Luana Dutra
Eu estava na fazenda de Jonas Oliveira há menos de uma semana, no entanto, parecia uma eternidade. A rotina era dura, mas eu precisava manter minha mente ocupada e, acima de tudo, longe do meu passado. Jonas era um homem reservado, sempre focado no trabalho e exigente, porém justo. Eu o respeitava muito por isso.
Era uma tarde ensolarada e eu havia terminado de cuidar das plantações mais cedo do que o previsto. Com um pouco de tempo livre, decidi explorar um pouco mais a fazenda. Havia uma velha cabana que me intrigava desde que cheguei. Parecia abandonada, com tábuas soltas e janelas empoeiradas. Decidi que era hora de matar a curiosidade.
Empurrei a porta que rangeu em protesto, como se tivesse sido esquecida pelo tempo. Lá dentro, o ar estava pesado, impregnado de poeira e memórias. A luz do sol entrava em feixes pelas frestas das janelas, iluminando o interior escuro. Haviam móveis cobertos com lençóis brancos, que mais pareciam fantasmas do passado. Em um canto, uma velha estante de livros chamou minha atenção. Entre volumes empoeirados e encadernados de couro, algo se destacou: um diário antigo, com capa de couro gasto.
Com as mãos tremendo, peguei o diário e me sentei no chão, apoiando as costas em uma velha poltrona. O cheiro de papel envelhecido e tinta desbotada me envolveu enquanto eu abria a primeira página. O diário pertencia à Maria Oliveira, a mãe de Jonas.
As primeiras entradas eram comuns, falando sobre a vida na fazenda, as colheitas, e o crescimento dos filhos. Porém, conforme eu avançava, os relatos se tornavam mais sombrios e misteriosos. Descobri que Maria havia sofrido muito nas mãos do marido, um homem cruel e abusivo. Ela descrevia com detalhes os maus-tratos e como temia por seus filhos, especialmente Jonas, o primogênito.
Uma entrada em particular me gelou a espinha:
"Jonas viu tudo. Ele viu quando seu pai me bateu até eu desmaiar. Eu sei que ele nunca esquecerá isso. Ele tem tanto medo de se tornar igual ao pai, mas eu vejo o mesmo fogo nos olhos dele. Rezo todas as noites para que ele encontre paz e não carregue essa escuridão dentro de si."
— Meu Deus. — murmurei, sentindo uma mistura de compaixão e tristeza por Jonas. Eu nunca poderia imaginar que ele tivesse passado por algo assim. Isso explicava tanta coisa sobre o jeito reservado e sério dele.
Continuei lendo, mergulhada nas dores e segredos daquela família. Descobri que Maria tinha um plano para fugir com os filhos, mas nunca conseguiu colocá-lo em prática. Sua última entrada era um desabafo desesperado, temendo pelo futuro dos filhos e implorando a qualquer um que encontrasse o diário para ajudar Jonas a encontrar paz.
— Luana? — A voz de Jonas me fez pular de susto. O diário quase caiu das minhas mãos enquanto eu me levantava apressada, tentando disfarçar minha leitura. Ele estava parado na porta, com uma expressão dura no rosto.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou, os olhos fixos no diário em minhas mãos.
— Eu... eu encontrei isso na estante. — gaguejei, sentindo meu rosto corar. — Eu não queria invadir sua privacidade, senhor, mas... — hesitei, procurando as palavras certas. — Sua mãe era uma mulher muito forte.
A expressão dele mudou, suavizando por um momento, antes de voltar a ser dura.
— Você não deveria estar aqui. — disse ele, contudo, a severidade em sua voz não combinava com a tristeza em seus olhos. — Esse lugar está cheio de memórias que eu preferiria esquecer.
— Entendo. — murmurei, devolvendo o diário para a estante com cuidado. — Mas talvez essas memórias sejam importantes. Eu li o suficiente para entender um pouco do que você passou. Ninguém deveria carregar esse peso sozinho.
Ele suspirou profundamente, passando a mão pelo cabelo.
— Eu não quero sua piedade, Luana. — sua voz era firme, todavia havia um tremor que ele não conseguia esconder.
— Não é piedade. — respondi, dando um passo em direção a ele. — É compreensão. Eu sei o que é ter um passado que você quer esquecer. Talvez possamos nos ajudar.
Ele me olhou por um longo momento, como se estivesse decidindo se podia confiar em mim.
— Minha mãe sempre quis que alguém soubesse a verdade. — disse finalmente. — Talvez seja hora de parar de fugir dela.
Eu assenti, sentindo que uma nova fase estava começando, não só para ele, mas para mim também. Aquela descoberta mudara minha percepção de Jonas. Ele não era apenas um patrão severo; era um homem marcado por um passado doloroso, alguém que lutava contra seus próprios demônios todos os dias.
— Obrigado, Luana. — disse ele, sua voz suave agora. — Talvez você tenha razão. Talvez seja hora de enfrentar essas memórias.
