Fabiana Medeiros
Como o horário de aula termina às 14hs, tenho grande parte da tarde livre. Hoje é sexta-feira e tirando as aulas passei a maior parte do tempo presa no quarto. Preciso mudar isso.
Passo pela cozinha e encontro minha tia dando instruções sobre o jantar.
― Boa tarde! ― cumprimento.
As duas respondem. A senhora Aurora com um sorriso e minha tia com má vontade.
― Tia, posso ajudar em alguma coisa na fazenda? Quando não estou estudando gostaria de fazer algo útil.
― Você não sabe fazer nada. ― Ele responde com desdém. Juro que às vezes penso que fui adotada, ou achada no lixo para ser tratada como um. É isso ou na minha família só tem pessoas amarguradas que destilam sua raiva em todos. Não sei qual opção seria pior.
― Eu aprendo rápido ― digo.
― E vai atrapalhar o trabalho de alguém que precisa parar só para ensinar a princesinha.
― Pode deixar então.
Murcho e saio, com um boa tarde bem mixuruca.
Não vale a pena insistir. Sem contar que a pena na expressão da senhora Aurora me deixa envergonhada.
Dou uma volta pelo lugar e chego aos estábulos. É imenso, como tudo nesse lugar.
Caminho vendo os cavalos em suas baias. Um mais lindo que o outro.
Chego no último. Uma égua de pelos branco e preto. É lindo. Até sua crina é nas duas cores.
Acaricio a cabeça do animal, sentindo a solidão tomar forma em mim.
― Eu iria gostar de cuidar de vocês. Mas parece que ninguém tem tempo para me ensinar a não fazer merda.
― Eu tenho.
Me afasto do animal bruscamente com o susto ao ouvir a voz masculina levemente rouca.
A égua relincha em protesto e o dono da voz se aproxima mais, rindo da situação.
― Acho que ela gostou de você ― diz alimentando a égua torrões de açúcar. ― Aqui, recompensa por aturar ficar presa hoje. Prometo que amanhã dou um jeito de fugir com você.
A interação dos dois é bastante interessante. Ela parece entender o que ele fala e concordar.
― Eu também gostei dela. ― Respondo ao seu comentário. ― Sabe o nome?
Ele dá um sorrisinho bem sacana.
― O meu ou o dela?
― O dela. ― Reviro os olhos. ― O seu eu soube sem precisar perguntar, bad boy do sertão. Ou Brutus para os íntimos.
Ele levanta a sobrancelha, mas não fala nada do tom de deboche em minha voz.
― O nome dela é Tempestade.
― Bem clichê. Mas esperava que uma preta se chamasse assim. Preta e brava.
― Brava ela não é. O nome Tempestade veio do fato de sempre se agitar durante tempestades.
― Eu te entendo. É aterrorizante. ― Volto a acariciar seu focinho.
O cara não parece tão bruto quanto fizeram parecer.
― Posso te pedir uma coisa em troca de te ensinar a cuidar deles? ― Me viro, curiosa pela mudança no rumo da conversa. ― Não se aproxime da minha irmã se a amizade não for verdadeira. Eu não quero ter que te matar e esconder o corpo.
Não há nenhum tom de brincadeira, ele está falando sério.
― A Ali é uma boa pessoa, diferente do irmão com tendencias assassinas. Não existe motivos para eu magoá-la. Desculpe decepcioná-lo, mas não sou a vilã de nenhum romance adolescente.
― Que bom! Detesto romances adolescentes. Prefiro livros de suspense, policial...
O susto me atinge.
― Você gosta de ler?
Tira esse sorriso da cara, Fabiana. Tem uma fila inteira pronta para arrancar seu couro se sequer começar uma amizade com esse homem.
― O que? Achou que eu era analfabeto?
— Nada disso. Eu... só não esperava que fosse alguém que ler sem ser por obrigação. — Sou sincera.
