Fabiana Medeiros
Anos antes
― Posso abrir os presentes? ― Meu irmão Bruno pede. Eles já estão com oito anos. E meu pai achou melhor comemorarmos o natal na fazenda.
― Claro.
Eles correm para a árvore e eu vou também, sem correr, sou mais velha e não posso agir como criança, é o que me disseram.
Os presentes são dos nossos avós.
Abro o meu e encontro exatamente o livro que comentei com minha mãe que queria ganhar. Abro um sorriso.
Como minha avó sabia?
A resposta sai dela.
― Quem colocou esse livro na árvore? E livro lá é presente?
Meu sorriso murcha e some.
― Não foi a senhora que me deu? — pergunto decepcionada.
― Eu não.
― Você não comprou o presente dela? Mandei comprar pra todos os netos.
― Esqueci. É muita coisa pra fazer.
O presente estava com meu nome. E todo ano eles mandam os presentes e sempre recebo o que falo com minha mãe que queria.
Eu sou criança, mas não sou burra.
E o olhar de pena da minha mãe diz tudo. É ela que me presenteava, fingindo ser meus avós. Essa mulher que se diz minha avó nunca me mandou um presente.
Uma parte do natal perdeu o significado para mim.
Agora...
Como a ida para o colégio de carona com minha prima foi um desastre de total silêncio, assim que terminou a aula eu esperei ela perto do carro já com fones em mãos e o celular em minhas músicas gravadas.
Ali e seu irmão foram embora a cavalo, como alguns alunos. Diferente de tudo que já vi. E tenho que confessar que o rapaz fica lindo montado no cavalo marrom. Parece ser imbecil, porém infelizmente isso não diminui sua beleza.
Fiquei torcendo para seus cabelos se soltarem e eu possa ver o quão longo são, mas ele sumiu de vista antes que isso acontecesse. É só uma bobagem. Imaginei que a visão seria como um comercial de tv.
Minha prima chega e entra no carro sem dizer nada. Antes que ela saia e me deixe para trás, entro no lado do passageiro. O veículo é uma Hilux.
Assim que coloco o cinto já dou play novamente nas músicas.
Estou curtindo as poucas músicas que tenho baixadas quando os fones são arrancados da minha orelha.
― Achei que tinha mais educação. Estou de dando carona e você ouvindo música ― reclama.
― Você não aceitou nenhuma das minhas tentativas de conversa no caminho, achei que seria igual.
Ela ri, sem nenhuma graça.
― Agora a culpa é minha.
― Você não gosta de mim pelo que aconteceu? ― pergunto logo. Não gosto de rodeios.
― Virei motorista e babá. O que acha?
― A escola não é longe. Vou pedir aos meus avós...
― Seus? ― Me interrompe. ― Você se acha muito. Age como se só existisse você nesse mundo.
Sinceramente, essa mulher está sendo hostil gratuitamente.
― Temos quase a mesma idade... Achei que poderíamos ser amigas. ― Última tentativa, para não dizerem que não tentei.
― Quem precisa de amigos é você. Eu já tenho muitos. E te aconselho a não começar pela família Castro.
A primeira coisa que me pergunto é se ela é uma das que estão na tal fila do bad boy boiadeiro.
É uma pergunta sem resposta, porque o resto do caminho vamos em silêncio. Mesmo eu não recolocando os fones. Também não respondo ao seu conselho.
Quando chegamos em casa, eu agradeço a carona e entro.
Sei exatamente o que preciso fazer.
― Posso entrar? ― pergunto abrindo parcialmente a porta do escritório, onde meu avô lia alguns papéis atrás da mesa de madeira.
― Entre. Aconteceu alguma coisa?
Eu sabia que ele seria mais receptivo, por isso o procurei. Ele é um homem duro, porém a minha avó é mesquinha e injusta. Tive várias provas disso. Ela tem preferência entre os netos, e eu não sou uma delas.
― Eu só gostaria de pedir permissão para ir à escola de bicicleta.
― Por que?
Coloco minha melhor máscara de boa neta.
― É perto. E fico com receio de que as pessoas pensem que há favorecimento por eu ser prima da Carla, que é funcionária. Não quero que por minha culpa a olhem de outra forma.
Desculpa de merda. Espero que ele caia.
― A Carla disse algo?
― Não. Ela foi muito gentil ― mentira ―, eu é que vi os olhares quando entrei no carro. Já baguncei a vida dos meus pais, não posso ser responsável por mais problemas.
― Que bom que pensa assim. Temos bicicleta em algum lugar da casa. Pergunte para a Dona Aurora.
