Ano 2022
Marcos Castro
"Nunca vi ninguém viver tão feliz como eu no sertão, perto de uma mata e de um ribeirão"
Olho de um lado para outro e saio do meio do feno.
— Pode vim — chamo.
A loirinha sai de trás do monte de feno tirando a sujeira do vestido de menina de família.
Safada. Essa garota não tem nada de menina, muito menos de família.
O sorriso de satisfação e esperança brincando nos seus lábios me chama a atenção. É isso que me incomoda. Elas parecem não entender que é apenas sexo. Não tenho planos de me amarrar tão cedo. Eu já tenho uma família que precisa de mim, meu foco são eles. Além de que sou jovem demais para algo que não seja sem compromisso.
Carla, filha de um dos Medeiros, tem quase vinte anos, meio distante dos meus dezessete. Ela sempre viveu na fazenda e não quis fazer faculdade. Prefere reinar aqui, onde, mesmo sem faculdade, trabalha na escola como inspetora desde que se formou no ensino médio.
― Sua calça tá aberta, Brutos.
Fecho o botão do meu jeans.
— Some com isso. — Ela sabe bem que me refiro a camisinha usada jogada no chão.
Brutos... odeio esse apelido. Mas aqui é assim; quanto mais você diz odiar um apelido mais ele pega. Culpa da minha irmã e sua obsessão pelas novelas que assiste nas casas dos vizinhos. Segundo ela, me pareço com personagem de alguma que não lembro o nome, e nem faço questão de lembrar. Só que minha querida m*****a irmã, me chamou assim na escola. Ai já viu... Esse virou o meu nome.
— Isso é nojento — ela reclama, se abaixando e pegando com as pontas dos dedos.
— E engole por que? — debocho.
— Pra te agradar, seu grosso.
— Comeria merda pra me agradar? — digo sem paciência e caminho em direção ao cavalo. Já fiz o que tinha que fazer aqui.
Ela me imita e caminha até o seu.
Não vejo o que fez com a camisinha. É melhor que tenha me obedecido e sumido com isso. Não quero ver essas coisas no pasto.
Essa mulher é irritante. Pelo menos não diz nada na hora do sexo. Fodemos quando surge o desejo e a oportunidade. Não há muitas opções por esses lados.
Carla já tentou me convencer a ser só dela, até mesmo usando o dinheiro da família dela como incentivo... Até parece que sou homem de ser sustentado por mulher. Para isso tenho duas pernas e dois braços... posso muito bem trabalhar pelo meu futuro.
Sem dizer mais nada, atiço o cavalo para que se distancie dela.
Chego na fazenda, mais especificamente nos estábulos, onde ajudo a cuidar dos animais e em alguns casos domá-los. Ainda tenho muito trabalho antes de voltar para casa e enfiar a cara nos estudos.
Tião está sentado perto do trator, mexendo em algumas ferramentas.
― Aqui ― jogo a peça no chão. Estou chegando do vilarejo, onde comprei a peça de trator que estava quebrada.
― Cê demorou ― reclama.
E nem era meu trabalho.
― Tive que ir até o vilarejo, porra. ― Solto impaciente.
Ele nega com a cabeça, olhando algo atrás de mim.
― Buceta agora é vilarejo.
Me viro e vejo Carla.
Que merda! Eu falei pra ela chegar dez minutos depois. Se ela pensa que vai me encurralar mostrando a todos que abriu as pernas para mim está enganada. Nem mesmo um Medeiros é capaz de mudar meus planos de estudar e tirar meus pais da vida de trabalho pesado que essa família impõe.
― A peça tá ai... não tá. Cala a boca e faz seu trabalho. Vou fazer o meu.
Ele balança os ombros.
― Cuido da minha vida. Vai que cê se torna o dono desses trem tudo aqui por causa da branquela.
― Nunca vai acontecer.
― Se cê diz.
― Vou terminar de dar comida aos animais.
Nem viro as costas e escuto:
― Enquanto cê fudia a casa grande virou um pandemônio.
O homem na casa dos quarenta é mais fofoqueiro dos arredores, sabe de tudo e de todos.
― Por que? ― Se eu não perguntar esse idiota não fala. Ele é do tipo que só conta a fofoca toda depois que perguntam.
Não que eu goste de fofoca, mas Carla chegar logo atrás de mim dispara um alerta. Não quero ser assunto na casa dos Medeiros.
Engulo um suspiro quando ele diz:
― A filha legítima tá pra chegar. Num sei que diabo que aconteceu, mas tão dizendo que o pai dela a mandou pra cá por algum motivo. Todo mundo foi avisado que não é pra tratar diferente.
Duvido. Quando a garota chegar vão comer na mão dela igual fazem com Carla. Essa família sabe ser arrogante.
Dou de ombros.
― Vamos trabalhar que preciso estudar. Ainda não me formei pra sumir daqui.
Tião só dá uma risadinha.
― Vai lá, douto Marquinhos.
