Fabiana Medeiros
Meu pai não me levou ao aeroporto. E não deixou minha mãe me levar. Quando sai do quarto arrastando uma mala gigante, a governanta veio me dizer que eles saíram e que o motorista me levaria ao aeroporto. Também não vou me despedir dos meus irmãos. Nem sei onde estão.
Eu devia ter esperado por algo assim.
Nem forcei um sorriso, apenas segui como um zumbi até o avião particular.
O que eu poderia fazer de diferente? Me pergunto várias vezes.
A única resposta que tenho é que essa pode ser a chance de me livrar do desejo de agradar que finjo não sentir. Eu vou ser uma pessoa normal. Vou estudar e trabalhar. Eu não preciso de mansão, joias... nada disso. Só preciso de um canto para chamar de lar e um trabalho para chamar de meu. Não vai ser fácil convencer meus pais, mas quando terminar o ensino médio vou pedir para fazer faculdade no exterior e lá terei mais liberdade de moldar minha vida.
Foram poucas horas até o aeroporto da cidade de Belo Horizonte. O que demorou mesmo foi a viagem de ônibus até o vilarejo, onde fiz o trajeto até a fazenda na caminhonete do senhor Matias. Foi no vilarejo que meu sinal sumiu.
― Esse trem não presta na fazenda. Só na vila ― O senhor Matias percebe minha luta para mexer no celular. ― Se quiser ligar, só nos orelhão ou lá na casa grande. Seus vô deve deixar.
Eu tinha me esquecido completamente da falta de sinal nesse lugar. Agora só terei acesso as músicas que baixei, e adeus redes sociais. O que é de certa forma um alivio. Devo ser o assunto mais comentado.
Nem pensei na possibilidade de que ainda não tivesse sinal.
Meus pais já me trouxeram aqui. Na verdade trouxeram os gêmeos, eu vim porque eles não tinham desculpas para me deixar para trás.
Me lembro que naquela época eu quase fui atacada por um animal selvagem e um menino magrela me ajudou. Eu devia ter uns onze anos. Fiquei tão assustada naquela época que nem perguntei o nome dele. Às vezes ainda penso naquele dia, sinto que devo a minha vida àquele garoto com um facão quase do tamanho dele.
Quando chego na fazenda, meus avós e meus tios estão na sala esperando.
― A rameira chegou. ― Esse foi o cumprimento que recebi. Veio da minha avô.
Pelo jeito todos já devem saber o que houve. Todos me dedicam olhares acusadores enquanto minha avô balança um sino pequeno e uma mulher rechonchuda e com expressão doce chega.
― Dona Aurora, leva ela pro quarto. Deve tá cansada.
Não respondo nada. Pretendia desejar boa noite a todos quando cheguei, mas pelo jeito a minha caveira já estava no ponto.
Segui a senhora Aurora até um quarto no corredor do segundo andar.
A casa principal ― onde viverei por sei lá quanto tempo ― tem três andares. No primeiro sala, cozinha, lugares mais sociais, no segundo quartos e no terceiro escritórios, bibliotecas, sala de música. Tirando o escritório todos os ambientes lá são pouco utilizados, pelo menos foi o que percebi quando visitei.
― Seja bem-vinda, menina!
O sorriso da mulher foi tão gentil que tive que retribuir.
― Muito obrigada.
― Seus avós são gente que viveu a vida toda na roça. Tenha paciência com eles.
― Não se preocupe. Eu mereço tudo que vier.
― Claro que não, menina. Se arrepender de verdade, todo mundo tem direito ao perdão.
― A senhora sabe por que estou aqui sendo desprezada pela minha família? ― fico curiosa.
A mulher desvia o olhar e abre a boca com clara intenção de mentir.
― Não precisa dizer. Eu vou descansar agora. Boa tarde, Dona Aurora.
Não vejo ninguém depois da interação na sala. Meu jantar chega no quarto.
