Amor

O peito de Aaron ardia, não somente com a dor da ferida, mas também com a dor de uma angústia quase mortal.

Quando acordava, Layla estava ao seu lado; quando dormia, estava em seus sonhos. Sabia agora que ela não era uma cortesã como pensara de início, mas sim a senhora da casa, irmã do maldito lechuguino[1] que o havia capturado.

A inimiga o enfeitiçara; a imagem dela não saía de sua mente. Ele pensava estar enlouquecendo.

Devo odiá-la!, repetia para si, culpando-se por ansiar pela presença dela quando era deixado sozinho.

Provavelmente a febre o deixava confuso, pensava. No entanto, os dias passavam; ele melhorava, mas a sensação não diminuía. Pelo contrário, o ardor no coração piorava a cada dia.  Mal conseguia dormir e pouco comia, angustiado e com raiva de si mesmo.

A culpa de sentir-se como louco era o calor da maldita cidade…, calculava. Ou do cheiro das flores do jardim e da música dos menestréis e cantores que escutava após a oração da tarde…, refletia em desespero. Desejava descobrir o motivo por seu coração doer toda vez que a via, de seus braços desejarem abraçá-la novamente e de seus lábios murmurarem o nome dela durante o dia ou mesmo a noite.

Layla… Layla…

– Layla! – ele a chamou, não em sonhos, mas em voz alta. 

Dormira durante a tarde e acordara assustado com o pesadelo. Homens vestidos como ele a atacavam, soldados castelhanos que tinham invadido a cidade e entravam nas casas violentando as mulheres. Ao menos, isso ele nunca fizera. Tinha inúmeros pecados, mas não aquele.

Fechou os olhos e lentamente resvalou para os sonhos de novo.

Os soldados transformavam-se em mercenários e queimavam a casa dela como haviam feito com as plantações ao redor de seu castelo. Aaron dormitava e o pesadelo retornava. Os homens a agarravam e ela berrava, chamando o nome dele.

– Layla! – Desta vez Aaron gritou, abrindo as pálpebras e soerguendo o tronco rapidamente.

A dor veio com o movimento brusco; soltando um gemido, ele deixou-se cair na cama de novo.

Um instante depois, Layla ajoelhava-se perto dele.

– O que houve? – perguntou com uma expressão assustada.

As mãos dela pousaram em seu rosto. Pegando um lenço umedecido com água de uma bacia deixada ao lado da cama, ela limpou-lhe a testa molhada de suor.

– Um pesadelo... – Aaron resmungou, mas sorriu, e o alívio ao vê-la bem percorreu seu corpo como se o tivessem lançado em água gelada.

Ela devolveu-lhe o sorriso.

– O médico diz que deve tentar sentar-se se tiver forças. 

Ele assentiu e, devagar, soergueu o tronco novamente, enquanto Layla ajeitava os travesseiros sob suas costas.

Como nos últimos dias, ela debruçava-se sobre o corpo dele, muito próxima. Os cabelos escapavam do véu que deveria cobri-los e caíam em cachos sobre seu peito; o leve atrito o fazia arder como se queimasse sob os raios do sol de verão. Por um momento, seus olhos pousaram nos lábios avermelhados, entreabertos em um sorriso, e estes o hipnotizaram.

Fechando os olhos, concentrou-se em odiá-la. O ardor em sua alma aumentou. Ele conhecia o ardor da fúria, mas aquilo que sentia agora era muito mais forte e o deixava atordoado como se mil mariposas de fogo esvoaçassem ao seu redor. Sem pensar, ele voltou a abrir os olhos, ergueu a mão e pousou as pontas dos dedos no rosto dela.

Layla ficou imóvel, fitando-o com olhos verdes e cheios de mistérios. Retendo a respiração, Aaron perdeu-se naquele olhar. Como ela havia feito com ele dias atrás, acariciou a lateral do rosto dela em um gesto impensado, traçando um caminho pelo malar, e depois, até os lábios.

– O que está fazendo? – Layla indagou em um murmúrio espantado, mas não se moveu.

Surpreso e envergonhado, Aaron voltou a mão para a cama.

– Perdoe-me! Eu... – sussurrou. Baixou os olhos, amaldiçoando a si mesmo por comportar-se como um adolescente, e não como um homem adulto e experiente.

A seguir, voltou a olhar para ela.

– Fez o mesmo comigo… – lembrou-a.

