Duzentos anos atrás, Córdoba havia sido uma das principais cidades dos califados árabes do Ocidente e uma das mais populosas do mundo.
A grande mesquita na região central transformara-se em um local de peregrinação; palácios e jardins dominavam as ruas. Um aqueduto trazia água limpa e abundante para os banhos públicos, fontes, cascatas e lagos artificiais que a enfeitavam. Grandes filósofos haviam morado nela, atraídos pela enorme biblioteca, orgulho de um povo que prezava o conhecimento, a ciência e as artes. Quando a paz reinava, nobres árabes e europeus de diferentes religiões eram educados em suas escolas.
Após a morte do grande chanceler que a governava, a disputa pelo poder trouxera uma inevitável decadência. Intrigas intermináveis, saques e destruições haviam diminuído a beleza da cidade e o poder dos emires de Córdoba. Entretanto, ela ainda conservava vestígios de sua antiga grandeza, entre estes os inúmeros palacetes dos nobres.
Era para um deles que Al-Bayyasi se dirigia, cruzando as ruas com um ar altivo, seguido por seu mestre de armas, um pajem, dois escudeiros e por Aaron. Este vinha escondido sob uma manta de lã, ainda desacordado, cambaleando na sela de seu corcel de batalha onde fora amarrado para que não caísse.
Os que viam o jovem cavaleiro passar saudavam-no, admirando sua bela aparência e as de seus companheiros – as vestes de guerra cobertas por luxuosas túnicas de seda, as lanças erguidas para o alto com flâmulas coloridas presas às pontas, os corcéis de batalha que trotavam com caudas levantadas – provas de que a velha cidade ainda podia orgulhar-se de seus moradores.Por fim, Al-Bayyasi parou diante dos grandes portões de um dos palacetes, esperando que os criados o abrissem.
A seguir, o grupo entrou no pátio ajardinado, decorado com palmeiras e canteiros de flores, e o barulho das patas dos cavalos ecoaram pelos arcos ornamentados das varandas que o cercavam.
– Yasi!
O cavaleiro ouviu a voz feminina chamá-lo por seu apelido e acenou para uma jovem na varanda, vestida com uma túnica de seda clara, de cabelos longos e morenos cobertos parcialmente por um hijab[1] azul.
Ela correu e, um instante depois, estava ao seu lado.
Com um pulo, Yasi desmontou e abraçou-a. Layla, sua única irmã, era a pessoa que mais amava. Depois da morte dos pais deles, ela começara a tratá-lo como se fosse sua mãe, apesar de ter apenas três anos a mais do que ele.
– Salaam Aleikum![2] – cumprimentou-a.
– Senti tanto medo por você... – Ela apalpava-o a procura de algum ferimento.
– Estou bem... – Ele tentava disfarçar o alívio por estar a salvo após sua primeira batalha e, recuando, livrou-se das mãos dela. – Por favor... Já tenho dezoito anos, sou um homem, e não uma criança... – disse em uma reprimenda fingida.
– Conte-me! Como foi? – Os olhos verdes da jovem, semelhantes aos do irmão, tinham um brilho ansioso. – Os soldados castelhanos são tão terríveis quanto imaginávamos? Teve medo?
Os criados do palacete e os homens de armas os cercavam, e Layla continuaria a perguntar, mas subitamente um gemido veio de um dos corcéis de batalha e todos voltaram-se na direção do som.
Algo se movimentava sobre a sela, coberto por uma manta.
Um dos escudeiros correu e puxou a manta de lado. Layla e os criados deixaram escapar exclamações de espanto.
Sobre o pescoço do corcel, um cavaleiro debruçava-se. Estava sem a parte de cima da armadura e tinha o peito enfaixado com panos, sobre a túnica manchada de sangue. Os cabelos compridos caiam sobre os ombros, embaraçados e sujos de terra, e o rosto estava pálido como o de um homem morto.
Layla arregalou os olhos, reconhecendo o brasão do reino de Castela estampado na túnica dele.– Um castelhano? – perguntou espantada, voltando-se para o irmão.