**
De manhã, acordo cedo, às oito. Por ser domingo todos devem dormir até tarde, então quero aproveitar para respirar um pouco de ar fresco sem olhares acusadores.
Ledo engano. Encontro a mesa de café da manhã posta e meus tios, primos e avós sentados.
― Já ia mandar acordar a princesa ― meu primo Samuel desaprova.
― Desculpe, não sabia que acordavam cedo no domingo.
― A missa começa nove, então come rápido e vai trocar de roupa. Nós vamos sair no máximo 08:40. Você não pode ir fantasiada de meretriz.
Olho meu pijama de calça e blusa. Se uma meretriz se vestir assim não conseguirá nada.
― Já terminei, vó. Posso ajudar ela a escolher algo decente. ― Uma loira fala. Se não me engano é Carla, uma prima, irmã de Samuel.
Acho que são eles, mas faz anos que não venho aqui.
― Ouviu sua prima, rápido.
Engulo um pedaço de bolo de fubá, chateada por não ter mais tempo ― porque está delicioso ― e viro um copo de café com leite para empurrar.
Minha prima já está de pé. Mesmo que tenhamos meia hora só para trocar de roupa, ela está de pé. Pelo jeito nossa convivência não será boa.
Sob olhares desaprovadores, saio atrás dela, mas volto correndo e pego um pedaço de bolo para levar comigo.
É a senhora Aurora que serve, e ainda tenho tempo de vislumbrar seu sorriso com meu gesto.
― O que vocês costumam usar para missas? ― Tento puxar assunto com a prima enquanto subimos as escadas.
― Vestidos. É cega? Não viu como as mulheres na mesa estavam vestidas? ― diz ríspida. Me olhando com cara de nojo. Não que esteja com nojo, a expressão dela é que me dá nojo.
Entro no quarto e vou até o guarda-roupa embutido na parede. Minhas coisas não ocuparam quase nada do espaço. Tenho dois vestidos, um preto curto e um branco que b**e nos meus tornozelos.
― Vamos de carro? ― pergunto esperando uma má resposta.
― Sim. ― Ela responde fuçando minhas coisas. Mexe nos meus cremes, maquiagem e joias.
Já que é assim e a estrada não tem muita poeira, coloco o vestido branco.
Ele é um pouco transparente, mas não muito e uso short e sutiã por garantia.
Ela me analisa, dá de ombros e saímos.
― Já começa pedindo perdão a Deus pelo que fez seu pai passar ― diz negando com um gesto de cabeça.
Fui ouvindo coisas assim, sobre como sou uma péssima filha, até chegar na igreja que fica no vilarejo.
Por sorte parece que eles não queriam que as pessoas soubessem o motivo de eu estar aqui, pois simplesmente falavam com os conhecidos que eu era uma neta querida que precisa ver o mundo real como todos da família. Se é assim, devem ter ameaçado os empregados para ficarem calados porque percebi que eles me olham estranho, como se soubessem. Aposto que sabem. Sou o assunto de suas fofocas.
Cínicos. Todos. A minha vida devia ser problema meu.
Na igreja, em uma conversa entre meu avô e o padre, descubro que vou começar na escola amanhã.
Fico me perguntando se ele iria me contar ou se eu teria que adivinhar.
