Fragmentos de Fé

O culto havia encerrado, Pedro estava sentindo-se leve. A comunhão daquele lugar sempre lhe trazia paz, mas, ultimamente, os dias não estavam fáceis. Principalmente porque tinha alguns sentimentos reclusos, algo que o inquietava. Nisso, acabou saindo com pressa da igreja. Enquanto caminhava em direção ao estacionamento, seu olhar foi atraído pela lanchonete da esquina.

Lá estava ela, sozinha, distraída no celular, tomando um milkshake. Seus olhos paralisaram naquela imagem. 

A lembrança do primeiro encontro entre os dois surgiu com nitidez. Os olhos claros e expressivos, que à primeira vista pareceram assustados. Os lábios delicados, a postura confiante dela. Na época, ele chegou a imaginar que uma mulher como aquela só podia ser comprometida. Lhe tratou com respeito. Era muito preciosa. Mas ele estava chateado com ela, porque sem aviso algum, simplesmente... se afastou.

Pedro hesitou. Devo ir até ela... ou é melhor ignorar isso? Pensou.

A dúvida o fez andar de um lado para o outro, de frente ao próprio carro Renault azul. Estava tentando disfarçar a inquietação enquanto os outros passavam o cumprimentando. Ele ainda tentava compreender o que fez para Carly. Pareciam se dar tão bem antes, a parceria de trabalho era cordial. E, de repente, ela não quis mais saber e nem falar com ele. Aquilo era frustrante.

Mas aquela era a oportunidade perfeita para tirar essa história a limpo. Respirou fundo, criou coragem e atravessou a rua. Aproximou-se vagarosamente da mesa com um tom casual.

— Boa noite, doutora! Que coincidência te encontrar aqui. — Puxou a cadeira e se sentou, antes que ela dissesse qualquer coisa.

Carly ergueu os olhos, ligeiramente surpresa.

— Boa noite, doutor... verdade, quem diria. — Expressou, dando uma mordida no sanduíche. — Principalmente assim, todo trabalhado na elegância. O que faz?

— Estava na igreja e resolvi parar aqui para comer alguma coisa, antes de ir pra casa.

— Hum... Quer dizer que é crente? — Murmurou, com um tom de contestação.

Pedro arqueou uma sobrancelha, curioso.

— É, o que tem de mais? Pensei que soubesse.

Carly balançou a cabeça, evitando se aprofundar.

— Relaxa. Só não imaginava... sei lá, nunca pensei nisso. Posso me surpreender, né? 

Pedro sorriu, intrigado.

— Agora fiquei curioso. Aconteceu algo?

— Nada de mais. Foi só uma bobagem — respondeu, desconfortável, desviando o olhar.

— Ah, não. Não me diga que tem algum problema com isso? — Brincou, inclinando-se levemente sobre a mesa. — Aliás, estávamos nos dando tão bem... e, do nada, você me abandonou! Soube pelo Gael que você pediu transferência de cargo só para não trabalhar comigo. Isso foi cruel, sabia? Você me abandonou. — Dramatizou, gesticulando exageradamente.

Carly suspirou e se levantou, pedindo a conta.

— Sinto muito, Pedro. Nunca foi minha intenção te magoar... mas talvez você não entendesse. — Ela hesitou. — Preciso ir.

Saiu apressada, deixando Pedro mais confuso e desapontado.

O que deu nela?

Ficou observando enquanto ela desaparecia pela rua, remoendo a sensação incômoda de que Carly estava fugindo dele. Mas por quê?

Mais tarde, já em casa, Pedro sentia a confusão se intensificar. Não queria deixar pendências. Deitou-se, mas o sono não veio. Levantou-se, caminhou até a varanda. O céu estava sem estrelas, parecia refletir seu estado interior. O silêncio o envolvia, mas sua mente não se calava. Fechou os olhos e orou em voz baixa:

— Meu Deus do céu... que situação confusa é essa? Estou precisando de discernimento. Esses pensamentos estão me consumindo. Não sei qual foi o mal-entendido entre mim e Carly, mas preciso que me ajude a entender. Quero ser alguém melhor, sem contenda, nem ferir ninguém. Se eu fiz algo que a magoou, me revele... e que o amor seja liberado entre nós. Que a Tua vontade prevaleça. Amém!

Algum tempo depois, recostou-se no travesseiro. Finalmente, adormeceu.

Na manhã seguinte, Pedro acordou cedo e foi correr na praia, a seis quilômetros do seu prédio. O vento frio cortava seu rosto enquanto os passos ganhavam ritmo na areia úmida. Após o treino, sentou-se de frente para o mar, bebendo água e contemplando o horizonte.

