Fabiana Medeiros
Minha chegada na escola é como todas dos clichês de alunas novas. Um tédio.
Tenho que me apresentar.
A primeira professora é de Literatura. Ela que me guia até a minha sala depois de uma conversa com a diretora.
― Essa é a Fabiana Garcia de Medeiros. Ela vai estudar conosco. ― Há um burburinho e a professora continua: ― Ela deve ser tratada como qualquer outra aluna. Nessa escola não temos tratamento especial independente de classe, cor ou qualquer outro.
Não faz? Acabou de fazer.
― Professora ― chamo, e ela se vira para mim. ― A senhora dá esse aviso em todas as apresentações de novos alunos?
Pelas risadinhas, os alunos perceberam o que eu quis dizer. Todos riram, exceto um, e não foi por nada do que eu disse. O cara estava com fones de ouvido, acho que nem ouviu. Com fones de ouvido em uma sala de aula onde a professora está presente. Pronto, já achei o bad boy do interior.
― Silêncio! ― ela exige da classe. Por ser muito branca, consigo ver seu rosto e pescoço vermelhos. Deve estar irada com que eu falei.
E como minha língua age mais rápido que meu cérebro, digo:
― Só acho que em uma escola onde coisas assim nunca aconteceu nem precisa de aviso.
Ela se abaixa e sussurra ao meu ouvido:
― Quer ser expulsa no primeiro dia?
Engulo em seco. Ninguém escuta, mas o uuuuu que fazem mostram que entenderam que eu estava me ferrando.
Meus avós me mandam para um colégio interno se eu for expulsa aqui. E adeus planos de liberdade no exterior.
― Não. Posso ir para o meu lugar?
― Se apresente e vá.
Como dizem: manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Falo brevemente sobre mim.
Ela me manda sentar uma cadeira na frente do cara de fones.
Moreno, bronzeado e musculoso. Lindo. Acho que já o vi em algum lugar. Quero me virar para trás e perguntar, mas tenho certeza que qualquer movimento meu é motivo para essa professora chamar meus avós. Então deixa para lá.
― Eu sou Alice. Alice Aguiar. A minha mãe trabalha na fazenda Raio de Lua. ― A morena ao meu lado se apresenta, com um sorriso que me faz saber exatamente quem é a mãe dela.
― Eu sou a... ah você deve ter ouvido. ― Me lembro do fiasco que foi a apresentação.
― Sim. ― Ela ri.
― Pode me chamar de Fabi ― digo.
― Eu não tenho apelido. ― Ela faz um bico involuntário. É fofo. ― Todos me chamam de Alice mesmo.
― Que tal se eu te chamar de Ali? ― Foi o primeiro apelido que me veio.
E lá estava o sorriso que ilumina todo o rosto.
― Eu gosto.
― Então Ali, sua mãe é a Dona Aurora?
― Sim. Ela trabalha na cozinha e ajuda a governanta.
― A conheci. Sua mãe foi bem gentil comigo. Eu...
Apesar de estamos cochichando a professora percebe os movimentos suspeitos e trata de manter a atenção em nós enquanto explica sobre o Romantismo no Brasil. O jeito é deixar a conversa para depois.
Quando ela sai, temos um intervalo de cinco minutos para beber água ou ir ao banheiro antes da próxima aula.
Eu saio com a Ali. Vamos até o bebedouro que fica no pátio da escola, conversando, e ela me apresenta algumas pessoas. Bianca, uma menina negra de cachos invejáveis e que não está em nossa turma, Edna, morena como nós e muito faladeira, vi ela na classe, a professora chamou sua atenção duas vezes, Isabel, uma loira com voz meio infantil que está na nossa turma e senta na frente. E um rapaz loiro chamado Edvaldo, mas que prefere ser chamado de Ed. Esse ela só me mostrou de longe. Enquanto as meninas acabaram marcando de nos ver no intervalo maior.
Depois de mais duas aulas temos o tal intervalo, onde as mulheres na cantina nos dão lanche.