Fabiana MedeirosMinha chegada na escola é como todas dos clichês de alunas novas. Um tédio.Tenho que me apresentar.A primeira professora é de Literatura. Ela que me guia até a minha sala depois de uma conversa com a diretora.― Essa é a Fabiana Garcia de Medeiros. Ela vai estudar conosco. ― Há um burburinho e a professora continua: ― Ela deve ser tratada como qualquer outra aluna. Nessa escola não temos tratamento especial independente de classe, cor ou qualquer outro.Não faz? Acabou de fazer.― Professora ― chamo, e ela se vira para mim. ― A senhora dá esse aviso em todas as apresentações de novos alunos?Pelas risadinhas, os alunos perceberam o que eu quis dizer. Todos riram, exceto um, e não foi por nada do que eu disse. O cara estava com fones de ouvido, acho que nem ouviu. Com fones de ouvido em uma sala de aula onde a professora está presente. Pronto, já achei o bad boy do interior.― Silêncio! ― ela exige da classe. Por ser muito branca, consigo ver seu rosto e pescoço verm
Fabiana MedeirosAnos antes― Posso abrir os presentes? ― Meu irmão Bruno pede. Eles já estão com oito anos. E meu pai achou melhor comemorarmos o natal na fazenda.― Claro.Eles correm para a árvore e eu vou também, sem correr, sou mais velha e não posso agir como criança, é o que me disseram.Os presentes são dos nossos avós.Abro o meu e encontro exatamente o livro que comentei com minha mãe que queria ganhar. Abro um sorriso.Como minha avó sabia?A resposta sai dela.― Quem colocou esse livro na árvore? E livro lá é presente?Meu sorriso murcha e some.― Não foi a senhora que me deu? — pergunto decepcionada.― Eu não.― Você não comprou o presente dela? Mandei comprar pra todos os netos.― Esqueci. É muita coisa pra fazer.O presente estava com meu nome. E todo ano eles mandam os presentes e sempre recebo o que falo com minha mãe que queria.Eu sou criança, mas não sou burra.E o olhar de pena da minha mãe diz tudo. É ela que me presenteava, fingindo ser meus avós. Essa mulher qu
Fabiana MedeirosComo o horário de aula termina às 14hs, tenho grande parte da tarde livre. Hoje é sexta-feira e tirando as aulas passei a maior parte do tempo presa no quarto. Preciso mudar isso.Passo pela cozinha e encontro minha tia dando instruções sobre o jantar.― Boa tarde! ― cumprimento.As duas respondem. A senhora Aurora com um sorriso e minha tia com má vontade.― Tia, posso ajudar em alguma coisa na fazenda? Quando não estou estudando gostaria de fazer algo útil.― Você não sabe fazer nada. ― Ele responde com desdém. Juro que às vezes penso que fui adotada, ou achada no lixo para ser tratada como um. É isso ou na minha família só tem pessoas amarguradas que destilam sua raiva em todos. Não sei qual opção seria pior.― Eu aprendo rápido ― digo.― E vai atrapalhar o trabalho de alguém que precisa parar só para ensinar a princesinha.― Pode deixar então.Murcho e saio, com um boa tarde bem mixuruca.Não vale a pena insistir. Sem contar que a pena na expressão da senhora Auro
Marcos CastroMeses antes...“Pode conversar comigo depois da aula?”Era o que estava escrito no bilhete que a loirinha mandou sua amiga entregar.― Diga a ela para me esperar no carvalho ― respondo a menina que espera uma resposta. Inclusive ela é uma das que fico.O carvalho é uma árvore imensa que tem no caminho da minha casa. Tão grande que virou ponto de referência.Pelas risadinhas, elas estão empolgadas.Quero só ver o que Ninha vai aprontar. Ninha é o apelido de Amelia, uma loirinha tímida da escola, um ano mais nova. Ela tem o maior jeito de ser virgem. Se rolar alguma coisa não vai passar de uns beijos e amassos.Como hoje deixei o cavalo, chego no carvalho ela já está com sua bicicleta cor de rosa.― Oi, Amelia. ― Chamo pelo nome. E ela parece gostar. Imaginei que seria assim. Já a ouvi reclamando do apelido. Sei como é chato as pessoas te chamarem por um nome que não gosta.― Oi, Marcos.― O que queria falar comigo?Ela olha para os próprios pés.― Morro de vergonha só de
