Depois que eu saí dessa cidade, há cinco anos, não esperava voltar. Claro que no começo eu quis voltar, quis voltar para os meus pais, minhas amigas, quis muito ter minha vida de volta. Mas a vida tratou de enterrar esses sentimentos dentro de mim de um jeito muito doloroso.
A ideia de voltar logo nessas circunstâncias só piorava tudo, mas meu pai precisava de mim então eu ia ser forte e encarar, ia enfrentar o que fosse preciso, engolir meus fantasmas e pesadelos por ele.
Meu irmão tinha acabado de descobrir que Helen, sua mulher, estava grávida e eu não podia estragar a comemoração deles porque papai estava tendo problemas com a bebida de novo.
Na verdade, ele já vinha dando trabalho há muito tempo, desde que mamãe morreu, nós só não tínhamos ideia de que estava piorando. Então assim que Janice, me ligou dizendo que ele tinha ido parar no hospital depois de beber horrores e se machucar, eu soube que precisava intervir. Ainda mais quando ele decidiu despedi-la, a mulher que trabalhava para minha família desde que eu me entendia por gente, quem tinha ajudado a me criar, ele só podia estar maluco, ou o álcool tinha acabado com seu juízo perfeito.
A essa altura ele já estava de volta em casa e eu torcia para que não estivesse bebendo novamente, a última coisa que eu precisava agora era ter que lidar com ele bêbado.
Esperei na calçada enquanto o taxista tirava minha mala do carro, encarando a casa fechada com as espessas cortinas marrons cobrindo as janelas altas. Ainda era a mesma casa azul clara, onde eu tinha crescido, mas havia algo sobre ela agora que estava diferente, eu não sabia dizer o quê. Talvez fosse eu que estivesse mais velha e tudo parecesse diferente.
Passei pelo pequeno gramado, onde às flores que minha mãe costumava plantar não estavam mais lá, pelo menos a grama tinha sido aparada recentemente.
O ar quente e fétido me recebeu assim que abri a porta da frente, com certeza ele não colocava o lixo para fora há um bom tempo, provável que desde que demitiu a Janice. Senti também que meu pai não estava abrindo portas e janelas para arejar a casa, deixando o abafado incômodo.
— Pai? — chamei, deixando a mala na entrada e fui seguindo para a sala, mas o avistei antes que fosse longe. — Pai! — gritei, quando vi seu corpo caído no chão.
Corri até ele e me joguei ao seu lado, erguendo seu pulso para sentir os batimentos. Consegui respirar aliviada, estava fraco, mas ele estava vivo. O sacudi e não tive nenhuma resposta, uma garrafa em cima do tapete chamou minha atenção, o uísque já estava menos da metade.
Sabíamos que a morte de mamãe acabaria com ele, mas nunca imaginei que ele chegaria a esse estado. Eles eram inseparáveis, se conheciam desde cedo e quando o casamento aconteceu eles já se amavam há muitos anos.
— Pai — murmurei, acariciando seus cabelos que tinham ficado mais grisalhos desde a última vez que o vi, as rugas ainda mais acentuadas mesmo ele estando apagado.
Minha mãe tinha partido no ano passado, depois de lutar contra um câncer ela finalmente conseguiu descanso, mas eu acredito que se ela soubesse como meu pai reagiria, iria querer lutar mais um pouco para dar forças a ele, pois ela fazia tudo por esse homem.
Peguei em seus braços e comecei a puxá-lo da melhor maneira que consegui, até o quarto no andar de baixo, o quarto que mamãe tinha passado meses lutando contra aquela m*****a doença.
O levantei aos poucos já empurrando seu corpo em cima da cama e o arrumei da melhor forma que consegui.
Tudo isso precisava mudar, ele precisava de ajuda profissional!
Sai derrotada e comecei a puxar a mala até o meu antigo quarto, mas parei chocada na porta assim que a abri. Tudo estava igual, minha mãe não tinha mexido em nada, não tinha uma foto ou ursinho faltando, até mesmo as cortinas e jogo de cama eram os mesmos que eu me lembrava.