É canjica. A canjica mais gostosa que já provei.
― Quer a minha? ― Ali brinca acompanhada das risadinhas de Edna, Bianca e Isabel, que realmente vieram sentar conosco.
Cubro a boca cheia para rir.
― Você está acostumada, não me julgue. A alimentação na minha casa é cheia de regras.
Vejo uma barreira humana passando. Os cabelos em um coque, possivelmente por causa do calor, jeans, a camisa branca com a logo da escola quase marcando seus músculos, e os fones no pescoço. É o cara que senta atrás de nós. Acho que ele não deve viver sem esse fone. E nem julgo, quase surtei ao ver que não poderia ouvir todas as músicas que gosto quando quiser.
― Tenho a impressão de que já vi esse cara em algum lugar. ― Deixo meu pensamento virar um sussurro.
― Entra na fila, novata. E vai para o final. ― Edna diz. E suspira. ― Marcos Castro é o sonho de todas aqui, inclusive meu.
― Calma! Não quero seu macho. ― Deus me livre de problema com homem agora. ― Eu não disse nesse sentido. Só tive a impressão mesmo. De garotos eu quero distância.
― E de garota? ― um babaca que ouviu a conversa se aproxima. É o tal Ed.
Presto atenção no jeito que Ali fica quando ele se aproxima. Ela gosta dele. Não consegue nem disfarçar.
Dou de ombros.
― Se for para namorar também estou fora.
― Vejo que a herdeira mais famosa da roça teve desilusões amorosas.
O tom que ele usa para chamar esse lugar de roça é depreciativo. Como se não morasse aqui.
― Os herdeiros são meus irmãos. ― As palavras saem mais amargas do que eu gostaria. ― Eu sou só a madame.
Para aliviar o meu tom, faço uma cara esnobe e rio. As meninas me acompanham na brincadeira.
Fico feliz de já ter encontrado colegas tão legais. Não é assim que acontece na ficção. Pelo menos dessa vez a realidade é melhor.
― Ah, esqueci de contar que meu irmão também trabalha na Raio de Lua. ― Ali muda o assunto. Raio de Lua é o nome da fazenda da minha família.
― Quem é seu irmão?
― O bad boy da nossa escola. Também temos no interior. Aqui o chamamos de Brutus. ― O cara provoca.
Ali segura minhas bochechas e vira meu pescoço para trás.
― Aquele. ― Aponta o cara em um grupinho.
Claro que seria ele. E pelo jeito não sou a única que o acho um projeto de bad boy.
E para deixar ainda mais claro que o garoto é fria, vejo uma menina se aproximar, entregar um papel e sair correndo para perto de um grupinho de meninas. Disfarçadamente, já que continuamos nossa conversa, vejo ele ler, rir, olhar para ela e negar com um gesto do dedo, embolar e jogar em uma lata que é usada como lixeira.
A menina corre e pega o pedaço de papel, acho que sabe que um daqueles moleques pode pegar para rir dela.
Fico imaginando o que deve estar escrito ali. Ela volta com as “amigas”. Pode ser impressão minha, mas a única que parece realmente infeliz no grupo é ela.
Família Castro...
Parece que os irmãos são muito diferentes.
