Um beijo inesperado

Aaron abriu as pálpebras com um gemido. A lateral do corpo e o ombro latejavam de dor e sua vista embaçava-se; o rosto queimava e a boca estava seca como se tivesse caminhado pelas areias do deserto.

– Água... – esforçou-se para pronunciar a palavra.

Alguém levantou sua cabeça e encostou a borda de um copo em seus lábios. Sedento, ele começou a beber com sofreguidão, e depois tossiu, meio engasgado.

– Calma! – a voz de uma mulher disse. Uma voz que o fazia lembrar-se de tâmaras doces e verões encalorados.

Ele piscou para dissipar a névoa que toldava sua visão e estreitou os olhos, desejando ver a dona da voz. Um par de olhos verdes o fitaram de perto e o fizeram pestanejar, indagando-se se ainda sonhava.

Com um movimento brusco, quis levantar-se, no entanto o corpo não o obedeceu. Gemeu novamente e deixou-se ficar imóvel, atordoado, sentindo-se queimar.

– Está fraco e com febre! Aquiete-se! A jovem pousou um pano úmido e refrescante em sua testa.

Enfim, Aaron conseguiu erguer ao menos a mão e levá-la à mão dela, que estremeceu levemente ao toque. A pele sob a sua era suave. Apertou-a como se estivesse se afogando em um mar de tempestade e ela fosse a única que poderia salvá-lo.

Eu a conheço... – sussurrou com voz rouca. Já vira aqueles olhos em sonhos.

Ela sorriu.

– Há dias que estou ao seu lado! Você estava morrendo, mas Ibn Russud conseguiu salvá-lo!

– Ibn? – ele murmurou.

– Um médico. O melhor de Córdoba!

Um médico... de Córdoba. De súbito, a lembrança do acontecido na batalha o atingiu e ele quase soltou outro gemido. Mordeu os lábios para não o fazer, orgulhoso, pois agora sua visão começava a clarear. Seu olhar pousou no rosto da jovem sentada em uma cadeira ao lado da cama.

A expressão no rosto dela era inocente como a de um anjo do Paraíso e, ao mesmo tempo, tentadora, e os lábios avermelhados mostravam um largo sorriso. Então, seus olhos se detiveram no hijab[1] claro, leve como uma nuvem, que cobria parcialmente os cabelos escuros.

Uma árabe... Uma inimiga.., bradou em silêncio, deixando que a fúria tomasse conta dele. Contudo, estava muito fraco para sentir qualquer coisa e a sensação logo desapareceu, substituída por uma tontura nauseante.

Ele fechou os olhos e grunhiu. Delirava. A febre voltara a piorar e queimava seu corpo com incontáveis labaredas de fogo.

O pano úmido em sua testa rapidamente foi trocado por outro mais fresco. Aaron suspirou de prazer, ajeitando-se na cama e virando o rosto para o lado. Um perfume delicioso o invadiu. Sem querer, seus lábios roçaram na pele da jovem, e ele notou que esta era tão suave como a pétala...

  De uma rosa... – murmurou, sentindo o ardor diminuir à medida que a escuridão voltava a abraçá-lo e os sonhos retornavam.

❋❋❋

Mais alguns dias se passaram. O calor do verão era atenuado pela brisa fresca da tarde que entrava pelas amplas portas da varanda interna e chegava ao aposento de hóspedes.

Layla encostou a mão na testa do homem que dormia diante dela. Lembrava-se das palavras do irmão: “Cuidado! O cavaleiro atacou-me como um leão selvagem e furioso...”. Contudo, o selvagem guerreiro não parecia tão terrível agora, com a inocência do sono transmitindo-se às faces pálidas. A barba curta fora raspada para facilitar o serviço dos criados em deixá-lo limpo, e os traços do rosto delineavam-se, belos e angulosos, dignos de um deus; o corpo esbelto e musculoso prostrava-se no leito em uma posição relaxada, quase sensual.

Por um momento, ela deixou-se levar pela imaginação: aquele era seu amante, dormindo após uma noite de amor na qual ambos haviam se amado apaixonadamente, como nas lendas que corriam pela região...  Assim como Marte, o deus grego da guerra, amara Vênus, a deusa do amor, e se prostrara diante dela, reconhecendo sua força; o amor, enfim vencendo a violência.