Fabiana MedeirosCuidei da horta pelos próximos dias. Porém, senti falta de Tempestade, por isso fui até o estábulo na sexta-feira à noite e conversei com meu amigo equino.Não vi Marcos pelos próximos dias, e na escola ele me tratava como se eu fosse invisível. Muito diferente do cara que conversou comigo no estábulo. Não entendi bem porque dessa mudança. Talvez ele tenha levado a sério o que eu disse sobre não poder ser sua amiga.Na verdade, nesse momento, eu gostaria de ser amiga de Carla, ou de qualquer pessoa que possa me dar uma carona.Está chovendo.A aula acabou e estou impossibilitada de ir embora de bicicleta.Alguns alunos colocam seus materiais em sacolas e encaram a chuva, enquanto eu fico olhando, esperando passar.Carla finge que nem me vê quando passa e entra no seu carro. Para destilar seu veneno, ela até oferece carona para algumas meninas.Ali vai embora com um grupo de garotas no ônibus que traz os alunos da vila. Uma pena que as direções são opostas. Essa mulher
Marcos CastroFabiana Garcia de Medeiros.A filha da puta mais linda que já tive a chance de colocar meus olhos.Jeans, camisa azul quadriculada, botina, chapéu preto por cima do cabelo solto. Era a porra de uma deusa vindo em minha direção.O problema é que não sou o único a perceber. Vejo os olhares de todos por onde ela passa. Isso me deixa puto. Sei que ela não é minha, mas não consigo evitar de querer arrancar as bolas de cada peão que a come com os olhos.Sinto que estou laçado e ferrado.Limpo a garganta antes de dizer:― Está atrasada.― A culpa é sua. Não me disse que estaria aqui, tive que procurar por você nesses dez minutos de atraso... ― Ela para de falar, como se só agora se desse conta da presença da égua. ― Tempestade. Ohh! Eu vou poder montar ela?― Se ela deixar. — Dou de ombros, fingindo não ficar feliz com sua animação.Ela bate palmas, expressando sua empolgação. Tempestade relincha junto. Pelo jeito foi amor à primeira vista entre as duas.― Não liga, Guloso. Mul
Fabiana MedeirosDesde a aula de montaria que venho perdendo o sono e tendo pensamentos indevidos. A proximidade com aquele garoto está mexendo comigo. Pude sentir o poder dos seus músculos enquanto me ajudava a subir e descer do cavalo... e isso não sai da minha cabeça.As borboletas que nunca alugaram espaço no meu estômago, simplesmente decidiram aparecer. Invadiram geral, já fazendo festa.E agora toda noite sonho com Marcos. Sonhos nada decentes.Tudo isso agrava com o fato de que todos aqui dormem junto com as galinhas, e eu ainda não me acostumei. Dormem com as galinhas no sentido de dormir cedo, eles não dormem mesmo com as galinhas, seria engraçado ver minha vó toda elegante dormindo em um poleiro.Esta noite, mais uma vez sem sono, decidi aproveitar a lua cheia iluminado tudo e caminhei pelos arredores, até chegar a uma grande árvore. Como o livro estava nas minhas mãos e o celular no bolso, decidi gastar a bateria dele iluminando as páginas para ler.Estava na terceira pág
Fabiana MedeirosEstá bem, não vou mais negar... Marcos e eu nos tornamos amigos. A leitura nos aproximou. Desde a primeira vez que lemos a luz do celular que todas as noites nos encontramos para ler um pouco mais.Ou talvez não sejamos amigos... Estou confusa com meus sentimentos por ele.Não conversamos sobre coisas pessoais, apenas livros e coisas da fazenda e da escola.Eu não me abro com ele sobre minha vida pessoal e nem ele se abre. Inclusive tenho uma curiosidade que estou sem jeito de perguntar. Percebi isso desde o primeiro dia que o vi, Marcos usa perfume caro e roupas de marcas. Ele age diferente das pessoas daqui, onde a maioria tem dialeto característico e sotaque, ele parece alguém que foi educado em uma cidade grande, alguém com condições financeiras.Eu queria saber de onde ele tira isso.Ou seria melhor não saber?Resposta: seria melhor não saber.Eu realmente quis apagar do meu cérebro quando a pessoa menos indicada veio me responder essa questão.― Eu te vi conversa