Eu não podia dormir ali, naquele vórtice de memórias e lembranças. Me virei para o quarto de hóspedes rapidamente e joguei minhas coisas lá. Sabia que seria difícil quando eu chegasse aqui, mas não esperava que mamãe tivesse deixado meu quarto intocado por todo esse tempo.
Respirei fundo. Eu necessitava focar, fazer o que tinha ido fazer e sumir dali o mais depressa possível.
Fui em busca de algo para comer, depois disso poderia tentar uma conversa com meu pai, eu esperava que ele aceitasse facilmente se mudar comigo sem discussões ou resistência, assim eu poderia ficar de olho nele.
Mas para minha surpresa os armários estavam vazios e nas prateleiras da despensa não havia nada melhor do que feijões e algum tipo de cereal, que já deveria ter estragado.
Por Deus, eu pensei que no mínimo ele estivesse se alimentando direito!
Bati com força as portas e sai suspirando frustrada. A cidade tinha alguns mercados pequenos, mas apenas um supermercado e ir aos menores iria ativar a rádio fofoca da cidade mais rápido do que eu queria, pelo menos no maior deles eu poderia me misturar. Então eu só tinha uma opção.
Na garagem achei a velha picape estacionada, tudo naquele lugar me lembraria de coisas que tentei esquecer nesses cinco anos, e fiquei surpresa quando ela ligou e consegui sair de casa com ela.
Depois de estacionar nos fundos do supermercado caminhei de cabeça baixa pelos corredores, com o capuz do moletom por cima da minha cabeça, tentando parecer o mais discreta possível.
Claro que as chances das pessoas me encararem por parecer uma maluca vestida assim naquele calor eram enormes, mas ainda assim eu poderia evitar ser reconhecida.
— Você pode pegar pra mim? — Uma voz doce soou do meu lado. — Eu disse que não podia alcançar, mas meu irmão falou que se eu quisesse teria que pegar — a pequena menina falou, apontando para o pacote de biscoitos um pouco acima da altura dos seus bracinhos esticados.
Eu lhe entreguei e um sorriso banguela apareceu, me fazendo sorrir também enquanto ela saía saltitando.
— Cara você quase me fez esquecer o leite, Carla me mataria. — Ouvi aquela voz que eu conhecia bem de mais e que queria esquecer.
Me virei encarando a prateleira à minha frente enquanto ele atravessava correndo o corredor em que eu estava.
Carla? Então era isso, ele estava com ela afinal?
Não, eu não queria saber disso! Não era da minha conta! Respirei fundo e corri para o primeiro caixa que vi vazio.
Tantas pessoas para eu encontrar quando chegasse à cidade e eu tinha que ver justo ele, que bela merda!
Ouvi cochichos e senti que todo meu corpo começava a esquentar. Talvez não fosse de mim que estavam falando. Respire Emily, só respire!
— Emily? — Escutei um murmuro mais alto e continuei no lugar enquanto embalava minhas compras, assim que joguei as sacolas no carrinho me virei para correr, mas ele estava me encarando a dois caixas de distância com seus amigos.
Nossos olhos se encontraram por uma fração de segundos e eu me arrependi de não estar de óculos escuros.
Fugi rápido antes que eu fosse mais ridícula do que já tinha sido.
— Droga! Droga! — gritei, quando já estava dentro do carro. — Respire, isso acabou. Você é uma adulta agora. — repeti, olhando para mim mesma no espelho do carro.