Fabiana MedeirosAnos antes― Posso abrir os presentes? ― Meu irmão Bruno pede. Eles já estão com oito anos. E meu pai achou melhor comemorarmos o natal na fazenda.― Claro.Eles correm para a árvore e eu vou também, sem correr, sou mais velha e não posso agir como criança, é o que me disseram.Os presentes são dos nossos avós.Abro o meu e encontro exatamente o livro que comentei com minha mãe que queria ganhar. Abro um sorriso.Como minha avó sabia?A resposta sai dela.― Quem colocou esse livro na árvore? E livro lá é presente?Meu sorriso murcha e some.― Não foi a senhora que me deu? — pergunto decepcionada.― Eu não.― Você não comprou o presente dela? Mandei comprar pra todos os netos.― Esqueci. É muita coisa pra fazer.O presente estava com meu nome. E todo ano eles mandam os presentes e sempre recebo o que falo com minha mãe que queria.Eu sou criança, mas não sou burra.E o olhar de pena da minha mãe diz tudo. É ela que me presenteava, fingindo ser meus avós. Essa mulher qu
Fabiana MedeirosComo o horário de aula termina às 14hs, tenho grande parte da tarde livre. Hoje é sexta-feira e tirando as aulas passei a maior parte do tempo presa no quarto. Preciso mudar isso.Passo pela cozinha e encontro minha tia dando instruções sobre o jantar.― Boa tarde! ― cumprimento.As duas respondem. A senhora Aurora com um sorriso e minha tia com má vontade.― Tia, posso ajudar em alguma coisa na fazenda? Quando não estou estudando gostaria de fazer algo útil.― Você não sabe fazer nada. ― Ele responde com desdém. Juro que às vezes penso que fui adotada, ou achada no lixo para ser tratada como um. É isso ou na minha família só tem pessoas amarguradas que destilam sua raiva em todos. Não sei qual opção seria pior.― Eu aprendo rápido ― digo.― E vai atrapalhar o trabalho de alguém que precisa parar só para ensinar a princesinha.― Pode deixar então.Murcho e saio, com um boa tarde bem mixuruca.Não vale a pena insistir. Sem contar que a pena na expressão da senhora Auro
Marcos CastroMeses antes...“Pode conversar comigo depois da aula?”Era o que estava escrito no bilhete que a loirinha mandou sua amiga entregar.― Diga a ela para me esperar no carvalho ― respondo a menina que espera uma resposta. Inclusive ela é uma das que fico.O carvalho é uma árvore imensa que tem no caminho da minha casa. Tão grande que virou ponto de referência.Pelas risadinhas, elas estão empolgadas.Quero só ver o que Ninha vai aprontar. Ninha é o apelido de Amelia, uma loirinha tímida da escola, um ano mais nova. Ela tem o maior jeito de ser virgem. Se rolar alguma coisa não vai passar de uns beijos e amassos.Como hoje deixei o cavalo, chego no carvalho ela já está com sua bicicleta cor de rosa.― Oi, Amelia. ― Chamo pelo nome. E ela parece gostar. Imaginei que seria assim. Já a ouvi reclamando do apelido. Sei como é chato as pessoas te chamarem por um nome que não gosta.― Oi, Marcos.― O que queria falar comigo?Ela olha para os próprios pés.― Morro de vergonha só de
Fabiana MedeirosCuidei da horta pelos próximos dias. Porém, senti falta de Tempestade, por isso fui até o estábulo na sexta-feira à noite e conversei com meu amigo equino.Não vi Marcos pelos próximos dias, e na escola ele me tratava como se eu fosse invisível. Muito diferente do cara que conversou comigo no estábulo. Não entendi bem porque dessa mudança. Talvez ele tenha levado a sério o que eu disse sobre não poder ser sua amiga.Na verdade, nesse momento, eu gostaria de ser amiga de Carla, ou de qualquer pessoa que possa me dar uma carona.Está chovendo.A aula acabou e estou impossibilitada de ir embora de bicicleta.Alguns alunos colocam seus materiais em sacolas e encaram a chuva, enquanto eu fico olhando, esperando passar.Carla finge que nem me vê quando passa e entra no seu carro. Para destilar seu veneno, ela até oferece carona para algumas meninas.Ali vai embora com um grupo de garotas no ônibus que traz os alunos da vila. Uma pena que as direções são opostas. Essa mulher