– Aaron de Cazorla, conhecido como “O Leão”, um cavaleiro inimigo. Lutamos... Eu o derrotei e o rei Fernando o entregou como meu prisioneiro – Yasi contou, após pedir ao escudeiro para desamarrá-lo da sela. – Mas eu o feri na luta e acho que não vai aguentar-se vivo por muito tempo...
Layla aproximou-se do prisioneiro com um ar curioso, e então percebeu que ele respirava com dificuldade.
– Precisamos chamar Ibn Russud – disse. – Ele é o melhor médico da cidade.Ninguém se moveu. Os criados e homens de armas parados ao redor entreolharam-se em silêncio.
Virando-se para uma criada, Layla ordenou:
– Vamos assistir a morte de um homem ferido sem fazer nada? Acham que não temos honra? – Franziu a testa, indignada.
–Perdoe-me! – a criada desculpou-se, e enfim correu para cumprir a ordem.
Em seguida, a jovem voltou-se para os escudeiros.
– Levem o cavaleiro para um dos quartos de hóspedes, tirem as roupas dele e limpem-no o melhor que puderem – desta vez, falou em tom de comando e com um olhar de quem não admitia mais ser contrariada.
Os rapazes assentiram com ares aborrecidos e, sem muita pressa, retiraram Aaron da sela e o carregaram para dentro.
Ao ver que todos voltavam a obedecê-la como sempre e afastavam-se para cuidar de seus afazeres, a expressão de Layla suavizou-se.
– O que houve? Estavam todos surdos? – perguntou ao irmão.
Yasi a fitou com olhos atormentados.
– As regras da cavalaria me obrigam a receber o prisioneiro com cortesia e tratá-lo como se fosse um hóspede bem-vindo, até que um resgate seja pago – respondeu, deixando escapar um suspiro. –
No entanto, você sabe que tal tarefa será dura para todos nesta casa... – concluiu e, tomando a mão da irmã, a conduziu para dentro de uma das salas do palacete, onde poderiam conversar a sós.Móveis luxuosos decoravam o interior da casa, as paredes eram cobertas de azulejos e desenhos esculpidos em marfim adornavam o teto. As arcadas e janelas amplas deixavam os ambientes frescos, mesmo em um dia quente como aquele.
Yasi deixou-se cair em uma poltrona e olhou para Layla, angustiado.
– O rei disse-me que eu poderia decidir o destino dele como quisesse. Poupá-lo ou matá-lo…
– Mas tirar a vida dele, enquanto está ferido... – Layla parou a frase ao meio ao ver que um pajem, um garoto de treze anos com cabelos escuros e espetados, aproximava-se trazendo uma bandeja de frutas e copos de água.
Yasi aceitou o copo e tomou-o em um só gole; depois pegou o lenço que ele lhe oferecia e passou-o pelo rosto, limpando-se.
Enquanto isso, o pajem deixara a bandeja sobre uma mesa e o observava com olhos arregalados.
– Sidi,[3] é verdade que os castelhanos comem crianças assadas no espeto? – indagou.
– Somente às que são curiosas… – Yasi quase sorriu, imaginando os boatos que corriam pela cidade. – Hiram, mais tarde lhe conto tudo. Agora vá preparar meu banho.
– Como o senhor teve coragem de trazer um deles para cá?
– ele protestou e franziu a testa, parecendo assustado pela ideia de ter um canibal por perto, mas afinal correu para cumprir a ordem.Yasi passou as mãos na cabeça com um olhar atormentado e voltou-se de novo para Layla.
– Nosso pai foi morto por um capitão castelhano! – lembrou-a, finalmente revelando o que o perturbava. – Talvez... o próprio Aaron! Todos aqui o tratarão com rancor ou terão medo.
Layla assustava-se com a aflição que transparecia na face do irmão. A morte do pai ocorrida há quatro anos atrás fora um duro golpe para todos, mas principalmente para Yasi que, aos quatorze aos, o idolatrava. E pouco depois, quando a mãe falecera subitamente, alguns diziam que de tristeza, ambos tiveram que superar tudo e ainda assumir as funções exercidas pelos pais, a maioria das quais recaíra sobre ele.
