Pedro saiu da igreja sentindo-se leve. A comunhão de estar na igreja lhe trazia paz, mas, naquele dia, algo o inquietava. Enquanto caminhava até o estacionamento, seu olhar foi atraído para a lanchonete da esquina. Lá estava Carly, sozinha, distraída ao celular, tomando um milk shake. A lembrança de seu primeiro encontro com ela surgiu à mente. Aqueles olhos claros e expressivos, que no primeiro momento lhe pareceram assustados, os seus lábios delicados, uma postura que exalava confiança. Ele chegou a pensar que uma mulher daquelas fosse comprometida. Principalmente depois, que sem aviso, ela simplesmente se afastou.
Pedro hesitou. Será que eu deveria ir até ela ou seria melhor ignorar? A dúvida pairou os seus pensamentos, enquanto ficava de um lado para o outro de frente ao seu carro. Ele não entendia por que Carly recusou continuar trabalhando com ele meses atrás. Para ele, estavam se dando bem, a parceria de trabalho era boa. Mas, de repente, ela pediu para mudar de setor, sem lhe dar explicações. A dúvida o incomodava desde então. Agora era a oportunidade perfeita para ele perguntar o motivo dela agir estranhamente. Ele se sentia culpado por algo que nem mesmo sabia do que se tratava. Ele criou coragem, atravessando a rua e, com um tom casual, se aproximou da mesa dela. — Boa noite Carly, que conhecidência te ver por aqui! Pedro puxou a cadeira, sem perder tempo, sentou ao lado dela. Ela ergueu os olhos, ligeiramente surpresa. — Boa noite, que situação nos encontrarmos aqui! E o que você faz por aqui também? — argumentou com um sorriso, levando o sanduíche à boca. — Ah, estava na igreja e resolvi passar aqui para comer alguma coisa antes de ir para casa. — Quer dizer que é cristão... - Retrucou ela, com um ar de surpresa. — Porque a surpresa? Pensei que sabia. - Perguntou Pedro tentando entender o problema. Carmen balançou a cabeça, dispensando explicações. — Relaxa, não posso ficar surpresa por isso? Sei lá, só não pensava em religião. - Respondeu Carly sutilmente. Pedro sorriu, intrigado. — Agora fiquei curioso… O que houve? — É melhor esquecer, foi bobagem. - Carly respondeu desconfortavelmente, dando mais uma mordida no sanduíche. — Ah, não me diga que você tem algum problema comigo? — brincou ele, inclinando-se ligeiramente. — Estávamos nos dando tão bem e, de repente, você resolveu me abandonar. Fiquei sabendo pelo Gael que você pediu para mudar de setor só para não trabalhar comigo. Isso foi terrível! — exclamou, gesticulando exageradamente. Carly suspirou e se levantou, pedindo a conta. — Eu sinto muito, Pedro. Não foi minha intenção te magoar. Mas, talvez você não entenderia uma mera mortal como eu… agora, preciso ir. Ela saiu apressada, deixando Pedro irritado e confuso. O que deu nela? Pedro ficou olhando enquanto ela desaparecia pela rua. O que mais o incomodava era a sensação de que ela fugia dele. Mas por quê? De volta para casa, Pedro sentiu uma confusão se formando na sua mente. Ele não gostava de deixar questões pendentes. Deitou-se, mas o sono não vinha. Levantou-se, foi até a varanda e observou as estrelas apagadas no céu. O silêncio da noite o envolvia, mas sua mente não parava. Respirou fundo e fechou os olhos. — Deus, preciso ter discernimento… dos pensamentos que me afligem. Se Carly tiver algum mal entendido comigo pode me contar, ela me deixa confuso e eu não quero ter desavenças com ela. Preciso da tua ajuda para resolver essa situação, em nome de Jesus, amém! Depois de um tempo, ele finalmente adormeceu. Pela manhã agradeceu a Deus pelo dia e foi correndo até a praia, que ficava a seis quilômetros do seu prédio. Antes das sete da manhã, já estava lá, sentindo o frescor do vento cortar seu rosto, enquanto corria. Após um longo treino, sentou-se na areia, bebeu água, erguendo seus olhos para o céu. Seus