— Não conheço nada melhor que deitar sob uma árvore com um livro e só parar de ler quando escurecer.
Posso me apaixonar por ele? Só um pouquinho.
Nunca encontrei alguém que goste de ler assim. Até a Ali, eu perguntei e ela disse que prefere novelas de TV. Triste.
― Você parece empolgada — diz, sem me olhar, sua atenção no animal.
― Infelizmente é difícil achar quem goste tanto de ler assim. Pena que não posso ser sua amiga.
Ele franze a testa e se vira em minha direção.
― Não que eu queira ser seu amigo, mas por que não pode?
― Te respondo com outra pergunta: você já se deitou com a Carla? ― o jeito como ele passa as mãos nos cabelos amarrados diz tudo. ― Pois é. Não estou no melhor momento com minha família. Melhor evitar mais problemas. Se eu chegar perto de você aposto que será motivo para ela me odiar.
― Me enganei. Quando te vi na escola pensei que você não era o tipo que se importava com opiniões alheias.
― E não me importo.
― Eu não posso ser sua amiga... ― imita uma voz fina. ― Pareceu que se importa.
― Vai me ensinar ou não?
Ele dá de ombros para a mudança de assunto e começa a me explicar tudo que se faz em um estábulo. Em um certo momento ele me deixa sozinha para terminar de alimentar alguns cavalos. Diz que já estou pronta para andar sozinha. É a melhor sensação, ter alguém que te ensine e confie em seu aprendizado.
Para um bad boy, Marcos é muito paciente. Marrento, mas paciente.
Termino como ele me ensinou e volto para tomar banho e não me atrasar para o jantar.
Quando cheguei em casa no dia seguinte, minha tia estava me esperando com a novidade de que eu aprenderia a mexer na horta.
Posso estar sendo paranoica, mas algo em mim diz que a mudança se deu devido um certo cowboy ter me ensinado, acho que a filha dela ficou sabendo, não gostou e foi contar para a mãe.
Eu agradeci, sem muito animo. Já estava com planos de conversar sobre livros com Marcos. Até peguei o primeiro volume de Reino dos Mortos da biblioteca ontem à noite. Queria saber se ele leu, se gostou.
O objetivo não era fazer amizade com ele, mas isso foi antes de descobrir seu amor pelo mesmo que amo; livros.
Como aqui não pega internet nem sinal de telefone, redes sociais é uma lenda. Por sorte livros é o que não falta na biblioteca.
No dia seguinte passei no estabulo. Achei que era necessário pelo menos dar uma satisfação ao rapaz por ter me ajudado.
Ele não estava lá.
Fui direto para a horta.
É um pouco longe da casa principal, foi criada mais perto do riacho, por praticidade.
O lugar é lindo. Todo tipo de hortaliças, folhas tão grandes que dá dó de cortar. Um cheiro ótimo e um verde lindo.
Nem vi o tempo passar enquanto um casal na casa dos cinquenta anos que tomava conta da horta me ensinava tudo sobre cada planta.