Agachando-se ao lado da poltrona, ela pegou as mãos dele entre as suas.
– Não sabemos se foi Aaron o responsável... Além disso, nosso pai era um cavaleiro e se morreu em combate, foi uma morte honrada – retrucou.
Deixando o ar escapar com força, Yasi continuou:
– O emir e o rei estavam negociando uma trégua, quando Aaron investiu sozinho contra nosso exército e desencadeou a batalha.Quando percebi, ele se aproximava de mim como um selvagem violento, um verdadeiro leão.–Bismillah![4] – Layla colocou as mãos sobre a boca, assustada ao pensar no perigo que ele havia corrido.– Não se assuste... – Yasi tranquilizou-a. – Já no primeiro embate, eu o feri. Ele vinha com demasiado ímpeto e lembrei-me das lições de Youssef, meu mestre de armas. “Mantenha a calma, aja com inteligência, use a agilidade ao invés da força...”. Logo consegui derrubá-lo e o coloquei sob a mira de minha espada. Poderia ter me vingado e tirado a vida dele! Quase o fiz, eu queimava de ódio! Mas ele estava de joelhos e desarmado… Fui obrigado a poupá-lo – terminou em tom de lamento.
Layla sorriu e, erguendo-se, beijou o rosto dele em um gesto de carinho. Yasi passava grande parte de seu tempo na biblioteca do palacete, enfiado entre os livros. Podia ser jovem, mas tinha uma alma sábia.
–
Meu amado irmão, não se preocupe. Você fez o certo! – acalmou-o com um ar confiante. – Cuidaremos dele! Eu mesma me certificarei de que o cavaleiro seja bem tratado. Faremos nosso dever e deixaremos Allah decidir o futuro.Por fim, Yasi também sorriu. Layla tinha um temperamento alegre e afetuoso; sabia que a irmã entenderia o seu ato e o tranquilizaria.
– No entanto, teremos que tomar cuidado com esse “leão selvagem” dentro de casa – alertou-a.
– Pare de se preocupar e vá logo para seu banho – ela retrucou, franzindo o nariz e abanando a mão diante dele. – Você está cheirando como um rato!
[1] véu
[2] Pronuncia-se “salamaleico”. “Que a paz esteja sobre vós.” Cumprimento árabe muito usado.
[3] “meu senhor” em árabe, andaluz
[4] “Que Deus me ajude!”, em árabe.
Layla estava parada ao lado de Ibn Russud, o médico, e da filha dele, Rebeca, e os observava atentamente.O médico usava o quipá dos judeus na cabeça cobrindo parte dos cabelos grisalhos e vestia uma túnica longa e escura. A filha, uma jovem bonita de cabelos morenos e lisos presos em um penteado simples, também usava um vestido escuro e sem adornos.Ambos haviam ajoelhado ao lado do cavaleiro que permanecia desacordado com o rosto pálido e a respiração entrecortada, e após limparem o ferimento dele com uma poção, suturavam as bordas da ferida. Depois de um tempo Ibn Russud levantou-se, enquanto a filha terminava o curativo com mãos hábeis.– Muitas vezes,
Aaron abriu as pálpebras com um gemido. A lateral do corpo e o ombro latejavam de dor e sua vista embaçava-se; o rosto queimava e a boca estava seca como se tivesse caminhado pelas areias do deserto.– Água... – esforçou-se para pronunciar a palavra.Alguém levantou sua cabeça e encostou a borda de um copo em seus lábios. Sedento, ele começou a beber com sofreguidão, e depois tossiu, meio engasgado.– Calma! – a voz de uma mulher disse. Uma voz que o fazia lembrar-se de tâmaras doces e verões encalorados.Ele piscou para dissipar a névoa que toldava sua visão e estreitou os olhos, desejando ver a dona da voz. Um par de olhos verdes o fitaram de perto e o fizeram pestanejar, indagando-se se ainda sonhava.