Mas, inevitavelmente, seus pensamentos voltaram para Carly.

Por que ela se afastou daquele jeito?
Por que isso ainda me afeta tanto?

— Pedro?

A voz o tirou do devaneio. Quando olhou à frente, lá estava ela. Carly. Por um instante, ele ficou sem reação. Coçou os olhos, como se duvidasse do que via. Depois, sorriu, tentando quebrar o gelo.

— Que honra te ver por aqui. Deus te enviou até mim — disse, meio sugestivo. — Estava pensando em você agora mesmo.

Ela riu, sem graça, sentando-se ao lado dele.

— Hum... devo me preocupar com isso? — Murmurou, com um toque de deboche. — Quer dizer que uma divindade me trouxe especialmente até você? Isso é... inusitado.

Pedro percebeu seu desconforto.

— Não tenho culpa. Mas é que eu converso com Deus. E não me interprete mal. É que... desde ontem, e nos últimos dias, na verdade... sinto que você está me evitando. Estou preocupado. Quero entender por quê. — Ele desviou o olhar por um segundo. — Se eu te magoei com algo que falei ou fiz, quero pedir desculpas. Só pensei... isso é uma resposta de oração. Porque, para mim, você é excelente. Formamos uma dupla incrível.

Carly permaneceu em silêncio. Aquilo a desconcertava. Não imaginava que sua fuga silenciosa causaria esse impacto.

— Obrigada... de verdade. Mas não precisa se desculpar. O problema sou eu. A situação saiu do controle porque... eu fugi antes de pensar nas consequências. Sinceramente, acho que... talvez seja melhor não nos vermos mais.

Pedro soltou uma risada nervosa. Ela ficou visivelmente desconcertada.

— Ah, parece que você é lerdo, hein? — Reclamou, cruzando as pernas. — Para de rir, senão vou ser obrigada a te derrubar. Isso não tem graça. É sério!

— Mas por quê? A desentendida aqui é você. Me abandona, depois não quer me dizer o motivo. Quer que eu adivinhe? — Ele continuou rindo, provocando-a com o olhar travesso. — Ah! Mas eu não posso, "os adivinhos não herdarão o reino dos céus."

— Deixa de ser palhaço! Tá vendo? É por isso que me afastei. Não consigo lidar com você. Precisa parar de ser bobo. Começar a se comportar como um homem! Porque, assim, realmente não dá para conversar sério com você.

Ela se afastou rapidamente, sem esperar uma resposta. Pedro a observou enquanto desaparecia novamente.

— Como fica linda, brava. — Retrucou para si, com um sorriso leve. — Ela tem um corpo violão.

Por um instante, esqueceu dos próprios problemas. Ficou preso às palavras dela. E teve que admitir: quando estava perto de Carly, seu comportamento era inusitado. Tentava impressionar. Talvez só estivesse sendo... patético. Mas ele só queria a conquistar.

A vida nem sempre oferece pausas.

Na madrugada da segunda, o celular tocou. Era Gustavo, seu pai. Ou melhor, a voz preocupada de alguém do hospital. Pedro foi informado de que o pai havia sido levado às pressas ao pronto-socorro. Um quadro de infecção pulmonar grave. A internação foi imediata.

Ele correu até o hospital. Encontrou a mãe, Helena, ao lado do leito — abatida, olhos marejados. A fé, que sempre foi um pilar da família, parecia estremecida.

Na terça-feira à tarde, veio a notícia temida: Augusto havia piorado.

Pedro se ausentou do trabalho e passou a acompanhar o pai de forma integral. Passou horas na UTI, segurando sua mão, tentando ser forte.

— Vai ficar tudo bem. Você vai sair dessa, pai.

Gustavo abriu um pequeno sorriso e apertou sua mão com carinho. Durante a noite, o filho orou em silêncio, buscando forças para consolar a mãe e os irmãos, tentando manter a fé firme. Na manhã seguinte, ao ver o pai, inclinou-se sobre a cama.

— Eu te amo, papai. Você sempre foi o melhor. E eu vou estar sempre com o senhor, como você sempre esteve comigo. Tenha fé... logo a gente volta para casa.

O pai, já muito fraco, retirou a máscara de oxigênio com esforço.

— Filho... eu tô bem. Amo vocês... não se preocupa. Vá trabalhar, que eu vou descansar.

Aquelas foram as últimas palavras de Gustavo. Quando percebeu, a esposa desabou em lágrimas sobre o marido. Horas depois, a ficha caiu para Pedro. Agora teria que aguentar firme para cuidar dá sua mãe e dos seus irmãos mais novos. O coração dele desmoronou. Aquela era uma dor que nem sua fé conseguia amenizar completamente.

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