― Obrigada, vô. Benção.
― Deus te abençoe.
Saio do escritório com um sorriso de orelha a orelha. Eu não preciso mais começar o meu dia com o péssimo humor da minha prima.
Encontro a senhora Aurora na cozinha.
― Olá! ― cumprimento.
― Oi, menina, posso ajudar?
― Eu queria uma bicicleta. Meu pai disse que a senhora sabe onde tem. Se puder me informar.
― Tem no celeiro. Quer que eu vou buscar?
― De jeito nenhum. Não quero dar trabalho. Só me dizer como chegar lá.
Ela explica, e não parece difícil.
Antes de sair, comento:
― Conheci a filha da senhora. A Ali é muito linda e gente boa.
― Ali?
― Sim. Ali de Alice.
Ela sorri. Toda orgulhosa.
― E conheceu o Marquinhos?
O arrogante projeto de bad boy? Claro. É o que penso, mas não digo.
― Não tivemos chance de conversar. É mais fácil fazer amizades com meninas quando se chega em um lugar novo.
Melhor evitar dizer o que realmente achei do filho dela.
― Sei como é. Mas logo vai ter tempo de conhecer o Marquinhos. Ele late, mas não morde. É um bom menino.
― Se for tão bom quanto a Ali a senhora merece os parabéns. ― Uma mulher entra na cozinha. ― Agora deixa eu ir lá buscar minha bicicleta.
Deixo a mulher com um sorriso de orelha a orelha, toda contente pelos elogios aos filhos.
A babaca aqui ainda deixa o sentimento amargo da inveja afetar. Meus pais nunca sorriram por mim assim. Mesmo que eu ganhe o prêmio Nobel, isso nunca vai acontecer.
Chego no celeiro sem dificuldade. Tem três bicicletas. Uma preta, uma vermelha e uma amarela que se vê de longe.
Fui primeiro na preta. Sem corrente. Impossível.
Parti para a vermelha. Sem freio. Melhor não arriscar.
E como só sobrou ela, analisei a amarela. Nada estragado. Vai ser ela mesmo. Chamativa demais, porém funcional.
Chegou a hora de usar a bike.
A estrada de terra batida e a brisa fresca da manhã são minhas companhias enquanto pedalo devagar. A bicicleta amarela com cestinha roda tranquilamente.
Tão chamativa, mas funciona perfeitamente.
Ao contrário do que pensei, o caminho até a escola é um pouco longo, de carro foi rápido, porém de bicicleta é quase meia hora.
A escola fica um pouco isolada entre a vila e a fazenda Raio de Lua. Perto dela apenas algumas fazendas menores e a fazenda de um senhor recluso, que é maior que a dos Garcia de Medeiros.
Chego parcialmente suada, passo por alguns alunos e cumprimento, enquanto finjo não ver outros que não cheguei a conversar nem para dar um oi.
Vou até o banheiro feminino e lavo meu rosto e pescoço.
Quando saio encontro Ali chegando e logo começamos a conversar sentadas em um banco feito de um tronco.
Ainda falta uns dez minutos para a primeira aula.
― Você e aquele cara de ontem... ― começo.
― Ed?
― Se for o que chegou insinuando que sou lésbica.
― Ele mesmo. O nome dele é Edvaldo, mas ele odeia e briga quando não chama ele de Ed. Te mostrei ele no intervalo da professora de literatura.
― Vocês tem alguma coisa?
― Por que? Você está interessada nele? ― o desespero na pergunta entrega.
― De jeito nenhum. Só fiquei curiosa. Vi a forma que olha para ele.
Ali coloca as duas mãos na cara.
― Sou tão transparente. Todo mundo deve saber do meu amor platônico por ele. Ed nunca me viu como uma possível namorada. Também ele é lindo e bem de vida, tem a mulher que quiser.
Me inclua fora dessa.
Não digo nada, até ela tirar as mãos do rosto.
― Você o conhece há mais tempo que eu, porém...
― O que?
― Eu senti algo estranho nele. Falsidade... ― começo, mas desisto. ― Ah, mas quem sou eu para dizer isso quando nem percebi que meu namorado era um canalha que só queria me usar para atingir meu pai.
Os olhos escuros de Ali se arregalam. Seus olhos são castanhos, assim como os meus, a diferença é que os dela são bem escuros e o meu tão claro que beira ao amarelado.
― Como assim? Agora vai ter que contar.
Acabo contando a ela tudo sobre Richard. Ela fica chocada. E diz que ainda é virgem. Que espera que a sua primeira vez seja linda.