Marcos CastroFabiana Garcia de Medeiros.A filha da puta mais linda que já tive a chance de colocar meus olhos.Jeans, camisa azul quadriculada, botina, chapéu preto por cima do cabelo solto. Era a porra de uma deusa vindo em minha direção.O problema é que não sou o único a perceber. Vejo os olhares de todos por onde ela passa. Isso me deixa puto. Sei que ela não é minha, mas não consigo evitar de querer arrancar as bolas de cada peão que a come com os olhos.Sinto que estou laçado e ferrado.Limpo a garganta antes de dizer:― Está atrasada.― A culpa é sua. Não me disse que estaria aqui, tive que procurar por você nesses dez minutos de atraso... ― Ela para de falar, como se só agora se desse conta da presença da égua. ― Tempestade. Ohh! Eu vou poder montar ela?― Se ela deixar. — Dou de ombros, fingindo não ficar feliz com sua animação.Ela bate palmas, expressando sua empolgação. Tempestade relincha junto. Pelo jeito foi amor à primeira vista entre as duas.― Não liga, Guloso. Mul
Fabiana MedeirosDesde a aula de montaria que venho perdendo o sono e tendo pensamentos indevidos. A proximidade com aquele garoto está mexendo comigo. Pude sentir o poder dos seus músculos enquanto me ajudava a subir e descer do cavalo... e isso não sai da minha cabeça.As borboletas que nunca alugaram espaço no meu estômago, simplesmente decidiram aparecer. Invadiram geral, já fazendo festa.E agora toda noite sonho com Marcos. Sonhos nada decentes.Tudo isso agrava com o fato de que todos aqui dormem junto com as galinhas, e eu ainda não me acostumei. Dormem com as galinhas no sentido de dormir cedo, eles não dormem mesmo com as galinhas, seria engraçado ver minha vó toda elegante dormindo em um poleiro.Esta noite, mais uma vez sem sono, decidi aproveitar a lua cheia iluminado tudo e caminhei pelos arredores, até chegar a uma grande árvore. Como o livro estava nas minhas mãos e o celular no bolso, decidi gastar a bateria dele iluminando as páginas para ler.Estava na terceira pág
Fabiana MedeirosEstá bem, não vou mais negar... Marcos e eu nos tornamos amigos. A leitura nos aproximou. Desde a primeira vez que lemos a luz do celular que todas as noites nos encontramos para ler um pouco mais.Ou talvez não sejamos amigos... Estou confusa com meus sentimentos por ele.Não conversamos sobre coisas pessoais, apenas livros e coisas da fazenda e da escola.Eu não me abro com ele sobre minha vida pessoal e nem ele se abre. Inclusive tenho uma curiosidade que estou sem jeito de perguntar. Percebi isso desde o primeiro dia que o vi, Marcos usa perfume caro e roupas de marcas. Ele age diferente das pessoas daqui, onde a maioria tem dialeto característico e sotaque, ele parece alguém que foi educado em uma cidade grande, alguém com condições financeiras.Eu queria saber de onde ele tira isso.Ou seria melhor não saber?Resposta: seria melhor não saber.Eu realmente quis apagar do meu cérebro quando a pessoa menos indicada veio me responder essa questão.― Eu te vi conversa
Fabiana MedeirosA casa principal, a escola, o vilarejo, todos estavam em alvoroço por um evento que acontecia anualmente. Eu nunca participei e não conhecia sobre, mas Ali fez questão de me dar cada detalhe dos últimos. Se resume a barraquinhas e uma enorme fogueira diante da igreja. As pessoas dançam, bebem, compram nas barraquinhas e curtem um show de algum artista.Como temos poucos eventos por aqui, também me empolguei e fiz questão de levar a Ali comigo para comprarmos alguma roupa no vilarejo. Eu ia pagar com o que guardei das mesadas da minha mãe, porém Marcos deu dinheiro a ela. A voz venenosa na minha mente me questiona se é dinheiro de Carla.― Olha esse vestido. Lindo! ― Ali roda com um vestido longo lilás na frente do corpo. É realmente lindo, mas não é meu estilo.― Ele combina com você ― digo com sinceridade. ― Aquela sua bota preta e o cabelo solto, vai ficar linda.― Vou levar. Quem sabe não encontro um cowboy pra mim.― O que acha? ― mostro uma saia longa com três b