pensamentos se voltaram para Carly novamente. Ele ainda não entendia o que havia feito de errado para ela se afastar repentinamente e não entendia porque se pegava preocupado com a situação. — Pedro? A voz o tirou dos devaneios. Quando ele olhou para a frente, lá estava ela. Carly. Por um instante, ele ficou sem reação, coçando os olhos para ver se era real. Então sorriu, tentando quebrar o gelo. — Que conhecidência Carly, estava pensando em você. Ela hesitou, sem graça. — Hum, devo me preocupar? — Carly murmurou, dando um leve sorriso. Pedro percebeu que ela tinha ficado sem graça. — Não me interprete mal, foi só porque ontem e nos outros dias, sabe... quero entender porque você está agindo assim comigo — ele começou, desviando o olhar. — Queria te pedir desculpas se falei alguma coisa desagradável. Te vi e pensei, resposta de oração. Aliás, não tenho nada contra você, pelo contrário, te acho incrível. Carly arqueou as sobrancelhas, surpresa. Não esperava que a fuga dos seus sentimentos fosse causar uma situação embaraçosa na vida de Pedro. — Obrigada, mas não precisa se desculpar! O erro foi meu, acabei provocando isso. Sinceramente, acho que... melhor não entrarmos em julgo desigual. Ele riu, e Carly ficou visivelmente envergonhada. — Ah, parece que você é lerdo... Pedro, para de rir, se não vou ser obrigada a te derrubar, sem graça! — Nossa, que agressividade, a bonita é valente! - Ele continuou rindo. — Haha, palhaço! Se comporta como homem porque assim não dá! Tá vendo, por isso me afastei de você. Ela se despediu, e Pedro ficou lhe observando enquanto se afastava. Por um momento, esqueceu dos seus problemas. Ficou ecoando nas palavras de Carly e teve que admitir para si que seu comportamento na frente dela era estranho. Ele queria impressionar, mas estava sendo patético. A vida nem sempre oferece pausas. Na madrugada de domingo, o celular tocou, Pedro atende era Augusto, seu pai, que foi levado para o pronto socorro. Era um quadro de infecção pulmonar, e ele teve que ser internado às pressas. Pedro correu para o hospital, onde encontrou sua mãe preocupada ao lado do leito. Seu coração apertou ao vê-la naquela situação. Ela estava insegura e apática, sua fé parecia abalada, como se não acreditasse em milagres. Na terça à tarde, Pedro recebeu a notícia que mais temia: seu pai havia piorado. Ele tinha se ausentado do trabalho para dedicar tempo exclusivo ao seu pai, na sala de UTI. Ele segurou a mão do pai, tentando parecer forte. — Vai ficar tudo bem. Você vai sair dessa, pai. O homem frágil na cama esboçou um pequeno sorriso e apertou sua mão. Pedro sentia o peso da incerteza esmagá-lo. Durante a noite, orou em silêncio, pedindo forças para enfrentar aquela situação com sua mãe. Na manhã seguinte, inclinou-se sobre a cama do pai. — Eu te amo pai! Você é o melhor, vou estar sempre ao seu lado como você esteve do meu. Vamos ter fé, logo estaremos juntos em casa de novo. Seu pai retribuiu com um aperto de mão firme. — Filho, estou bem. Amo vocês... não se preocupe. - Augusto disse tirando a máscara de oxigênio com a voz trêmula, em um grande esforço para que o filho não se abalasse com o que estava acontecendo. Aquelas foram as últimas palavras do seu pai. A sua mãe, Helena, estava debrusada a chorar sobre o marido. Horas depois, caiu a ficha e o coração de Pedro desmoronou. Ele não conseguiu conter as lágrimas. Aquele era o tipo de dor que nem a sua plena convicção de fé conseguia amenizar.Para Pedro, o funeral do seu pai foi um dos momentos mais difíceis que ele enfrentou na vida. O homem que lhe ensinou tudo sobre fé, caráter e determinação, agora partia, deixando um vazio impossível de preencher. Durante a cerimônia, sua mãe estava inconsolável, e Pedro tentava ser forte por ela. Mas, no fundo, ele também estava destruído.Entre os rostos conhecidos que vieram prestar condolências, um, em especial, chamou sua atenção. Ele avistou de longe um homem alto, de terno impecável, óculos escuros e expressão séria que desceu de um carro preto e vinha caminhando na direção deles. Pedro não precisava de apresentações. Ele reconheceria seu irmão mais velho em qualquer lugar.