Ecos do Passado

O vento frio soprava pela fresta da porta entreaberta, carregando consigo um som  inquietante e dramático, "Moonlight Sonata - Beethoven." Carly, ainda criança, espiava o quarto dos pais, segurando a respiração, sentindo seu coração bater acelerado no peito. Na sacada, sua mãe estava parada, com os cabelos bagunçados pelo vento noturno, segurando Serina, ainda bebê nos braços. Seu olhar parecia distante, perdido em um ponto além da escuridão. Algo na cena fazia Carly estremecer. De repente, a porta do quarto se abriu com força, e seu pai surgiu apressado.

— O que você pensa que está fazendo?! — a voz dele soou como um trovão na noite.

Ele avançou rapidamente, segurando o braço da esposa com firmeza e arrancando Serina de seus braços. Carly viu quando sua mãe desabou na cama, chorando de forma desesperada, como se sua alma estivesse em pedaços.

— Você enlouqueceu? — o pai gritou, a voz carregada de medo e desespero.

A mãe apenas soluçava, escondendo o rosto entre as mãos, incapaz de responder.

Nos dias que se seguiram, tudo mudou. Seu pai contratou uma enfermeira para ajudar a cuidar da esposa. O diagnóstico veio pouco tempo depois: depressão profunda. Mas, Carly ouvia murmúrios diferentes.

— Você ficou sabendo? A Ely ficou doida, não tá batendo bem da cabeça!

— Esse casamento foi um erro, agora Joseph tá pagando com uma endemoniada.

— Tadinha, ela precisa de uma libertação urgente!

— Não falem isso, olha a menina!

Os comentários sussurrados a assustavam mais do que qualquer coisa. Era como se zombassem da desgraça que aconteceu com sua mãe. Ela não entendia o que estava acontecendo, a expressão apática da sua mãe em uma cama, ela já não era a mesma de antes.

Nesse tempo, Carly se vê sendo confrontada por Marta, a cuidadora e babá, elas estavam discutindo.

— É melhor ir se acostumando, sua mãe não vai viver muito. E de quem é a culpa? É sua e da sua irmã.

— Não, é mentira... Deixa minha mãe em paz! você é uma mentirosa! — Ela se via chorando desesperada, enquanto Marta debochava da tristeza de uma criança. Então, Carly a agarrou pelos cabelos gritando.

De um relampejo, ela acordou com um sobressalto, seu corpo coberto de suor, assustada. Sentou-se na cama, respirando fundo, tentando afastar a sensação sufocante da lembrança. Fazia anos que não sonhava com aquilo.

Pegou o celular rapidamente e, sem pensar duas vezes, digitou uma mensagem para Serina.

"Oi, tá tudo bem?"

Aguardou alguns segundos, mas não obteve resposta. O coração acelerou.

"Voltei a ter pesadelos de novo..."

A tela permaneceu silenciosa. Carly mordeu o lábio, inquieta. Olhando para a hora, observando que ainda era de madrugada.

— Foi apenas um lapso da minha mente, não tem porque ficar assim... — Retrucou para si mesma, tentando se acalmar. Porém um pensamento intrusivo surgiu, de que talvez o passado estivesse voltando para lhe assombrar novamente. Ela saiu em direção a cozinha, pegou um copo de água e um calmante. Enquanto isso, ela abriu as portas de vidro, que saía para a varanda e ficou olhando atentamente para o céu ainda estrelado, até pegar no sono.

Ela tinha acabado de tomar café, quando o interfone tocou, interrompendo os pensamentos dispersos. Ela não esperava visitas. Levantou-se do sofá, ajeitando os cabelos rapidamente antes de atender, ainda de pijama.

— Oi, sou eu. — a imagem de Pedro do outro lado.

Ela hesitou por um instante, animada.

— Pedro, só um instante que vou te receber.

Vestiu a primeira roupa que viu, abriu a porta e caminhou até a varanda, onde uma leve brisa movimentou as cortinas. O jardim estava florido, as rosas vermelhas que ela tanto gostava estavam no auge da beleza.

Pedro apareceu no portão, estava elegante em uma roupa social, segurando duas quentinhas e sorrindo de forma travessa.

— Trouxe o nosso almoço. Espero que  goste.

Ele tentou manter a seriedade, mas estava muito nervoso. Carly colocou as marmitas no balcão, enquanto Pedro estava sentado na cadeira de balanço na varanda. Ela não conseguiu conter o riso e logo estava gargalhando junto com ele.