Ela apenas sorriu de leve e rapidamente terminou a arrumação dos travesseiros.

– É o trabalho de uma enfermeira! – repetiu a desculpa e sentou-se na cadeira ao lado dele.

– Vai deixar seus pacientes malucos desse jeito... – ele resmungou.

– Assim eles se curarão mais rápido, como você! – Layla sorriu.

De súbito, a ideia de que ela cuidaria de outros e poderia fazer o mesmo com eles o deixou mal humorado. Com um rosnado irritado, Aaron acomodou-se nos travesseiros e fechou os olhos mais uma vez.

Seria mais fácil se fosse tratado com desprezo e pudesse odiá-la. Acostumara-se a odiar e sabia lidar com isso, mas não com esse outro sentimento que o invadia e o atordoava.

Seria amor?

Não... muito rápido para ser amor, provavelmente era outra coisa. Gratidão por ela cuidar dele. E desejo, com certeza, pois afinal, Layla era uma mulher bonita… Mas não, o amor.

Ambos permaneceram em silêncio por um tempo. Aaron de olhos fechados, Layla sentada na cadeira ao lado da cama, contemplando as próprias mãos e esforçando-se para desviar o olhar do rosto dele.

– Por que nos odeia? – de repente ela murmurou a pergunta como se houvesse lido os pensamentos dele.

Ele abriu os olhos e voltou o rosto para fitá-la.

– Por que me trata assim? – perguntou ao invés de responder. – Como se eu fosse alguém da família, e não, um inimigo?

– Você e meu irmão são guerreiros de reinos rivais porque o dever os obriga – respondeu ela. – Isso não nos torna, eu e você, inimigos. Sou uma pessoa e não um reino, posso escolher a quem amo ou odeio.

– Já matei muitos em batalha. Gosto de matar! Talvez tivesse matado seu irmão se ele não houvesse me vencido.... – Aaron retrucou, encarando-a com uma expressão atormentada.

Layla franziu as sobrancelha, aflita.

– Por que está me contando isso? O que quer?

Aaron soergueu o corpo dos travesseiros.

– Quero que saiba quem sou! Não mereço sua compaixão... Somente seu ódio! –  exclamou, subitamente irritado.

Ela lhe devolveu um olhar furioso.  Tinha raiva dele e de si mesma. Porque Aaron estava certo… Deveria odiá lo!

– Devo cuidar de você para provar ao médico que sou capaz de me tornar uma enfermeira. Não me importa quem você é! – ela retrucou, sem conseguir conter um olhar de raiva. – Quer ser meu inimigo? Então que seja! – exclamou, estremecendo de indignação.

– Ótimo! – Aaron recostou-se nos travesseiros e manteve os olhos fixos na parede, deixando a conhecida fúria queimar sua alma.

Selvagem mal-educado!, Layla xingava-o mentalmente, inconformada ao vê-lo fitar a parede e ignorá-la como se não estivesse mais no quarto. Melhor assim!, pensou. Poderia deixar Hiram, o pajem, cuidar dele, porque se Aaron já tinha forças para esbravejar era porque estava se recuperando. O sangue dela fervia como se de repente todo o ódio que deveria sentir viesse à tona.

Erguendo-se da cadeira com um pulo, virou-se para ir embora e deixá-lo, mas sem saber o porquê, voltou-se novamente e questionou-o:

– Sabe como meu pai morreu?

A pergunta o surpreendeu. Ele franziu a testa e meneou a cabeça.

– Não...

Ela crispou os punhos e exclamou, quase gritando:

– Foi morto por um cavaleiro castelhano... Um capitão, como você!

Aaron abriu a boca, perplexo, sem conseguir retrucar. Saber aquilo o deixava aturdido, desnorteado. O exército tinha inúmeros capitães. Mas será que ele mesmo o havia feito? De súbito, os rostos de todos os homens que matara surgiram diante dele.

– Perdoe-me... – Ele afundou a cabeça nos travesseiros, escondendo o rosto com um braço. Sentia agora uma tristeza profunda, mistura de culpa e arrependimento.

Devagar, Layla retornou para o lado da cama e agachou-se ao lado dele.

– Aaron? 

Ele continuou imóvel.

– Você está bem? – Layla indagou em um fio de voz, a raiva subitamente desaparecida.  – Não devia ter contado isso, pois não há como saber quem o fez.