Deixamos a cabana juntos, carregando o peso do passado, como também uma nova esperança. Jonas não precisava mais enfrentar tudo sozinho, e eu encontrara uma nova razão para estar naquela fazenda. O diário de Maria se tornara não apenas um relicário de dor, mas também um símbolo de resistência e esperança.
A partir daquele dia, nossa relação mudou. Havia uma compreensão silenciosa entre nós, um laço formado pelo conhecimento mútuo das cicatrizes que carregávamos. E, pouco a pouco, a fazenda deixou de ser apenas um lugar de fuga para mim. Tornou-se um lugar de cura, onde o passado doloroso podia ser confrontado e, eventualmente, superado.
Conforme os dias passavam, comecei a perceber pequenas mudanças em Jonas. Ele sorria mais, mesmo que de forma contida, e às vezes compartilhava histórias da infância que não estavam no diário, lembranças felizes que ele escondera em algum canto da memória. Eu também me abri mais, contando sobre minhas próprias lutas e medos. Aos poucos, fomos construindo uma amizade baseada na confiança e no respeito mútuo.
Uma tarde, enquanto trabalhávamos juntos no campo, Jonas parou por um momento e olhou para o horizonte.
— Você sabe, Luana, nunca pensei que alguém poderia entender o que eu passei. — disse ele, com a voz tranquila. — Mas estou começando a acreditar que talvez possamos deixar o passado para trás, juntos.
Sorri para ele, sentindo um calor reconfortante no peito.
— Também acredito nisso, Jonas. — e, pela primeira vez em muito tempo, senti que estava exatamente onde deveria estar.
Era uma grande oportunidade de recomeço na minha vida ter conseguido um trabalho naquele paraíso e também novas amizades.
Estou no celeiro, organizando algumas ferramentas. O cheiro de feno fresco invade minhas narinas, e sinto uma sensação de paz, algo que há muito tempo não experimentava. Desde que cheguei à fazenda, minha vida tem sido uma correria, porém, uma boa correria. Trabalhar aqui tem me ajudado a esquecer meu passado, mesmo que apenas temporariamente. Porém, hoje sinto uma inquietação diferente. Algo dentro de mim me diz que hoje será um dia diferente.Enquanto ajeito uma enxada no canto, vejo Jonas se aproximar. Ele carrega uma caixa pesada de pregos e a coloca no chão ao meu lado. Seu rosto está coberto de suor, mas ele sorri, como sempre.— Luana, precisamos consertar a cerca do pasto sul hoje. Está com um buraco grande e as vacas podem escapar.— Claro, Jonas. Pegarei as ferramentas necessárias.Trabalhamos juntos em silêncio por alguns minutos. A presença de Jonas é reconfortante, apesar de sua aparência rude. Ele tem sido mais que um patrão; tem sido um amigo, alguém em quem posso confi
Jonas OliveiraEncontrei com o Gustavo na cidade. Fazia tempo que não nos víamos, mas a amizade continuava a mesma. Depois de resolver umas coisas no mercado, ele sugeriu que fôssemos até o bar do Pedro. Não queria parecer mal-educado, então concordei.Entramos no bar, e o cheiro de cerveja e amendoim torrado me trouxe lembranças antigas. Gustavo pediu duas cervejas e sentamos num canto mais afastado. Não demorou muito para ele tocar no assunto que eu sempre evito.— Jonas, faz quanto tempo mesmo? — ele perguntou, quebrando o silêncio.Fiquei um tempo olhando para a cerveja, girando o copo na mesa. Sabia do que ele estava falando, porém, não estava pronto para responder. No entanto, não poderia evitar para sempre.— Faz cinco anos — respondi, tentando manter a voz firme.Ele assentiu, parecendo escolher as próximas palavras com cuidado. Eu sabia que a preocupação dele era genuína, mas não estava preparado para o que viria a seguir.— E até quando você vai ficar de luto? — a pergunta s
Luana DutraA tarde estava quente, e eu mal tinha começado a segunda metade do meu dia de trabalho. Estava no celeiro, organizando algumas ferramentas, quando ouvi passos firmes se aproximando. Reconheci de imediato: era Helena, uma das trabalhadoras mais antigas da fazenda. Tinha algo no olhar dela que não me agradava.— Luana — começou ela, sem rodeios —, podemos conversar?Me endireitei, limpando as mãos na calça jeans. Helena não era de fazer cerimônia, mas o tom dela era diferente hoje, mais carregado.— Claro, Helena. O que foi?Ela cruzou os braços, olhos semicerrados.— Tenho visto como você e Jonas têm estado próximos ultimamente.Suspirei, tentando manter a calma. Já sabia onde isso ia parar.— Jonas é meu patrão, Helena. Estamos apenas trabalhando juntos para manter a fazenda funcionando bem.Ela deu um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal.— Não me venha com essa, Luana. Todo mundo aqui já percebeu que há algo mais entre vocês dois. Não finja que é só trabalho.Me
