temperadas com especiarias caras - noz moscada, açafrão e coentro - pratos de tâmaras e arroz, beringelas e pães, entre outros, em uma demonstração de abundância e da riqueza da casa.Al-Hasan, o vizir, era um homem de cerca de trinta anos, a barba negra bem aparada enfeitando o rosto de traços finos e olhos escuros. Discretamente
Na manhã seguinte, ainda irritado pelo fiasco da noite anterior, Yasi caminhava pelos jardins, resmungando.Qualquer um poderia notar a troca de olhares entre Aaron e Layla, e o jeito que ele pulara para defendê-la durante a briga denunciara que o cavaleiro estava mesmo apaixonado. Havia convidado Aaron a permanecer ali na esperança de que ele encontrasse outro meio de vida que não fosse matar os muçulmanos, mas começava a arrepender-se de sua boa ação.E após muito caminhar e pensar, decidiu que não desistiria tão facilmente de acabar com aquele início de romance. Ele torceu os lábios em um sorriso ardiloso; um plano começava a se formar em sua mente.Aaron estava na biblioteca. Com o sorriso nos lábios, dirigiu-se para lá.
Layla não conseguia mais evitar Aaron. Desde que Yasi o liberara, o cavaleiro parecia estar em todos os lugares - no jardim, na biblioteca e nas refeições que faziam juntos.E o que mais a irritava era o fato de que ele parecia ter-se esquecido dos beijos trocados entre eles e a tratava com uma cortesia educada, porém distante. O que era o certo a fazer, pois aqueles beijos haviam sido um completo engano. Ainda assim, a indiferença dele a aborrecia. Principalmente quando Aaron sorria de maneira sedutora para as criadas, traidoras que haviam deixado de considerá-lo um inimigo e tinham começado a idolatrá-lo. Em pé na biblioteca da casa, Aaron examinava os livros na estante, enquanto o médico, sentado em uma poltrona próxima, terminava de tomar o suco de maçã trazido por um criado. O frescor da sala e o silêncio contrastavam com o forte calor e o barulho das ruas movimentadas, pelas quais haviam andado durante a manhã.– Cansou-se? – Ibn Russud por fim quebrou o silêncio.Aaron negou.– Ainda não conseguiria lutar, mas consigo caminhar perfeitamente. O perfume das flores do final de verão os alcançava e uma brisa fresca fazia as folhagens do jardim farfalharem com um barulho suave.O olhar de Layla deteve-se em Aaron, absorvendo cada detalhe. Por que o maldito tentador tinha que ser tão bonito?, perguntou-se mais uma vez, escondendo um suspiro.O sol atravessava os galhos e iluminava parte do rosto dele, mesclando-se às sombras das folhagens acima. Ela amava aqueles traços e as chamas que ardiam nos olhos azuis. Desejava seus braços a envolvê-la novamente, os lábios deles juntos, sussurrando palavras de amor. Era com isso que sonhava por dias e noites sem fim. Contudo, parte dela tinha medo, alertando-a das consequências. Inúmeras lendas corriam pela região sobre casais que se apaixonavam, e todas terminavam em tragédia.– Sabe por que Layla é Desejo
Amor