Aaron

Ano 1235, Arredores de Córdoba

Distante algumas milhas das muralhas de Córdoba, dois exércitos confrontavam-se em colinas opostas sob o sol quente da manhã de verão.

Na fileira da frente do exército cristão, vestindo uma armadura que lhe cobria o peito e parte das pernas e uma túnica vermelha sobre ela, Aaron observava os cavaleiros árabes que ocupavam o outro lado do campo. Os inimigos montavam cavalos ágeis e erguiam as espadas em ameaça, berrando brados ululantes de guerra.

Ao examiná-los, os olhos azuis escuros de Aaron tornaram-se ainda mais sombrios e o rosto coberto parcialmente por um capacete contorceu-se de ódio. Há dez anos, desde que deixara suas terras, ele vivia para a guerra. Participara de incontáveis batalhas e tornara-se um capitão, comandante de outros cavaleiros, mas sua alma continuava a clamar por vingança. Nada aplacava as sombras que existiam nela; um vazio aterrador e tanto pior quanto mais sangue exigia, o qual nunca parecia ser o suficiente para acalmá-lo.

O enorme garanhão acastanhado que montava pressentiu sua cólera e bufou, batendo as pesadas patas dianteiras na terra.  Aaron apertou os calcanhares no flanco dele e puxou as rédeas, fazendo o animal empinar e escoicear. Em seguida, encostou o punho da espada sobre o coração e beijou a lâmina prateada como se esta fosse uma dama, apertando o escudo preso ao braço esquerdo de encontro ao corpo e preparando-se para o ataque.

No entanto, a batalha demorava a se iniciar. Os guerreiros muçulmanos e cristãos apenas trocavam ameaças uns contra os outros, mas retinham seus cavalos e aguardavam com uma agitação crescente.

O que estão esperando? Aaron vociferou para o cavaleiro de cabelos brancos montado ao seu lado; Gonzalo, o experiente mestre de armas do rei Fernando III de Leão e Castela.

Em meio ao campo entre os exércitos, o rei Fernando, um homem alto, vestindo armadura e túnica azul, cumprimentava o emir de Córdoba, Ibn Hud, de bigode negro, barba pontiaguda e turbante branco sobre a cabeça. Os dois pareciam trocar amenidades como se fossem bons amigos, cercados por seus escudeiros e pajens.

Estão negociando... Gonzalo explicou ao impaciente capitão, que de tão impetuoso fora apelidado de Aaron, “o Leão”. Nenhum governante deseja a batalha. Preferem poupar seus homens.

Cabrón cornudo[1], Aaron xingou o rei em silêncio, observando o encontro com um ar de desprezo.

O rei negocia demais... – reclamou, ajeitando o capacete e limpado o suor que escorria na testa. – Córdoba enfrenta uma luta interna por poder e está a nossa mercê. Não há por que esperar!  – esbravejou alto o suficiente para ser escutado pelos que estavam próximos.

Silêncio! Você sabe a pena por criticar o rei! Gonzalo advertiu-o. Aaron comandava três dezenas de cavaleiros, a esquadra de frente do exército cristão, sempre os primeiros a cavalgar para a batalha; o rei admirava a bravura dele, entretanto não o perdoaria se soubesse daquela insubordinação.

Inquieto, o capitão crispou a mão no punho da espada.

Arriscaria levar algumas chibatadas se em troca disso pudesse destruir meus inimigos de vez! retrucou. – Mas Fernando e Ibn Hud vão discutir durante horas, depois organizar um torneio comemorativo e trocar alguns castelos entre eles... concluiu, desanimado ao escutar risadas vindas do grupo.

Seus olhos atentos continuavam a examinar o outro exército, procurando pelos mercenários. Ao contrário dos orgulhosos guerreiros da cavalaria árabe, que carregavam escudos e estandartes com brasões, os mercenários vestiam armaduras pobres e não usavam emblemas para identificá-los. Uma fúria violenta o invadiu ao encontrá-los. Apontou a espada para um deles e berrou uma ofensa, provocando-os.