Marcos CastroMeses antes...“Pode conversar comigo depois da aula?”Era o que estava escrito no bilhete que a loirinha mandou sua amiga entregar.― Diga a ela para me esperar no carvalho ― respondo a menina que espera uma resposta. Inclusive ela é uma das que fico.O carvalho é uma árvore imensa que tem no caminho da minha casa. Tão grande que virou ponto de referência.Pelas risadinhas, elas estão empolgadas.Quero só ver o que Ninha vai aprontar. Ninha é o apelido de Amelia, uma loirinha tímida da escola, um ano mais nova. Ela tem o maior jeito de ser virgem. Se rolar alguma coisa não vai passar de uns beijos e amassos.Como hoje deixei o cavalo, chego no carvalho ela já está com sua bicicleta cor de rosa.― Oi, Amelia. ― Chamo pelo nome. E ela parece gostar. Imaginei que seria assim. Já a ouvi reclamando do apelido. Sei como é chato as pessoas te chamarem por um nome que não gosta.― Oi, Marcos.― O que queria falar comigo?Ela olha para os próprios pés.― Morro de vergonha só de
Fabiana MedeirosCuidei da horta pelos próximos dias. Porém, senti falta de Tempestade, por isso fui até o estábulo na sexta-feira à noite e conversei com meu amigo equino.Não vi Marcos pelos próximos dias, e na escola ele me tratava como se eu fosse invisível. Muito diferente do cara que conversou comigo no estábulo. Não entendi bem porque dessa mudança. Talvez ele tenha levado a sério o que eu disse sobre não poder ser sua amiga.Na verdade, nesse momento, eu gostaria de ser amiga de Carla, ou de qualquer pessoa que possa me dar uma carona.Está chovendo.A aula acabou e estou impossibilitada de ir embora de bicicleta.Alguns alunos colocam seus materiais em sacolas e encaram a chuva, enquanto eu fico olhando, esperando passar.Carla finge que nem me vê quando passa e entra no seu carro. Para destilar seu veneno, ela até oferece carona para algumas meninas.Ali vai embora com um grupo de garotas no ônibus que traz os alunos da vila. Uma pena que as direções são opostas. Essa mulher
Marcos CastroFabiana Garcia de Medeiros.A filha da puta mais linda que já tive a chance de colocar meus olhos.Jeans, camisa azul quadriculada, botina, chapéu preto por cima do cabelo solto. Era a porra de uma deusa vindo em minha direção.O problema é que não sou o único a perceber. Vejo os olhares de todos por onde ela passa. Isso me deixa puto. Sei que ela não é minha, mas não consigo evitar de querer arrancar as bolas de cada peão que a come com os olhos.Sinto que estou laçado e ferrado.Limpo a garganta antes de dizer:― Está atrasada.― A culpa é sua. Não me disse que estaria aqui, tive que procurar por você nesses dez minutos de atraso... ― Ela para de falar, como se só agora se desse conta da presença da égua. ― Tempestade. Ohh! Eu vou poder montar ela?― Se ela deixar. — Dou de ombros, fingindo não ficar feliz com sua animação.Ela bate palmas, expressando sua empolgação. Tempestade relincha junto. Pelo jeito foi amor à primeira vista entre as duas.― Não liga, Guloso. Mul
Fabiana MedeirosDesde a aula de montaria que venho perdendo o sono e tendo pensamentos indevidos. A proximidade com aquele garoto está mexendo comigo. Pude sentir o poder dos seus músculos enquanto me ajudava a subir e descer do cavalo... e isso não sai da minha cabeça.As borboletas que nunca alugaram espaço no meu estômago, simplesmente decidiram aparecer. Invadiram geral, já fazendo festa.E agora toda noite sonho com Marcos. Sonhos nada decentes.Tudo isso agrava com o fato de que todos aqui dormem junto com as galinhas, e eu ainda não me acostumei. Dormem com as galinhas no sentido de dormir cedo, eles não dormem mesmo com as galinhas, seria engraçado ver minha vó toda elegante dormindo em um poleiro.Esta noite, mais uma vez sem sono, decidi aproveitar a lua cheia iluminado tudo e caminhei pelos arredores, até chegar a uma grande árvore. Como o livro estava nas minhas mãos e o celular no bolso, decidi gastar a bateria dele iluminando as páginas para ler.Estava na terceira pág