Quando volto para casa o assunto é o mesmo: a chegada da tal Fabiana Garcia de Medeiros.
― Ela vai estuda na mesma sala que ocê, meu filho. ― Mamãe comenta. ― Eu lembro da última vez que ela veio aqui, cês ainda eram bem pequenos.
― Soube disso ― digo sem muito interesse. Aproveito a chegada barulhenta da minha irmã Alice e aviso que vou estudar.
Eu me lembro da herdeira. A menina intrometida que se embrenhou no mato atrás de um filhote de jaguatirica e deu de cara com uma mãe nada feliz.
Se eu não estivesse procurando lenha para minha mãe, talvez o embate entre criança e animal não tivesse terminado bem. Usei o facão pra espantar o bicho. E a mal agradecida só saiu correndo, sem nem um “obrigada”.
Não me interesso pelos problemas dessa família. Mas parece que todos querem saber os problemas que fizeram ela vir. Em poucas horas já ouvi que a garota é viciada, que está grávida e que os pais a estão afastando de algum sem futuro.
Aposto que amanhã nem vou me lembrar do que ouvi.
Minha vida é simples. Não me meto nessas picuinhas. Estudar pra dar uma vida melhor aos meus pais, trabalhar pelo mesmo motivo e transar entre um intervalo e outro. Porque não sou de ferro, e adoro a “fruta”. Esse é meu foco.
Fabiana MedeirosMeu pai não me levou ao aeroporto. E não deixou minha mãe me levar. Quando sai do quarto arrastando uma mala gigante, a governanta veio me dizer que eles saíram e que o motorista me levaria ao aeroporto. Também não vou me despedir dos meus irmãos. Nem sei onde estão.Eu devia ter esperado por algo assim.Nem forcei um sorriso, apenas segui como um zumbi até o avião particular.O que eu poderia fazer de diferente? Me pergunto várias vezes.A única resposta que tenho é que essa pode ser a chance de me livrar do desejo de agradar que finjo não sentir. Eu vou ser uma pessoa normal. Vou estudar e trabalhar. Eu não preciso de mansão, joias... nada disso. Só preciso de um canto para chamar de lar e um trabalho para chamar de meu. Não vai ser fácil convencer meus pais, mas quando terminar o ensino médio vou pedir para fazer faculdade no exterior e lá terei mais liberdade de moldar minha vida.Foram poucas horas até o aeroporto da cidade de Belo Horizonte. O que demorou mesmo
Fabiana MedeirosMinha chegada na escola é como todas dos clichês de alunas novas. Um tédio.Tenho que me apresentar.A primeira professora é de Literatura. Ela que me guia até a minha sala depois de uma conversa com a diretora.― Essa é a Fabiana Garcia de Medeiros. Ela vai estudar conosco. ― Há um burburinho e a professora continua: ― Ela deve ser tratada como qualquer outra aluna. Nessa escola não temos tratamento especial independente de classe, cor ou qualquer outro.Não faz? Acabou de fazer.― Professora ― chamo, e ela se vira para mim. ― A senhora dá esse aviso em todas as apresentações de novos alunos?Pelas risadinhas, os alunos perceberam o que eu quis dizer. Todos riram, exceto um, e não foi por nada do que eu disse. O cara estava com fones de ouvido, acho que nem ouviu. Com fones de ouvido em uma sala de aula onde a professora está presente. Pronto, já achei o bad boy do interior.― Silêncio! ― ela exige da classe. Por ser muito branca, consigo ver seu rosto e pescoço verm
Fabiana MedeirosAnos antes― Posso abrir os presentes? ― Meu irmão Bruno pede. Eles já estão com oito anos. E meu pai achou melhor comemorarmos o natal na fazenda.― Claro.Eles correm para a árvore e eu vou também, sem correr, sou mais velha e não posso agir como criança, é o que me disseram.Os presentes são dos nossos avós.Abro o meu e encontro exatamente o livro que comentei com minha mãe que queria ganhar. Abro um sorriso.Como minha avó sabia?A resposta sai dela.― Quem colocou esse livro na árvore? E livro lá é presente?Meu sorriso murcha e some.― Não foi a senhora que me deu? — pergunto decepcionada.― Eu não.― Você não comprou o presente dela? Mandei comprar pra todos os netos.― Esqueci. É muita coisa pra fazer.O presente estava com meu nome. E todo ano eles mandam os presentes e sempre recebo o que falo com minha mãe que queria.Eu sou criança, mas não sou burra.E o olhar de pena da minha mãe diz tudo. É ela que me presenteava, fingindo ser meus avós. Essa mulher qu