Tranquilize-se, Aaron! Mais uma vez Gonzalo tentava acalmá-lo, com a paciência adquirida em uma longa vida passada entre os campos de batalha e na corte do rei.

Entretanto, Aaron fingia não escutá-lo e continuava a esbravejar alto. Os cavaleiros comandados por ele o imitavam, erguendo espadas e lançando gritos de guerra, e, com isso, o restante do exército agitava-se ainda mais.

As ameaças entre os inimigos elevaram-se.

De súbito, um dos cavaleiros rivais armou um arco e instigou seu cavalo com um brado agudo; chegando ao meio do campo, disparou a flecha, que caiu diante das patas do corcel de Aaron.

Maldito! ele rugiu, sentindo o sangue ferver.

Com um movimento rápido, embainhou a espada e pegou a lança das mãos de seu escudeiro, que aguardava ao lado. Apertando a arma sob o braço, colocou-a em posição de ataque, esporeou os flancos do cavalo e partiu atrás do atacante.

O cavaleiro voltava para a segurança das fileiras árabes, mas o castanho que Aaron montava era rápido como o vento. O capitão o alcançou e, com um golpe certeiro, fincou a ponta da lança em seu ombro jogando-o ao chão. Porém, o ataque o fizera aproximar-se demais do exército rival. Outros adiantaram-se para combatê-lo, tentando cercá-lo. 

Enfurecido, ele puxou as rédeas e fez o cavalo rodar. Jogou a lança ao chão, inútil contra muitos, e tirou a espada da bainha novamente, bradando um chamado aos seus homens.

Seu escudeiro foi o primeiro a acudi-lo.

– Por Aaron! – gritou, partindo a galope para ajudá-lo.

Vendo isso, o restante dos cavaleiros sob as ordens do capitão ergueram as lanças.

Por Aaron!  berraram o nome dele, arremetendo contra o inimigo.

❋❋❋

O rei e o emir tinham corrido para os respectivos exércitos e tentavam impedir a luta, ordenando aos cavaleiros para que retrocedessem. Alguns obedeciam, mas outros continuavam a atacar como se nada tivessem ouvido, e o som metálico das armas crescia entre gritos de dor e brados de guerra.

Aaron estava cercado. Distribuía golpes violentos com a espada e o escudo, enquanto defendia-se e fazia seu cavalo escoicear, afastando os atacantes. Ele sorria; aquela era sua dança preferida, a dança da guerra e da morte, e o coração dele vibrava entusiasmado tal como vibrava quando tinha uma cortesã sob o corpo.

Em meio a chuva de golpes, uma imagem cruzou-lhe a mente. Estela, a jovem ruiva de sua adolescência.

Após sua partida da vila, ela o seguira e haviam se reencontrado na corte do rei Fernando. A beleza dela chamara a atenção de vários nobres, e a jovem tornara-se uma prostituta de luxo, uma cortesã. Não a recriminara, pois quem era ele para culpar alguém por qualquer coisa? Ele, que se considerava o responsável pela morte do próprio pai... Ao contrário, o desejo que sentira por Estela voltara com força e poucos meses depois os dois encontravam-se em noites quentes como o inferno.

Contudo, semanas atrás, Estela cometera o grave erro de confundir o desejo entre eles com o amor e o relembrara da proposta de casamento feita no passado.  Entre lágrimas, ela implorara pelo amor dele.

“Sou incapaz de amar! Procure outro noivo entre seus amantes...”, ele dissera friamente, empurrando-a para longe.

Um inimigo investiu com um berro e Aaron voltou ao presente.  Desviando-se da lâmina dele, golpeou-o com a espada; o atacante gemeu e caiu por terra. Uma boa luta é melhor do que qualquer espécie de amor que possa existir!, bradou para si mesmo. A violenta energia do ódio percorria seu corpo, e ele abria caminho penetrando cada vez entre as fileiras inimigas.

Ibn Hud, o emir de Córdoba, agora encontrava-se perto dele, cercado por cavaleiros que usavam suntuosas túnicas de seda e montavam cavalos da raça árabe, belos, mas frágeis. Aristocratas nobres... Ricos, mimados e péssimos lutadores.., julgou-os.  Saboreou o momento, escolhendo qual deles iria atacar e jogar por terra antes de alcançar o emir e capturá-lo.