Jonas OliveiraA manhã na fazenda estava fresca, e o sol refletia nas águas do rio, criando um espetáculo de brilhos e sombras. Decidi caminhar até a margem, buscando um momento de paz antes de enfrentar o trabalho do dia. Foi então que ouvi uma melodia suave, quase como um sussurro carregado pelo vento. Segui o som, curioso.Ao me aproximar, a visão de Luana apareceu. Ela estava sentada em uma pedra, cantando com os olhos fechados, totalmente alheia à minha presença. Sua voz, doce e serena, se misturava com o murmúrio do rio, criando uma harmonia que parecia mágica. Não consegui evitar; fiquei parado, apenas observando.Luana, tão envolvida em sua canção, não percebeu quando pisei em um galho seco, que estalou alto. Seus olhos se abriram de repente, arregalados de surpresa. Em um reflexo desajeitado, ela tentou se levantar rapidamente, mas acabou escorregando na pedra molhada, caindo de bunda no chão com um baque surdo.Corri até ela, preocupado.— Está tudo bem, Luana? — perguntei,
Luana DutraO telefone da fazenda estava ali, antigo e robusto, pendurado na parede da cozinha. Era um desses aparelhos que quase não se vê mais, com disco giratório e um fio em espiral que parecia ter vivido décadas de histórias. Havia uma sensação de urgência no ar enquanto eu me aproximava. A saudade misturada com o medo fazia meu coração bater descompassado. Precisava falar com minha mãe, precisava ouvir sua voz, precisava que ela soubesse que eu estava bem, mesmo que não pudesse revelar onde estava.Peguei o fone com mãos trêmulas e disquei os números com cuidado. Cada giro do disco parecia eternizar o momento, deixando meus nervos à flor da pele. Quando a chamada começou a conectar, senti um frio na espinha. O toque do outro lado parecia ecoar pelo tempo, e cada segundo parecia uma eternidade até que a voz conhecida e amada atendesse.— Alô? — a voz da minha mãe soou como um bálsamo. Um turbilhão de emoções me envolveu. Era a primeira vez que eu ouvia sua voz desde que tinha fug
Jonas OliveiraA noite estava fria na fazenda. O céu, limpo, exibindo um mar de estrelas que parecia se estender até o infinito. Decidi acender uma fogueira perto do galpão, algo que sempre fiz para aquecer o corpo e acalmar a mente. Estava sentado num tronco velho, tomando uma cerveja, quando vi Luana passar. Seu cabelo balançava ao vento e, por um momento, ela pareceu hesitar.— Ei, Luana! — chamei, erguendo a garrafa. — Quer se juntar a mim?Ela olhou para mim, surpresa, mas depois sorriu e caminhou até a fogueira. Ela se sentou ao meu lado, seus olhos refletindo o brilho das chamas. Abri outra cerveja e entreguei a ela. Ela aceitou com um agradecimento silencioso, e nós ficamos ali, apenas curtindo a companhia um do outro e a serenidade da noite.— Faz tempo que não vejo uma noite tão clara. — disse Luana, quebrando o silêncio.— É, acho que a natureza resolveu nos dar um presente hoje. — respondi, sorrindo. — Às vezes, a vida na fazenda pode ser bem recompensadora.Conversa vai,
Luana DutraEstava na varanda da casa grande, observando o pôr do sol, quando ouvi os passos de Jonas se aproximando. O coração acelerou ao lembrar do beijo que ele me deu. Desde aquele dia, não conseguia parar de pensar nele, mas o medo de me envolver emocionalmente outra vez era maior. Já tinha sofrido demais no passado e não queria arriscar novamente.Jonas parou ao meu lado, os olhos fixos no horizonte. Ficamos em silêncio por alguns minutos, cada um perdido em seus próprios pensamentos.— Luana, precisamos conversar. — ele disse, a voz baixa, quase um sussurro.Respirei fundo, tentando reunir coragem para o que estava por vir. Ele não conseguia mesmo ficar sem falar comigo? Era hora de encarar ele outra vez.— Eu sei, Jonas. — respondi, minha voz soando mais firme do que eu me sentia por dentro.Ele se virou para me olhar, seus olhos brilhando com uma intensidade que me fez estremecer. Havia algo de vulnerável nele naquele momento, algo que nunca tinha visto antes.— Você pode vo
A luz da manhã entrava pela janela da cozinha, desenhando padrões de sombra no chão de madeira. Jonas estava encostado no balcão, com uma xícara de café na mão. Seus olhos, normalmente tão determinados, hoje pareciam carregar um peso diferente. Eu estava sentada à mesa, distraída com o barulho dos pássaros lá fora. Sentia que algo importante estava prestes a acontecer, mas não conseguia adivinhar o quê.— Luana, precisamos conversar. — começou ele, sua voz grave interrompendo meus pensamentos.Olhei para ele, curiosa e um pouco apreensiva. Jonas raramente era tão sério. Geralmente, ele era direto e objetivo, sempre com um plano em mente. Mas hoje, havia algo mais.— Claro, Jonas. Sobre o que é? — perguntei, tentando esconder minha ansiedade.Ele deu um gole no café, como se estivesse ganhando tempo para organizar seus pensamentos. Então, finalmente, falou:— Tenho observado seu trabalho aqui na fazenda. Você tem um talento natural, uma sensibilidade que poucos têm. Isso me fez pensar