— Gutto… — murmurou Pedro, engolindo a seco, surpreso.Gusttavo Filho, ou Gutto, como era chamado pelos mais íntimos e a família, ele morava em Nova York há anos. Advogado criminal, levava uma vida intensa e quase nunca vinha ao Brasil. Pedro mal se lembrava da última vez que o viu pessoalmente. O irmão reti
Pedro estava exausto. O luto pesava sobre seus ombros como uma corrente invisível que o arrastava para um vazio difícil de escapar. Desde o enterro do pai, sua mente não encontrava descanso. As lembranças vinham e iam, cada uma delas carregada de culpa e saudade. Carly percebeu isso. Então, assim que ela o viu entrar pelo elevador para ir embora de mais um expediente, ela correu para o acompanhar. Ele mal a cumprimentou. Seu olhar estava perdido, os olhos avermelhados denunciavam as noites sem sono. Sem pensar muito, ela o envolveu em um abraço firme, como se quisesse segurá-lo no presente, impedindo que ele se perdesse em sua própria dor.Erguendo o olhar para o teto, ela murmurou suavemente:— Vamos sair daqui? Ir para algum lugar? O que acha?Pedro hesitou, sem entender, piscando algumas vezes antes de responder.— Como assim? Você não está com pressa para ir para casa?Ela sorriu de leve.— Agora, meu compromisso é com você! Serei sua terapeuta hoje. Acredito que você precisa de a
O vento frio soprava pela fresta da porta entreaberta, carregando consigo um som inquietante e dramático, "Moonlight Sonata - Beethoven." Carly, ainda criança, espiava o quarto dos pais, segurando a respiração, sentindo seu coração bater acelerado no peito. Na sacada, sua mãe estava parada, com os cabelos bagunçados pelo vento noturno, segurando Serina, ainda bebê nos braços. Seu olhar parecia distante, perdido em um ponto além da escuridão. Algo na cena fazia Carly estremecer. De repente, a porta do quarto se abriu com força, e seu pai surgiu apressado.— O que você pensa que está fazendo?! — a voz dele soou como um trovão na noite.Ele avançou rapidamente, segurando o braço da esposa com firmeza e arrancando Serina de seus braços. Carly viu quando sua mãe desabou na cama, chorando de forma desesperada, como se sua alma estivesse em pedaços.— Você enlouqueceu? — o pai gritou, a voz carregada de medo e desespero.A mãe apenas soluçava, escondendo o rosto entre as mãos, incapaz de re
Pedro não conseguia raciocinar muito bem naquela noite. Depois do pedido e do beijo que deu em Carly, sua mente estava um verdadeiro caos. Se antes já se preocupava com seus sentimentos, agora precisava lidar com as consequências de suas atitudes. Ao chegar em casa, percebeu que sua mãe ainda estava acordada. A luz do quarto dela permanecia acesa, e, assim que ele passou pelo corredor, Helena chamou seu nome.— Pedro, aconteceu alguma coisa? Você parece assustado.Ele hesitou por um momento, evitando encará-la diretamente.— Não, está tudo bem, mãe. Só estou meio cansado.Helena o observou por alguns instantes da porta, como se tentasse decifrá-lo.— Tem certeza? Você está com uma cara de culpado… Sei quando algo está te incomodando.Pedro respirou fundo, mantendo a postura firme.— Só um dia longo, mãe! Vou tomar um banho e descansar. Sem dar espaço para mais perguntas, seguiu para o quarto dele. Helena não insistiu, mas também não parecia convencida. Ela tinha até "nome" para quem