Fabiana MedeirosComo o horário de aula termina às 14hs, tenho grande parte da tarde livre. Hoje é sexta-feira e tirando as aulas passei a maior parte do tempo presa no quarto. Preciso mudar isso.Passo pela cozinha e encontro minha tia dando instruções sobre o jantar.― Boa tarde! ― cumprimento.As duas respondem. A senhora Aurora com um sorriso e minha tia com má vontade.― Tia, posso ajudar em alguma coisa na fazenda? Quando não estou estudando gostaria de fazer algo útil.― Você não sabe fazer nada. ― Ele responde com desdém. Juro que às vezes penso que fui adotada, ou achada no lixo para ser tratada como um. É isso ou na minha família só tem pessoas amarguradas que destilam sua raiva em todos. Não sei qual opção seria pior.― Eu aprendo rápido ― digo.― E vai atrapalhar o trabalho de alguém que precisa parar só para ensinar a princesinha.― Pode deixar então.Murcho e saio, com um boa tarde bem mixuruca.Não vale a pena insistir. Sem contar que a pena na expressão da senhora Auro
Marcos CastroMeses antes...“Pode conversar comigo depois da aula?”Era o que estava escrito no bilhete que a loirinha mandou sua amiga entregar.― Diga a ela para me esperar no carvalho ― respondo a menina que espera uma resposta. Inclusive ela é uma das que fico.O carvalho é uma árvore imensa que tem no caminho da minha casa. Tão grande que virou ponto de referência.Pelas risadinhas, elas estão empolgadas.Quero só ver o que Ninha vai aprontar. Ninha é o apelido de Amelia, uma loirinha tímida da escola, um ano mais nova. Ela tem o maior jeito de ser virgem. Se rolar alguma coisa não vai passar de uns beijos e amassos.Como hoje deixei o cavalo, chego no carvalho ela já está com sua bicicleta cor de rosa.― Oi, Amelia. ― Chamo pelo nome. E ela parece gostar. Imaginei que seria assim. Já a ouvi reclamando do apelido. Sei como é chato as pessoas te chamarem por um nome que não gosta.― Oi, Marcos.― O que queria falar comigo?Ela olha para os próprios pés.― Morro de vergonha só de
Fabiana MedeirosCuidei da horta pelos próximos dias. Porém, senti falta de Tempestade, por isso fui até o estábulo na sexta-feira à noite e conversei com meu amigo equino.Não vi Marcos pelos próximos dias, e na escola ele me tratava como se eu fosse invisível. Muito diferente do cara que conversou comigo no estábulo. Não entendi bem porque dessa mudança. Talvez ele tenha levado a sério o que eu disse sobre não poder ser sua amiga.Na verdade, nesse momento, eu gostaria de ser amiga de Carla, ou de qualquer pessoa que possa me dar uma carona.Está chovendo.A aula acabou e estou impossibilitada de ir embora de bicicleta.Alguns alunos colocam seus materiais em sacolas e encaram a chuva, enquanto eu fico olhando, esperando passar.Carla finge que nem me vê quando passa e entra no seu carro. Para destilar seu veneno, ela até oferece carona para algumas meninas.Ali vai embora com um grupo de garotas no ônibus que traz os alunos da vila. Uma pena que as direções são opostas. Essa mulher
Marcos CastroFabiana Garcia de Medeiros.A filha da puta mais linda que já tive a chance de colocar meus olhos.Jeans, camisa azul quadriculada, botina, chapéu preto por cima do cabelo solto. Era a porra de uma deusa vindo em minha direção.O problema é que não sou o único a perceber. Vejo os olhares de todos por onde ela passa. Isso me deixa puto. Sei que ela não é minha, mas não consigo evitar de querer arrancar as bolas de cada peão que a come com os olhos.Sinto que estou laçado e ferrado.Limpo a garganta antes de dizer:― Está atrasada.― A culpa é sua. Não me disse que estaria aqui, tive que procurar por você nesses dez minutos de atraso... ― Ela para de falar, como se só agora se desse conta da presença da égua. ― Tempestade. Ohh! Eu vou poder montar ela?― Se ela deixar. — Dou de ombros, fingindo não ficar feliz com sua animação.Ela bate palmas, expressando sua empolgação. Tempestade relincha junto. Pelo jeito foi amor à primeira vista entre as duas.― Não liga, Guloso. Mul
Fabiana MedeirosDesde a aula de montaria que venho perdendo o sono e tendo pensamentos indevidos. A proximidade com aquele garoto está mexendo comigo. Pude sentir o poder dos seus músculos enquanto me ajudava a subir e descer do cavalo... e isso não sai da minha cabeça.As borboletas que nunca alugaram espaço no meu estômago, simplesmente decidiram aparecer. Invadiram geral, já fazendo festa.E agora toda noite sonho com Marcos. Sonhos nada decentes.Tudo isso agrava com o fato de que todos aqui dormem junto com as galinhas, e eu ainda não me acostumei. Dormem com as galinhas no sentido de dormir cedo, eles não dormem mesmo com as galinhas, seria engraçado ver minha vó toda elegante dormindo em um poleiro.Esta noite, mais uma vez sem sono, decidi aproveitar a lua cheia iluminado tudo e caminhei pelos arredores, até chegar a uma grande árvore. Como o livro estava nas minhas mãos e o celular no bolso, decidi gastar a bateria dele iluminando as páginas para ler.Estava na terceira pág