No entanto, não precisou escolher. Um deles virou o corcel de batalha em sua direção, erguendo a espada e o escudo em posição de ataque.

Aaron gargalhou, antevendo a luta. O cavaleiro vestia-se de cores claras sobre uma armadura leve e trazia um turbante na cabeça ao invés de um elmo ou capacete para protegê-lo. Um principiante que desejava apenas impressionar o emir..., concluiu. Ele o venceria e teria um rico prisioneiro à sua mercê; este lhe deveria a armadura, o corcel, e ainda um resgate em moedas em troca da vida.

Com um grito de guerra, ele esporeou seu animal e partiu contra o mouro.

Os cavalos se chocaram.

Aaron levantou a espada, mirando uma fresta da armadura no ombro do adversário. No entanto, o rival desviou-se com uma rapidez espantosa e, empunhando um sabre de lâmina curva, ergueu-se sobre a sela, torceu o pulso e golpeou. Surpreendido, ele deixou escapar um gemido, sentindo a ponta do sabre enterrar-se sob a axila e penetrar fundo na lateral de seu peito.

Os cavalos desvencilharam-se e se afastaram.

Amaldiçoando a si mesmo, Aaron arquejou de dor, tentando recuperar o fôlego. O excesso de confiança o levara a erguer demais a espada, esquecendo de manter a guarda protegida e o escudo diante do corpo. Praguejou alto, puxou as rédeas e virou sua montaria para um novo ataque.

O maldito árabe o aguardava com o sabre erguido.

Está ferido gravemente – o cavaleiro gritou um aviso em castelhano, apontando o sangue que já manchava a túnica dele. Renda-se e prometo tratar-lhe com cortesia.

Nunca! – Aaron vociferou, instigando novamente o cavalo e erguendo a espada.

Ambos se aproximaram novamente, e ele investiu com um golpe rápido e violento, contudo o outro apenas abaixou-se em um movimento ágil, desviando-se do ataque.

Virando-se mais uma vez, Aaron focou toda sua atenção no adversário, que agora o aguardava parado. Rugindo, atacou de novo. Entretanto, atordoado pela dor do ferimento, não viu o escudo do oponente, que bateu em sua cabeça com força lançando-o para fora da sela.

Ele tombou com um estrondo de metal contra o solo, soltando um grito de raiva ao ver o escudo e a espada escaparem de suas mãos e caírem fora de alcance. Sua visão rodava e a respiração falhava; ainda assim, apoiou a mão e o joelho no chão e começou a se erguer.

Parando perto dele, o cavaleiro inimigo inclinou-se na sela e encostou a ponta da lâmina em sua garganta.

– Renda-se! –

ordenou.

Mordendo os lábios para controlar a dor, Aaron grunhiu uma resposta negativa e conseguiu se pôr de pé sob a mira da arma do inimigo. Encarou o cavaleiro diante dele; era um rapaz de olhos verdes e sem barba, que o fitava com uma expressão altiva.

Aaron ergueu o queixo e enfrentou-o, embora por dentro a vergonha o queimasse. Um jovem recém saído da adolescência o vencera.

– Mate-me se quiser. Não me renderei para uma criança! – provocou-o e deteve-se imóvel, aguardando o golpe.

❋❋❋

A luta ao redor deles terminava. O embate fora violento, mas finalmente havia sido controlado pelos comandantes de ambos os exércitos, que ordenavam aos guerreiros para recuarem.

Depois de um tempo, as fileiras formaram-se de novo, voltando a se afrontar de longe.

Os guerreiros capturados pelos árabes haviam sido colocados em fila, ajoelhados e com as mãos presas atrás das costas, esperando que o emir decidisse o destino deles.