Só para assustá-la eu aumentei mil vezes a dor do hímen rasgando.
Ela ficou mil vezes mais chocada. Ao ponto que tive que desmentir rindo muito. Afinal, o que sei sobre primeira vez? Meu primeiro boquete já foi um desastre colossal.
Ai o professor chegou e entramos na sala. Onde um moreno com expressão fechada já estava em seu lugar, com seus fones.
Fabiana MedeirosComo o horário de aula termina às 14hs, tenho grande parte da tarde livre. Hoje é sexta-feira e tirando as aulas passei a maior parte do tempo presa no quarto. Preciso mudar isso.Passo pela cozinha e encontro minha tia dando instruções sobre o jantar.― Boa tarde! ― cumprimento.As duas respondem. A senhora Aurora com um sorriso e minha tia com má vontade.― Tia, posso ajudar em alguma coisa na fazenda? Quando não estou estudando gostaria de fazer algo útil.― Você não sabe fazer nada. ― Ele responde com desdém. Juro que às vezes penso que fui adotada, ou achada no lixo para ser tratada como um. É isso ou na minha família só tem pessoas amarguradas que destilam sua raiva em todos. Não sei qual opção seria pior.― Eu aprendo rápido ― digo.― E vai atrapalhar o trabalho de alguém que precisa parar só para ensinar a princesinha.― Pode deixar então.Murcho e saio, com um boa tarde bem mixuruca.Não vale a pena insistir. Sem contar que a pena na expressão da senhora Auro
Marcos CastroMeses antes...“Pode conversar comigo depois da aula?”Era o que estava escrito no bilhete que a loirinha mandou sua amiga entregar.― Diga a ela para me esperar no carvalho ― respondo a menina que espera uma resposta. Inclusive ela é uma das que fico.O carvalho é uma árvore imensa que tem no caminho da minha casa. Tão grande que virou ponto de referência.Pelas risadinhas, elas estão empolgadas.Quero só ver o que Ninha vai aprontar. Ninha é o apelido de Amelia, uma loirinha tímida da escola, um ano mais nova. Ela tem o maior jeito de ser virgem. Se rolar alguma coisa não vai passar de uns beijos e amassos.Como hoje deixei o cavalo, chego no carvalho ela já está com sua bicicleta cor de rosa.― Oi, Amelia. ― Chamo pelo nome. E ela parece gostar. Imaginei que seria assim. Já a ouvi reclamando do apelido. Sei como é chato as pessoas te chamarem por um nome que não gosta.― Oi, Marcos.― O que queria falar comigo?Ela olha para os próprios pés.― Morro de vergonha só de
Fabiana MedeirosCuidei da horta pelos próximos dias. Porém, senti falta de Tempestade, por isso fui até o estábulo na sexta-feira à noite e conversei com meu amigo equino.Não vi Marcos pelos próximos dias, e na escola ele me tratava como se eu fosse invisível. Muito diferente do cara que conversou comigo no estábulo. Não entendi bem porque dessa mudança. Talvez ele tenha levado a sério o que eu disse sobre não poder ser sua amiga.Na verdade, nesse momento, eu gostaria de ser amiga de Carla, ou de qualquer pessoa que possa me dar uma carona.Está chovendo.A aula acabou e estou impossibilitada de ir embora de bicicleta.Alguns alunos colocam seus materiais em sacolas e encaram a chuva, enquanto eu fico olhando, esperando passar.Carla finge que nem me vê quando passa e entra no seu carro. Para destilar seu veneno, ela até oferece carona para algumas meninas.Ali vai embora com um grupo de garotas no ônibus que traz os alunos da vila. Uma pena que as direções são opostas. Essa mulher
Marcos CastroFabiana Garcia de Medeiros.A filha da puta mais linda que já tive a chance de colocar meus olhos.Jeans, camisa azul quadriculada, botina, chapéu preto por cima do cabelo solto. Era a porra de uma deusa vindo em minha direção.O problema é que não sou o único a perceber. Vejo os olhares de todos por onde ela passa. Isso me deixa puto. Sei que ela não é minha, mas não consigo evitar de querer arrancar as bolas de cada peão que a come com os olhos.Sinto que estou laçado e ferrado.Limpo a garganta antes de dizer:― Está atrasada.― A culpa é sua. Não me disse que estaria aqui, tive que procurar por você nesses dez minutos de atraso... ― Ela para de falar, como se só agora se desse conta da presença da égua. ― Tempestade. Ohh! Eu vou poder montar ela?― Se ela deixar. — Dou de ombros, fingindo não ficar feliz com sua animação.Ela bate palmas, expressando sua empolgação. Tempestade relincha junto. Pelo jeito foi amor à primeira vista entre as duas.― Não liga, Guloso. Mul