O peito de Aaron ardia, não somente com a dor da ferida, mas também com a dor de uma angústia quase mortal.Quando acordava, Layla estava ao seu lado; quando dormia, estava em seus sonhos. Sabia agora que ela não era uma cortesã como pensara de início, mas sim a senhora da casa, irmã do maldito lechuguino[1] que o havia capturado.A inimiga o en
Aaron acomodou-se nos travesseiros, tentando pensar em qualquer outra coisa. Ignorando o ardor que queimava seu peito, ele respirou fundo algumas vezes, esforçando-se para voltar a atenção ao local onde estava, um quarto grande de janelas amplas que se abriam para um jardim.Quando Layla ausentava-se, o tempo demorava a passar. Ele já decorara o número dos azulejos que enfeitavam a parede. O teto era desenhado em relevos de marfim e os móveis de madeira se pareciam com obras de arte. Ainda não se reencontrara com o irmão de Layla, mas este de certo era extremamente rico.Um rapazinho mimado, querendo mostrar aos amigos e ao emir que era um guerreiro. E com a sorte de um principiante, o lechuguino Com as mãos atrás das costas, Yasi andava de um lado ao outro diante das estantes repletas de livros na ampla biblioteca.Ele mordia os lábios e murmurava consigo mesmo com uma expressão preocupada. Após a morte dos pais, tornara-se o chefe da casa e responsável pelo bem estar de todos. Os inúmeros criados e homens de armas do palacete viviam em paz, os negócios herdados do pai – aluguéis de casas pelas principais cidades de al-Andalus e participação em pequenos comércios - continuavam a prosperar mesmo durante a guerra contra os castelhanos.Contudo, ele se descuidara da maior de suas obrigações, o futuro de Layla.Tanto o pai como ele já deveriam a ter casado, mas não o haviam feito porque a amavam demais e não queriam se afastar dela. E agora ele sofria as consequ&eRebeca
No quarto, Aaron tamborilava os dedos sobre o tampo da mesa, olhando para o alto com ar desanimado. Dias haviam passado e suas forças retornavam, mas agora era o tédio que o aborrecia.Como prometera, Yasi viera todas as manhãs ajudá-lo a caminhar, e ainda lhe trazia também notícias:– O rei Fernando e o emir continuam negociando. Seu rei quer tomar Córdoba de maneira pacífica e prometeu respeitar os cidadãos da cidade.– Ele colocará os nobres para governá-la e vocês irão pagar os impostos a eles ao invés de pagar ao emir – Aaron comentou.– Tudo continuará como antes, então?Aaron refletira. Não eram amigos, mas ao menos haviam passado a se respeitar. E Yasi era irmão de Layla, portanto, deveri
O salão principal do palacete havia sido preparado para o evento.As velas nas arandelas no teto estavam todas acesas e vasos de flores perfumavam o local. Criados postavam-se nos cantos, com ares orgulhosos por receber tão ilustre convidado; um menestrel dedilhava o alaúde, preenchendo o ambiente com a música suave.O vizir e três assistentes que o acompanhavam sentavam-se diante da mesa, sobre a qual o banquete fora servido. Carnes temperadas com especiarias caras - noz moscada, açafrão e coentro - pratos de tâmaras e arroz, beringelas e pães, entre outros, em uma demonstração de abundância e da riqueza da casa.Al-Hasan, o vizir, era um homem de cerca de trinta anos, a barba negra bem aparada enfeitando o rosto de traços finos e olhos escuros. Discretamente
Na manhã seguinte, ainda irritado pelo fiasco da noite anterior, Yasi caminhava pelos jardins, resmungando.Qualquer um poderia notar a troca de olhares entre Aaron e Layla, e o jeito que ele pulara para defendê-la durante a briga denunciara que o cavaleiro estava mesmo apaixonado. Havia convidado Aaron a permanecer ali na esperança de que ele encontrasse outro meio de vida que não fosse matar os muçulmanos, mas começava a arrepender-se de sua boa ação.E após muito caminhar e pensar, decidiu que não desistiria tão facilmente de acabar com aquele início de romance. Ele torceu os lábios em um sorriso ardiloso; um plano começava a se formar em sua mente.Aaron estava na biblioteca. Com o sorriso nos lábios, dirigiu-se para lá.