O hospital estava em seu ritmo acelerado quando Carly recebeu um chamado para a ala de reabilitação. Como fisioterapeuta especializada em traumatologia, era comum que fosse requisitada para casos de recuperação de traumas mais complexos. Mas, a maneira como tudo foi informado a deixou intrigada.— Dra. Carly, você foi requisitada para um caso de reabilitação na área VIP. — avisou a secretária do setor.Ela parou de revisar os prontuários e franziu o cenho.— O que aconteceu?— Ainda não temos detalhes. A informação que circula é que o paciente sofreu uma queda de cavalo. Teve múltiplas fraturas nas costelas e uma contusão severa na perna direita. Parece um caso sério.Carly assentiu, processando a informação.— Quem solicitou minha presença para o caso? A secretária hesitou.— O pedido veio diretamente do Dr. Alberto.A menção ao nome dele a fez se retesar, com um nó no estômago. Carly não gostava dele. E tinha as suas razões.Dr. Alberto Farias não era apenas o diretor do setor de
O corredor da Ala VIP parecia ainda mais silencioso do que o normal. O ambiente requintado, com suas luzes suaves e móveis sofisticados, contrastava com a atmosfera impessoal das outras alas do hospital. A tranquilidade e a sofisticação artificial daquele espaço não conseguia aliviar a tensão que Carly sentia. Parada diante da porta, ela segurava o cartão de acesso com dedos trêmulos. Respirou fundo antes de deslizá-lo na fechadura eletrônica. A luz verde piscou e a porta se abriu com um leve clique. Ela entrou vagarosamente. O ambiente era mais luxuoso do que um quarto de hotel, espaçoso, bem iluminado pelo entardecer que filtrava pelas cortinas semiabertas. O cheiro sutil de desinfetante misturava-se ao perfume do ambiente climatizado. Mas nada disso importava. Seus olhos foram direto para a cama. Ali, ele estava deitado. O homem que um dia lhe deu a vida. Ele dormia profundamente, o peito subindo e descendo de forma ritmada. Mas, o curativo em sua lateral denunciava a fratura nas
O silêncio no quarto foi quebrado apenas pelo som baixo da televisão. A tela exibia uma reportagem, e a voz do jornalista preenchia o ambiente com um tom formal e sério:"Joseph Padro, governador e empresário, sofreu um acidente enquanto cavalgava em sua fazenda particular, em Monte Frontal. O incidente resultou em múltiplas fraturas nas costelas e uma contusão severa na perna direita. O empresário, que é sócio de diversas empresas no país, foi transferido para um hospital de alto padrão, em Porto, onde segue em recuperação. Nossa equipe segue acompanhando as atualizações sobre o estado de saúde do governador."Serina, sentada na cama, ao lado do pai, observava a notícia com os braços cruzados, a expressão indecifrável.Joseph, mesmo debilitado, mantinha um olhar fixo na tela, sua postura carregada de um peso invisível. Foi nesse momento que a porta do quarto se abriu lentamente.Carly entrou vagarosamente.Joseph desviou o olhar da TV imediatamente para ela. Um silêncio tenso se inst
O gabinete do Pastor Samuel era um ambiente acolhedor, decorado com estantes repletas de livros teológicos e um aroma suave de madeira. Quando Pedro entrou, foi recebido com um entusiasmo caloroso, mas o olhar atento do pastor indicava que a conversa que estavam prestes a ter não seria levada de forma leviana. Ele pegou duas xícaras e a garrafa de café, pondo na mesa. — Pedro, meu filho, sente-se! Fico feliz que tenha vindo. Vamos tomar um cafezinho. Pedro acomodou-se na cadeira diante da mesa de madeira maciça, sentindo-se mais confortável do que esperava.— Então, como você está? Fiquei sabendo de umas coisas aí sobre você, mas quero saber da fonte. Me conte, quem é essa abençoada que tem mexido com seu coração?Pedro sorriu de leve, seu olhar suavizando instantaneamente ao pensar em Carly.— É Carly, trabalha comigo. Pastor, ela é incrível, determinada… Eu não sei explicar, mas desde o primeiro momento senti que havia uma conexão especial entre nós.O pastor escutava atentamente