Fabiana MedeirosDesde a aula de montaria que venho perdendo o sono e tendo pensamentos indevidos. A proximidade com aquele garoto está mexendo comigo. Pude sentir o poder dos seus músculos enquanto me ajudava a subir e descer do cavalo... e isso não sai da minha cabeça.As borboletas que nunca alugaram espaço no meu estômago, simplesmente decidiram aparecer. Invadiram geral, já fazendo festa.E agora toda noite sonho com Marcos. Sonhos nada decentes.Tudo isso agrava com o fato de que todos aqui dormem junto com as galinhas, e eu ainda não me acostumei. Dormem com as galinhas no sentido de dormir cedo, eles não dormem mesmo com as galinhas, seria engraçado ver minha vó toda elegante dormindo em um poleiro.Esta noite, mais uma vez sem sono, decidi aproveitar a lua cheia iluminado tudo e caminhei pelos arredores, até chegar a uma grande árvore. Como o livro estava nas minhas mãos e o celular no bolso, decidi gastar a bateria dele iluminando as páginas para ler.Estava na terceira pág
Fabiana MedeirosEstá bem, não vou mais negar... Marcos e eu nos tornamos amigos. A leitura nos aproximou. Desde a primeira vez que lemos a luz do celular que todas as noites nos encontramos para ler um pouco mais.Ou talvez não sejamos amigos... Estou confusa com meus sentimentos por ele.Não conversamos sobre coisas pessoais, apenas livros e coisas da fazenda e da escola.Eu não me abro com ele sobre minha vida pessoal e nem ele se abre. Inclusive tenho uma curiosidade que estou sem jeito de perguntar. Percebi isso desde o primeiro dia que o vi, Marcos usa perfume caro e roupas de marcas. Ele age diferente das pessoas daqui, onde a maioria tem dialeto característico e sotaque, ele parece alguém que foi educado em uma cidade grande, alguém com condições financeiras.Eu queria saber de onde ele tira isso.Ou seria melhor não saber?Resposta: seria melhor não saber.Eu realmente quis apagar do meu cérebro quando a pessoa menos indicada veio me responder essa questão.― Eu te vi conversa
Fabiana MedeirosA casa principal, a escola, o vilarejo, todos estavam em alvoroço por um evento que acontecia anualmente. Eu nunca participei e não conhecia sobre, mas Ali fez questão de me dar cada detalhe dos últimos. Se resume a barraquinhas e uma enorme fogueira diante da igreja. As pessoas dançam, bebem, compram nas barraquinhas e curtem um show de algum artista.Como temos poucos eventos por aqui, também me empolguei e fiz questão de levar a Ali comigo para comprarmos alguma roupa no vilarejo. Eu ia pagar com o que guardei das mesadas da minha mãe, porém Marcos deu dinheiro a ela. A voz venenosa na minha mente me questiona se é dinheiro de Carla.― Olha esse vestido. Lindo! ― Ali roda com um vestido longo lilás na frente do corpo. É realmente lindo, mas não é meu estilo.― Ele combina com você ― digo com sinceridade. ― Aquela sua bota preta e o cabelo solto, vai ficar linda.― Vou levar. Quem sabe não encontro um cowboy pra mim.― O que acha? ― mostro uma saia longa com três b
Fabiana MedeirosEntro no meu quarto e fico andando de um lado para o outro, sem sono e sem conseguir tirar o que a cigana falou da cabeça. Será mesmo que ela montou aquilo com ele? E se não montou, o que significa ele ter aparecido e meu coração disparado? Não quero gostar de alguém que me manipula assim, uma vez foi o suficiente.Uma hora se passou desde que cheguei em casa e não sai do lugar. Sentada na cama, vejo o ponteiro dos segundos se movendo lento demais. Uma volta, duas voltas, três voltas...Um barulho chama a minha atenção na pequena varanda.Essa árvore ainda vai me fazer ter infarto. A cada vento que ela bate contra a madeira me assusto, principalmente à noite.O barulho insiste.Um som estranho. Como leves batidinhas no vidro.Não tem tanto vento.Abro a porta de vidro, meio tremula. Igualzinho as vítimas dos filmes de terror.― Árvore do demônio ― reclamo.Uma risada masculina forma um grito na minha garganta.Ele fica preso nela quando uma mão cobre minha boca.Aquel