Piscando, Layla voltou a si, maldizendo todos os romances e lendas que havia lido e escutado. Bobagens inúteis! Faziam o tempo passar mais rápido quando se estava entretida com elas, mas traziam apenas mensagens proibidas e perigosas.

Ela era uma nobre e, portanto, logo o irmão lhe providenciaria um noivo adequado. Então conheceria o amor, ou alguma espécie dele, pois diziam que amor e casamento não necessariamente vinham juntos. Marido e mulher deveriam se respeitar, seguir as normas, ter filhos e cuidar do lar e da família. E era só. Isso era o amor de verdade, uma relação confortável e sem emoções desnecessárias.

Entretanto, enquanto refletia, ajeitava os cabelos castanho-claros e compridos de Aaron ao redor de seu rosto. Admirando-o, fascinada, deixou a ponta do dedo pousar de leve nos lábios dele, delineando a curvatura inferior, e depois correu pelo maxilar forte. Como se tivesse adquirido vontade própria, sua mão seguiu pelo braço caído na beirada da cama.

Por que o cavaleiro selvagem tinha que ser tão bonito?

Sim, deveria odiá-lo, sentia-se culpada por não fazer isso, mas...

Os músculos do maldito pareciam os de uma estátua esculpida pelos gregos. Era impossível olhar para aqueles braços e não imaginar como seria estar entre eles, capturada, entregue, erguendo os lábios para ser beijada, o corpo ardendo de desejo e de paixão insaciáveis.

Estremeceu, amedrontada com o que estava fazendo. Talvez fosse o calor de verão o responsável por aqueles pensamentos ousados! E enquanto ela sonhava sonhos de amor, sua mão continuava audaciosamente para o peito de Aaron, retirando devagar o lençol que o cobria.

O abdômen dele era bonito e definido, e um pouco mais abaixo talvez outra coisa também fosse interessante de se ver…

“Não faça isso, Layla!”, ela conversou consigo mesma, a voz da razão berrando em sua mente.

Segurou o ar em expectativa, ansiosa sem saber o motivo. Seu coração tinha disparado e o sangue corria rápido nas veias. O peito doía como se alguém o houvesse flechado.

Em resumo, enlouquecera!

Mesmo assim, a curiosidade aumentou.

“Se quero ser enfermeira, preciso conhecer todos os detalhes do corpo humano!”, retrucou para si própria.

Corajosamente, ergueu o lençol e olhou por baixo dele, analisando-o.

Hei! O que está fazendo?

–Oh! –  Surpreendida, ela deixou o lençol cair, sentindo o rosto pegar fogo.  Está acordado? Mordeu os lábios, envergonhada.

Aaron segurou a mão dela com uma força surpreendente para quem estivera quase morto dias atrás.

Acordado o suficiente para ver você bisbilhotar onde não devia disse baixo, mas firme, com os olhos entreabertos.

Só queria ver se não havia se sujado. Não precisa ficar irritado… ela rebateu, puxando a mão presa sob a dele na tentativa fracassada de soltar-se. – Sou assistente do médico. Quer dizer, ele me prometeu que, se cuidasse de você e o curasse, eu poderia ajudá-lo de vez em quando. Quero ser uma enfermeira e pedi permissão a Yasi, e ele surpreendentemente concordou.

Constrangida, ela não conseguia parar de falar e emendava uma frase na outra como uma tagarela:

– É verdade que Yasi disse sim apenas por que eu ficarei mais próxima de Rebeca. Meu irmão parece estar interessado nela... O que é uma loucura, porque a garota é judia, mas... Insha'Allah![2] Ele sabe o que faz e...

Nervoso, Aaron grunhiu alto, interrompendo-a. Quem era Yasi? E quem era essa jovem bisbilhoteira?, perguntou-se.

– Qual o seu nome? – resmungou com a voz enrolada, ainda meio tonto.

– Layla! – Ela sorriu.

Aaron pestanejou, esforçando-se para manter a mente clara. A jovem provavelmente era uma cortesã contratada para tomar conta dele devido ao jeito experiente com o qual o tocara. Enquanto estava perdido no limiar do sono e da realidade, o toque suave o torturara como se fosse um ferro em brasa passando por seu corpo. Ficara imóvel, sem saber se sonhava ou alucinava loucuras como nos últimos dias, até concluir que aquilo estava acontecendo de verdade.