— Por que você está inquieto desse jeito, vai para um casamento? — ela arqueou uma sobrancelha, brincando. — Tá muito charmoso, veio da igreja?

— Assim você me deixa envergonhado. Eu fui para igreja, mas não aguentei. Afinal, você está se tornando mais que uma simples amiga.

— Isso foi uma declaração…? — Carly, tentou disfarçar a alegria, mas sua voz vacilou.

O silêncio pairou por alguns instantes. Ela desviou o olhar, mexendo distraidamente no celular.

Pedro percebeu e decidiu quebrar aquele clima tenso.

— Eu quero te conhecer melhor, não quero precipitar nada.

Ela suspirou, hesitando antes de responder.

— Minha vida não é muito interessante… eu sou isso que você conhece. Como já te disse, perdi minha mãe muito cedo. Saí de casa quando completei dezoito anos para estudar em Montreal. Aproveitei a oportunidade e cortei o contato com meu pai, alguns familiares. Ah! Eu tenho uma irmã mais nova. Meu pai se casou poucos meses depois que minha mãe morreu. Fiquei decepcionada!

Pedro franziu o cenho, curioso.

— Por quê?

Carly desviou o olhar para o jardim, onde um beija-flor pousava brevemente antes de alçar voo.

— Porque a pessoa que casou com meu pai foi a ponta do iceberg. No fundo, acho que esse foi o motivo, traição. Isso destruiu ainda mais minha mãe... Talvez, se ele tivesse amado de verdade, ela não teria desistido de viver… Depois que a mamãe partiu, ninguém parecia se importar. Meu pai não perguntou como eu me sentia, não tocava no nome dela, nem quis saber se eu aceitava aquele relacionamento ou se preferia ficar em casa. Simplesmente me ignorou, me deixou partir. Mas, pelo menos deu um pouco de atenção para Serina. Eu sobrevivi, mas foi como se tivesse sido descartada. Me senti infeliz, mesmo tendo tudo. E quando finalmente voltei, consegui um estágio e fui efetivada nesse emprego. Me mudei para cá, tenho meu salário e não quis mais procurar eles.

Lágrimas escorreram pelos seus olhos. Pedro ficou sério.

— foi…?

Carly respirou fundo antes de responder:

— Sim, foi suicídio...

Pedro a observou atentamente. Como alguém poderia passar por tudo aquilo e ainda se manter de pé?

— Os médicos diziam que era depressão e os fanáticos da sinagoga e igreja, diziam que ela estava possuída. Eles diziam que ela precisava de Deus e dos cristãos, a audácia que ela deveria se converter! A doença a isolou do mundo. Sabe, não consigo acreditar na falta de noção dessa gente! Justificativas absurdas. Ela era linda, talentosa e muito cativante… um doce de mãe. Pena que Serina nunca teve a chance de conhecer ela como eu a conheci. Não consigo encontrar uma explicação plausível para isso. Ahh! M*****a, depressão pós-parto…

Pedro assentiu, sentindo o peso da dor dela. Porém, não sabia quais palavras poderia usar.

— Hum, é... Que mistura de sinagoga e igreja?

— É uma longa história… — ela começou, cruzando os braços. — Minha mãe, é descendente de judeus e meu pai de cristãos e católicos. Duas pessoas de famílias com visões diferentes e ao mesmo tempo similares.

O olhar de Carly endureceu, séria.

— Estou te contando isso, porque... Quero que você esteja ciente do meu posicionamento sobre essas crenças. Na verdade, sou incrédula. Não tenho interesse algum em fazer parte de uma igreja.

Pedro permaneceu em silêncio, absorvendo aquela informação que veio como soco em seu estômago.

Ele respirou fundo e disse, com sinceridade:

— Já te admirava antes, mas agora admiro ainda mais. Você tem uma história de superação marcante... Sei que tudo isso ainda deve doer, mas creio que esse passado tem um propósito maior para o futuro. Deus tem um plano maravilhoso para sua vida.

Ela sorriu de forma tímida, surpresa pela forma como ele a olhava.

— Você é a primeira pessoa com quem finalmente conversei sobre isso. Nunca senti que alguém realmente quisesse me ouvir. Na verdade, o único namorado que tentei contar foi um caso perdido.

Pedro se sentiu honrado e, instintivamente, a puxou para um abraço.

— Sei que você disse que não quer ter compromisso com igreja, mas quer ir ao culto comigo? — ele perguntou nervoso, após soltá-la.

Carly hesitou por uns minutos, mas, para sua própria surpresa, assentiu.