Aaron estava entre eles e, aturdido, cambaleava, enfraquecido pela perda de sangue que já encharcara suas roupas. A dor do ferida fora substituída por um amortecimento que o deixaria preocupado, mas sua atenção estava voltada ao rei Fernando e ao emir Ibn Hud; eles aproximavam-se juntos, cercados por seus cavaleiros de confiança.

Ambos pararam diante dele. O rei encarou-o por um momento, e então voltou-se aos outros prisioneiros.

– O emir Ibn Hud foi gentil avisou-os. Concedeu-nos quatrocentos mil maravedis em troca de lhe darmos uma trégua de um ano. Os prisioneiros capturados serão devolvidos.

Depois, virando-se para Aaron, continuou:

Um acordo é sempre melhor do que lutas e mortes desnecessárias.

Aaron retrucaria se tivesse forças para tal. Ergueu o rosto, sem esconder uma expressão de desprezo.

Acordos de covardes!, indignava-se, mordendo os lábios para permanecer calado.

Você é um de meus melhores cavaleiros – Dom Fernando disse. O recebi em minha corte, admirei-me de sua bravura e o transformei em capitão de parte de minha cavalaria. E o que recebo em troca? – Olhos acinzentados e gélidos demoraram-se nele e as rugas ao redor da boca acentuaram-se, duras.  Críticas e desobediência! Este ataque e as mortes decorrentes dele foram culpa sua!

Aaron grunhiu em resposta. Aquelas palavras o feriam muito mais profundamente do que qualquer outra coisa. O passado retornava com força.  Morte e culpa..., ele torceu os lábios com amargura. Conhecia aquilo como ninguém.

O rei irritava-se, aguardando um pedido de desculpas.

Você colocou em risco o meu exército! Este não foi um ato digno de um comandante!

Continuando a encará-lo com um ar orgulhoso, Aaron silenciava, e os cavaleiros que acompanhavam o rei entreolhavam-se, envergonhados pela humilhação dele diante dos inimigos. Ele podia ser impetuoso em excesso, mas era um dos melhores guerreiros do exército; sua coragem fora provada em inúmeras batalhas e inspirava os homens a lutar.

Gonzalo, o mestre de armas, adiantou-se, tentando protegê-lo:

Dom Fernando, ele está ferido – murmurou ao seu ouvido, como se este não tivesse olhos para ver o fato.

O rei bufou em resposta. Ouvira os cavaleiros gritarem o nome de Aaron ao invés do dele durante o ataque, e o ciúmes misturava-se a raiva pela desobediência.

Quem o venceu? Olhou para os cavaleiros que cercavam o emir.

O jovem de olhos verdes deu um passo adiante.

Abd Allah ibn Mohammed al-Bayyasi  apresentou-se com o queixo erguido e olhos orgulhosos.

– Al-Bayyasi, o prisioneiro é seu. Faça dele o que quiser! Dom Fernando decidiu em um tom duro. Poderá exigir um resgate se quiser... Não pagarei por ele, mas talvez alguém de suas terras de origem o faça. Ou se preferir, pode matá-lo. A decisão é sua.

E voltando-se ao restante dos cavaleiros que o cercavam, ordenou:

Ajudem aos companheiros que não podem andar. Apontou a fileira dos combatentes capturados, ajoelhados e cabisbaixos. Os outros, que me sigam a pé, e pensarei mais tarde sobre o castigo que pesará sobre seus ombros aos que não obedeceram minhas ordens! ameaçou-os.

Em seguida, fez um sinal ao escudeiro que trazia seu cavalo pelas rédeas e, montando-o, dirigiu um breve cumprimento de cabeça ao emir, e depois afastou-se.

Aaron esforçara-se para manter-se consciente diante do rei, mas sua mente turvava-se; a humilhação diante de todos fizera as poucas forças que lhe restavam desaparecerem. Percebeu que o jovem chamado Al-Bayyasi se aproximava e a cólera tomou conta dele por um instante. Jamais seria levado como prisioneiro, preferia desafiá-lo novamente para um combate, ainda que perdesse a vida nele. 

Rugindo, tentou levantar-se, mas seu corpo se dobrou de repente e ele desabou, afinal perdendo os sentidos.



[1] bastardo cornudo.

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