Sua conhecida fúria contra os muçulmanos o invadiu. Queimou de raiva, fitando-a com um olhar rancoroso, mas então seus olhos depararam-se com os lábios da jovem e subitamente a fúria desapareceu. No lugar dela surgiu um ardor estranho como se a febre tivesse voltado, e ele desejou tocar-lhe os lábios para descobrir se eram tão macios como seu olhar indicava.

Maldita cortesã! Tinha que ser tão bonita? Podia ser uma árabe, mas ele estava disposto a esquecer sua ideia de vingança temporariamente. As histórias que corriam pelo exército lhe vieram à mente. Haréns de virgens sensuais, dançarinas seminuas, huris no Paraíso e donzelas que encantavam sultões cruzaram seu espírito todas ao mesmo tempo e fizeram sua alma incendiar, acordando-o de vez. Seus olhos detiveram-se na jovem, examinando-a deslumbrados, enquanto sua imaginação corria mais solta do que um cavalo fugitivo.

Seria a vez de seus dedos escorregarem pelos lábios suculentos, descendo para o pescoço perfumado e depois para o colo, insinuando-se sob o vestido até chegarem aos seios. Os seios, certamente, seriam perfeitos, arredondados, ótimos para serem beijados, e então...

Imaginou-se pulando da cama, passando os braços ao redor dela e jogando-a no colchão. Ela abria os lábios em um protesto, mas ele o abafaria com um beijo violento e exigente. E depois…

Aaron notou que a jovem ainda se debruçava sobre ele, encarando-o com olhos preocupados. Em um ímpeto enlouquecido, ergueu o braço e puxou-a para si, virando o corpo sobre o dela e atacando-lhe os lábios com um beijo.

  Por Allah! – Layla exclamou assustada, empurrando-o para longe, e sem querer suas mãos esbarraram no ferimento dele.

Aaron sentiu a dor como se o houvessem apunhalado e deixou escapar um grito, caindo novamente sobre a cama.

Ela pulou para o lado, arregalando os olhos com uma expressão indignada.

– Como ousa? – esbravejou.

– Qual o problema? –

Aaron conseguiu perguntar entre arquejos de dor. – Você é uma cortesã e não estou tão morto assim!

– Cortesã?! – Layla franziu a testa e o encarou com um olhar bravo.

Já arrependido do ato, Aaron sentia a fraqueza voltar e, novamente, sua mente começava a rodopiar. A jovem era uma inimiga, portanto, cortesã ou não, deveria odiá-la. A imagem dos pais mortos veio-lhe à mente; ele cerrou o cenho, irritado consigo mesmo, deixando escapar um arquejo de revolta e uma frase enrolada, enquanto a cabeça voltava a arder com a febre.

Você está bem? Está delirando! Novamente, ela pousou a mão em seu rosto, debruçando-se com uma expressão atenta.

Aaron sentiu um cacho de cabelo escuro e sedoso cair de encontro ao peito e o queimar como se fosse feito de fogo. O hálito dela estava próximo e também o incendiava. E os olhos verdes o deixavam completamente tonto.

Ainda tenho febre sussurrou.

Estava enlouquecendo. Preferia mil vezes estar em um calabouço escuro sendo torturado por ferros quentes do que ter uma bela cortesã a tentá-lo, fazendo-o arder em fogueiras mais quentes do que as do inferno. Apenas a mente vil e ardilosa de um inimigo poderia pensar em castigos desse tipo...

Aaron se remexeu na cama. Panos frios envolveram sua testa, assim como o odor de jasmim da jovem.

– Tome! – A cortesã encostou um copo em sua boca, obrigando-o a beber o líquido.

– Veneno? – ele murmurou, confuso.

– Um remédio. Vai fazer a dor passar.

– Quem é você? –  conseguiu sussurrar, repetindo a pergunta, já esquecido do nome dela.

– Layla.

– Layla… – Ele deixou o nome escorregar através dos lábios, e enfim fechou os olhos e desmaiou de novo.

Layla o viu perder os sentidos. Sentia os lábios e o rosto ainda arderem e o coração batia rápido como se houvesse corrido léguas. O cavaleiro estava atordoado e a atacara, de certo confundindo-a com uma de suas inúmeras amantes. E a culpada era ela mesma por bisbilhotar onde não devia. Tinha que ser mais cuidadosa e manter-se afastada, alertou a si mesma, esforçando-se para desviar os olhos dos lábios que a haviam beijado.



[1] Véu

[2] Seja feita a vontade de Deus.

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