— Ótimo! Amanhã a noite, não esqueça. Passo aqui para te buscar.

O almoço foi alongado por um diálogo de conhecimento mútuo. A qual não observaram a hora. Quando Pedro notou, levou um susto, já estava tarde. Ele partiu dali apressadamente para chegar no seu apartamento, trocar de roupa e ir trabalhar.

No dia seguinte, às seis horas e cinquenta minutos, ele estava no carro, à espera de Carly. Ela estava vestida em um macacão elegante, cor bege, e com um salto escarlate. No caminho até a igreja, Pedro elogiou Carly e, em tom curioso, perguntou:

— Não consigo parar de olhar pra você... Antes, você costumava frequentar a igreja?

Ela suspirou antes de responder.

— Sim. Mas depois ficou bem raro. Eu não conseguia acreditar na hipocresia de muita gente. Como Deus podia permitir algo tão cruel acontecer? Eu achava que se Ele realmente estivesse presente, não permitiria que eu perdesse minha mãe. Eu acreditei até o último momento que um milagre pudesse acontecer e ela esquecesse aquela ideia absurda. Não foi justo, passei quase cinco anos vendo ela sofrer, dia após noite.

Ela desviou o olhar para fora do carro, com os olhos sobrecarregados.

Pedro assentiu, compreendendo a sua dor.

— E hoje você está aqui. Você aceitou vir comigo. Eu só tenho a agradecer essa oportunidade que você está me dando.

Ela mordeu o lábio, pensativa.

— Meus sentimentos são sinceros… eu só quero que funcione entre nós dois. E para isso, tenho que conhecer o seu mundo. Você já conheceu o meu, fora do hospital, é só aquilo mesmo que já viu, uma monotonia.

Pedro sorriu de leve. Estacionando o carro.

— Então, amém!

Quando chegaram à igreja, Carly desceu do carro um pouco apreensiva. Pedro segurou suas mãos com firmeza.

— Não deixe a insegura te vencer. Firme e corajosa. Deus não teve culpa alguma do que aconteceu. As decisões das pessoas causam tragédias, mas Ele continua te amando. Independente de qualquer coisa, lembre-se que estou aqui e vou te proteger.

— Obrigada… — ela murmurou, emocionada.

Ao entrarem no templo, estavam regendo a canção "Agnus Dei", o momento de adoração devia ser o foco. Mas, Carly sentia-se desconfortável, pelos olhares recaíram sobre ela, e o motivo? Parecia ser por causa de Pedro. Ele a conduziu até sua mãe e seus irmãos, e os apresentou rapidamente, antes de correr para o púlpito, a qual era o dirigente da noite. Helena foi solidária com Carly, mas estava em silêncio prestando atenção à mensagem transmitida pelo tema: Herança do Senhor, baseado no livro de Salmos 127. Carly sentiu um frio na espinha, sentindo-se envolvida. Será que aquilo era para ela? No final, Pedro lhe apresentou a alguns amigos, que reagiram de diferentes formas. A recepção indiferente de algumas jovens solteiras foi notável. Pedro também notou e ficou sem graça, preferiu levá-la para casa, antes que resolvessem atacar.

Quando chegaram à casa de Carly, ele saiu do carro e a acompanhou até o portão. Ela se virou para agradecê-lo, mas ele segurou sua mão, hesitante.

— Espera. Eu não conseguiria dormir sem te perguntar isso…

Carly ficou tensa.

— Nós nos conhecemos há quase um ano, e, durante esse tempo, minha admiração por você só aumentou, eu acabei percebendo que você é a mulher que gostaria de ter ao meu lado. Te acho fascinante. Sei que pode achar que ainda é cedo, mas… eu queria saber se você quer ser minha namorada?

Antes que Carly pudesse reagir, Pedro se inclinou lhe dando um beijou. Foi rápido, mas intenso. Assim que ele se afastou, seus olhos estavam arregalados, como se tivesse feito a coisa mais terrível do mundo, como se só naquele momento percebesse o que havia feito.

— Perdão, não… não era essa a minha intenção. Meu Deus, o que foi isso?! Eu não costumo agir assim. Boa noite, Carly. Tenho que ir, durma bem!

Sem esperar pela resposta, ele entrou no carro e foi embora atordoado.

Carly ficou parada em frente ao portão, sentindo o coração bater mais forte, com uma sensação confusa do que tinha acabado de acontecer. Ela se sentia eufórica, como se estivesse vivendo a realização de um sonho.

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