Respirando fundo para recobrar o controle, ele abaixou o braço e fitou o rosto próximo ao seu, um rosto que o atordoava e o deixava completamente perdido entre o desejo e a fúria.

– Em que batalha ele perdeu a vida? – indagou, voltando os olhos para ela e segurando a respiração, angustiado.

– Em Jerez de la Frontera, quatro anos atrás – ela respondeu com um suspiro triste. – Ele acompanhava o exército do emir Ibn Hud que defendia a cidade de um ataque cristão.

Ouvir aquilo fez uma onda de alivio indescritível percorrer o corpo de Aaron.

– Não participei desta batalha! – exclamou, deixando o ar escapar. – Quem comandava o exército que conquistou Jerez eram os dois Afonsos, o filho e o irmão do rei Fernando. Eu estava com o exército do rei, percorrendo as cidades do reino de León.

Os olhos de Layla se iluminaram e ela sorriu.

– Devo pedir perdão… – sussurrou, pousando a mão na cabeça dele.

– Não... – ele murmurou, baixando os olhos, pois não suportava encará-la.

O olhar dela era como um espelho onde podia ver sua alma. Nele podia comtemplar a sede de vingança que o dominara por anos como se assistisse a vida de um outro, um ser estranho e louco, alguém adormecido em meio à fúria insana.

– Ainda assim, matei muitos outros, – continuou – e um dia irei pagar pelo mal que causei.

Layla pousou um dedo sobre sua boca, impedindo-o de continuar.

– Silêncio! – sussurrou.

Os dois estavam muito próximos e ardiam como se estivessem junto ao fogo. Chamas os devoravam, fazendo-os esquecerem-se de quem eram, a não ser das próprias presenças e dos olhares que se encontravam, afogando-se um no outro. Ele ergueu a mão e levou-a ao rosto dela, acariciando-o mais uma vez, enquanto ela o imitava, os lábios de ambos quase se tocando.

Subitamente, um som os fez voltar a realidade. Na mesquita próxima, o muezim[2] chamava para a oração do fim de tarde com seu brado melancólico.

Layla aprumou o corpo, pestanejando com força, como se despertasse de um sonho.

– Devo ir! – exclamou, embaraçada, e virando-se, saiu correndo.

Aaron deixou o ar escapar devagar, olhando para o teto, sem entender o que havia acontecido. Fascinado pelo olhar dela passara do desespero e da culpa para um reino de prazer e amor indescritíveis, um oceano sem limites, e agora era lançado por um vagalhão novamente de volta à terra.

Afogava-se em sonhos de amor e fúria, e antigos deuses pagãos brincavam com sua alma como se ela fosse um pião a girar nas mãos de crianças loucas.

Ela seguiu através da varanda, as lágrimas começando a escorrer pelo rosto. Desesperava-se.

O que havia entre eles? Aaron não saia de seus pensamentos… Em um momento o odiava, no outro ardia de desejo, o coração envolto em uma ansiedade incomum e estranha.

Será melhor afastar-me!, decidiu-se e, com passos apressados e nervosos, caminhou em direção aos seus aposentos.

– Layla! O que houve? Está chorando? – Yasi vinha no sentido contrário, rumo à sala de oração, acompanhado por Youssef, o mestre de armas, e ambos pararam diante dela com expressões espantadas.

Pegando as mãos do irmão, Layla sorriu entre as lágrimas.

– Não foi ele quem matou nosso pai em combate! Aaron não estava em Jerez! – exclamou. Sabia que a ideia de que estivessem cuidando do assassino do pai atormentara o irmão nas últimas semanas.

Yasi respondeu com um sorriso e um suspiro aliviado. Entretanto, logo depois voltou a torcer os lábios para baixo e franziu a testa.

– E por que está chorando? O que ele lhe fez?

– Aaron... – Layla baixou os olhos, largando as mãos dele.

E sem conseguir conter novas lágrimas, balbuciou que precisava descansar e afastou-se. O que poderia revelar a Yasi, se nem mesmo ela própria sabia o que estava sentindo? Algo que misturava um prazer infinito à uma dor insuportável; Paraíso e Inferno, juntos.



[1] jovem ainda sem barba que gosta de seduzir as mulheres.

[2] Na religião islâmica, o muezim é o encarregado de anunciar em voz alta, do alto das torres (ou minaretes) das mesquitas, o momento das cinco preces diárias.

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