Fabiana MedeirosEstá bem, não vou mais negar... Marcos e eu nos tornamos amigos. A leitura nos aproximou. Desde a primeira vez que lemos a luz do celular que todas as noites nos encontramos para ler um pouco mais.Ou talvez não sejamos amigos... Estou confusa com meus sentimentos por ele.Não conversamos sobre coisas pessoais, apenas livros e coisas da fazenda e da escola.Eu não me abro com ele sobre minha vida pessoal e nem ele se abre. Inclusive tenho uma curiosidade que estou sem jeito de perguntar. Percebi isso desde o primeiro dia que o vi, Marcos usa perfume caro e roupas de marcas. Ele age diferente das pessoas daqui, onde a maioria tem dialeto característico e sotaque, ele parece alguém que foi educado em uma cidade grande, alguém com condições financeiras.Eu queria saber de onde ele tira isso.Ou seria melhor não saber?Resposta: seria melhor não saber.Eu realmente quis apagar do meu cérebro quando a pessoa menos indicada veio me responder essa questão.― Eu te vi conversa
Fabiana MedeirosA casa principal, a escola, o vilarejo, todos estavam em alvoroço por um evento que acontecia anualmente. Eu nunca participei e não conhecia sobre, mas Ali fez questão de me dar cada detalhe dos últimos. Se resume a barraquinhas e uma enorme fogueira diante da igreja. As pessoas dançam, bebem, compram nas barraquinhas e curtem um show de algum artista.Como temos poucos eventos por aqui, também me empolguei e fiz questão de levar a Ali comigo para comprarmos alguma roupa no vilarejo. Eu ia pagar com o que guardei das mesadas da minha mãe, porém Marcos deu dinheiro a ela. A voz venenosa na minha mente me questiona se é dinheiro de Carla.― Olha esse vestido. Lindo! ― Ali roda com um vestido longo lilás na frente do corpo. É realmente lindo, mas não é meu estilo.― Ele combina com você ― digo com sinceridade. ― Aquela sua bota preta e o cabelo solto, vai ficar linda.― Vou levar. Quem sabe não encontro um cowboy pra mim.― O que acha? ― mostro uma saia longa com três b
Fabiana MedeirosEntro no meu quarto e fico andando de um lado para o outro, sem sono e sem conseguir tirar o que a cigana falou da cabeça. Será mesmo que ela montou aquilo com ele? E se não montou, o que significa ele ter aparecido e meu coração disparado? Não quero gostar de alguém que me manipula assim, uma vez foi o suficiente.Uma hora se passou desde que cheguei em casa e não sai do lugar. Sentada na cama, vejo o ponteiro dos segundos se movendo lento demais. Uma volta, duas voltas, três voltas...Um barulho chama a minha atenção na pequena varanda.Essa árvore ainda vai me fazer ter infarto. A cada vento que ela bate contra a madeira me assusto, principalmente à noite.O barulho insiste.Um som estranho. Como leves batidinhas no vidro.Não tem tanto vento.Abro a porta de vidro, meio tremula. Igualzinho as vítimas dos filmes de terror.― Árvore do demônio ― reclamo.Uma risada masculina forma um grito na minha garganta.Ele fica preso nela quando uma mão cobre minha boca.Aquel
Fabiana MedeirosComo resolver as coisas com Marcos sem ter que olhar na sua cara arrogante? Sem falar com ele.Minha cabeça vai explodir buscando uma solução.Quero muito um jeito de acabar com esse mal entendido, mas ainda estou irada pelo episódio na escola.― Me ajuda a pensar, Tempestade. ― Acaricio o animal.Aproveitei que Marcos não estava para passar por aqui e dar um oi aos meus amigos de quatro patas.Uma ideia surge. Não para resolver as coisas com Marcos, para esfriar a cabeça mesmo.― Que tal um passeio?Ela relincha.Sou muito doida por considerar isso um sim?Marcos me ensinou a colocar a sela, então não preciso dele.Saio do estabulo com a égua e vou para o mesmo lugar onde a montei pela primeira vez.Cavalgo por um longo tempo. Já nos tornamos amigas, não tenho medo.Encontro um córrego, onde a prendo perto para que descanse, coma e beba água. Queria deixar ela solta, mas se ela pensar em fugir não me sinto capaz de pegar.Deito um pouco perto e acabo dormindo.Acordo