Capítulo 3 - Avós paternos

Fabiana Medeiros

Meu pai não me levou ao aeroporto. E não deixou minha mãe me levar. Quando sai do quarto arrastando uma mala gigante, a governanta veio me dizer que eles saíram e que o motorista me levaria ao aeroporto. Também não vou me despedir dos meus irmãos. Nem sei onde estão.

Eu devia ter esperado por algo assim.

Nem forcei um sorriso, apenas segui como um zumbi até o avião particular.

O que eu poderia fazer de diferente? Me pergunto várias vezes.

A única resposta que tenho é que essa pode ser a chance de me livrar do desejo de agradar que finjo não sentir. Eu vou ser uma pessoa normal. Vou estudar e trabalhar. Eu não preciso de mansão, joias... nada disso. Só preciso de um canto para chamar de lar e um trabalho para chamar de meu. Não vai ser fácil convencer meus pais, mas quando terminar o ensino médio vou pedir para fazer faculdade no exterior e lá terei mais liberdade de moldar minha vida.

Foram poucas horas até o aeroporto da cidade de Belo Horizonte. O que demorou mesmo foi a viagem de ônibus até o vilarejo, onde fiz o trajeto até a fazenda na caminhonete do senhor Matias. Foi no vilarejo que meu sinal sumiu.

― Esse trem não presta na fazenda. Só na vila ― O senhor Matias percebe minha luta para mexer no celular. ― Se quiser ligar, só nos orelhão ou lá na casa grande. Seus vô deve deixar.

Eu tinha me esquecido completamente da falta de sinal nesse lugar. Agora só terei acesso as músicas que baixei, e adeus redes sociais. O que é de certa forma um alivio. Devo ser o assunto mais comentado.

Nem pensei na possibilidade de que ainda não tivesse sinal.

Meus pais já me trouxeram aqui. Na verdade trouxeram os gêmeos, eu vim porque eles não tinham desculpas para me deixar para trás.

Me lembro que naquela época eu quase fui atacada por um animal selvagem e um menino magrela me ajudou. Eu devia ter uns onze anos. Fiquei tão assustada naquela época que nem perguntei o nome dele. Às vezes ainda penso naquele dia, sinto que devo a minha vida àquele garoto com um facão quase do tamanho dele.

Quando chego na fazenda, meus avós e meus tios estão na sala esperando.

― A rameira chegou. ― Esse foi o cumprimento que recebi. Veio da minha avô.

Pelo jeito todos já devem saber o que houve. Todos me dedicam olhares acusadores enquanto minha avô balança um sino pequeno e uma mulher rechonchuda e com expressão doce chega.

― Dona Aurora, leva ela pro quarto. Deve tá cansada.

Não respondo nada. Pretendia desejar boa noite a todos quando cheguei, mas pelo jeito a minha caveira já estava no ponto.

Segui a senhora Aurora até um quarto no corredor do segundo andar.

A casa principal ― onde viverei por sei lá quanto tempo ― tem três andares. No primeiro sala, cozinha, lugares mais sociais, no segundo quartos e no terceiro escritórios, bibliotecas, sala de música. Tirando o escritório todos os ambientes lá são pouco utilizados, pelo menos foi o que percebi quando visitei.

― Seja bem-vinda, menina!

O sorriso da mulher foi tão gentil que tive que retribuir.

― Muito obrigada.

― Seus avós são gente que viveu a vida toda na roça. Tenha paciência com eles.

― Não se preocupe. Eu mereço tudo que vier.

― Claro que não, menina. Se arrepender de verdade, todo mundo tem direito ao perdão.

― A senhora sabe por que estou aqui sendo desprezada pela minha família? ― fico curiosa.

A mulher desvia o olhar e abre a boca com clara intenção de mentir.

― Não precisa dizer. Eu vou descansar agora. Boa tarde, Dona Aurora.

Não vejo ninguém depois da interação na sala. Meu jantar chega no quarto.

**

De manhã, acordo cedo, às oito. Por ser domingo todos devem dormir até tarde, então quero aproveitar para respirar um pouco de ar fresco sem olhares acusadores.

Ledo engano. Encontro a mesa de café da manhã posta e meus tios, primos e avós sentados.

― Já ia mandar acordar a princesa ― meu primo Samuel desaprova.

― Desculpe, não sabia que acordavam cedo no domingo.

― A missa começa nove, então come rápido e vai trocar de roupa. Nós vamos sair no máximo 08:40. Você não pode ir fantasiada de meretriz.

Olho meu pijama de calça e blusa. Se uma meretriz se vestir assim não conseguirá nada.

― Já terminei, vó. Posso ajudar ela a escolher algo decente. ― Uma loira fala. Se não me engano é Carla, uma prima, irmã de Samuel.

Acho que são eles, mas faz anos que não venho aqui.

― Ouviu sua prima, rápido.

Engulo um pedaço de bolo de fubá, chateada por não ter mais tempo ―  porque está delicioso ― e viro um copo de café com leite para empurrar.

Minha prima já está de pé. Mesmo que tenhamos meia hora só para trocar de roupa, ela está de pé. Pelo jeito nossa convivência não será boa.

Sob olhares desaprovadores, saio atrás dela, mas volto correndo e pego um pedaço de bolo para levar comigo.

É a senhora Aurora que serve, e ainda tenho tempo de vislumbrar seu sorriso com meu gesto.

― O que vocês costumam usar para missas? ― Tento puxar assunto com a prima enquanto subimos as escadas.

― Vestidos. É cega? Não viu como as mulheres na mesa estavam vestidas? ― diz ríspida. Me olhando com cara de nojo. Não que esteja com nojo, a expressão dela é que me dá nojo.

Entro no quarto e vou até o guarda-roupa embutido na parede. Minhas coisas não ocuparam quase nada do espaço. Tenho dois vestidos, um preto curto e um branco que b**e nos meus tornozelos.

― Vamos de carro? ―  pergunto esperando uma má resposta.

―  Sim. ―  Ela responde fuçando minhas coisas. Mexe nos meus cremes, maquiagem e joias.

Já que é assim e a estrada não tem muita poeira, coloco o vestido branco.

Ele é um pouco transparente, mas não muito e uso short e sutiã por garantia.

Ela me analisa, dá de ombros e saímos.

― Já começa pedindo perdão a Deus pelo que fez seu pai passar ― diz negando com um gesto de cabeça.

Fui ouvindo coisas assim, sobre como sou uma péssima filha, até chegar na igreja que fica no vilarejo.

Por sorte parece que eles não queriam que as pessoas soubessem o motivo de eu estar aqui, pois simplesmente falavam com os conhecidos que eu era uma neta querida que precisa ver o mundo real como todos da família. Se é assim, devem ter ameaçado os empregados para ficarem calados porque percebi que eles me olham estranho, como se soubessem. Aposto que sabem. Sou o assunto de suas fofocas.

Cínicos. Todos. A minha vida devia ser problema meu.

Na igreja, em uma conversa entre meu avô e o padre, descubro que vou começar na escola amanhã.

Fico me perguntando se ele iria me contar ou se eu teria que adivinhar.

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