Eu vaguei pelos corredores do supermercado me certificando que tinha pegado tudo das duas listas. Bruno era responsável por pegar todas as coisas de Carla, mas ele falava tanto que sempre esquecia alguma coisa.— Cara que calor dos infernos, como aquela maluca está aguentando? — ele apontou para uma mulher no fim do corredor, usando uma calça jeans e moletom com o capuz cobrindo o rosto. — Vamos logo passar no caixa, quero poder chegar em casa a tempo de ver o jogo.Por um momento meu coração palpitou no peito, quase como um aviso, mas assim que a criança parou ao lado dela conversando eu esqueci tudo. Não era minha garota, nunca seria. Minha garota estava em São Paulo, feliz com o namorado advogado, curtindo a vida de cidade grande.— Mais alguma coisa? — Kelly, a atendente perguntou me trazendo de volta a realidade.— Cara, o leite! — gritei quando a menina correu me fazendo lembrar de Felipe. — Carla me mataria se eu esquecesse.Corri atravessando o corredor e ainda olhei de relanc
Eu já não devia me sentir tão afetada assim por ele, mas ali estava eu na entrada de casa, trancada no carro chorando e socando o volante. — Vamos lá Emily! Você tem que tomar as rédeas disso. — gritei comigo mesma e saí do carro decidida a esquecer tudo aquilo, a tentar com mais afinco tirar meu pai dessa cidade, só tinha chegado a algumas horas, não podia né desesperar e chorar. Peguei rapidamente as sacolas no porta-malas, antes que algum dos vizinhos viesse me abordar. — Então foi você quem me tirou do chão! — a voz do meu pai chamou minha atenção assim que fechei a porta da frente de casa. — O que está fazendo aqui? — Eu vim lhe visitar e nós precisamos conversar. — comecei tentando parecer decidida. — Não me venha com essa, tenho certeza que Janice já abriu aquela boca grande e é só por isso que você está aqui! — ele resmungou, sem me olhar diretamente nenhuma vez. Mas eu não podia culpá-lo quando eu fazia o mesmo. — Eu só vou conversar com você depois que tomar um banho e
Acordei sem a menor vontade de me levantar, era quase impossível continuar dormindo nessa cidade por muito tempo depois do nascer do sol, pois os pássaros e o calor acordam qualquer um, mesmo assim me mantive na cama por mais uma hora depois que acordei. A porta do quarto do meu pai ainda estava fechada, e eu ia dar a ele o tempo necessário até que estivesse pronto para finalmente conversarmos. Então encarei a cozinha: "Você não estava aqui!" as palavras dele rodavam em minha cabeça e voltavam para me acertar como um tapa na cara. "Não finja que se importa!". Era mais difícil encarar a verdade de frente do que eu pensei, mas antes que eu me entregasse aos pensamentos errôneos e depressivos a campainha tocou. Janice não iria bater, ela tinha a chave e havia me prometido não contar a ninguém que eu estava aqui. Então quem diabos poderia ser? Fiquei parada na porta esperando que batessem de novo e bateram, mais forte dessa vez. — Emily Carvalho, eu sei que você está aí dentro e não v
ANOS ATRÁSTempo... era tudo o que precisava ultimamente e o que não estava tendo.As aulas do cursinho, junto com o começo das aulas na escola e todo estresse de "o que eu vou cursar na faculdade", estavam acabando comigo. Então me desculpem todos, mas eu iria ter um bom momento esse final de semana.Há meses eu não ia a uma festa, mas hoje tinha decidido ir. Com meus pais fora da cidade e Fernando na faculdade tudo ficava mais fácil. Eu estava no último ano da escola finalmente e merecia um pouco de diversão.Eu estava dançando no meio da sala na casa de John, tentando extravasar toda a energia acumulada e acabar com todo o estresse que vinha me consumindo.— Olha só, eu vou ficar com Maicon essa noite, então o Vitor é todo seu. — Bete gritou, para ser ouvida por cima da música alta me pegando de surpresa.Os meninos vinham trazendo bebidas e olhando para Vitor ele não era alguém que me chamava a atenção, mas não era de se jogar fora. Eu ainda estava obcecada com o deus grego v
MARCOSBianca tinha estado de plantão na noite passada, mas isso não me impediu de ir direto ao seu trabalho perguntar o que Emily estava fazendo de volta a cidade.Eu estava cheio de esperança que ela tivesse voltado de vez, para ficar. Parte minha imaginava que talvez ela estivesse sofrendo pelo um término recente, mas ao mesmo tempo eu ficava feliz porque aí ela estaria livre para ser reconquistada.Sempre detestei ver qualquer cara tocando-a, mesmo antes que começassemos a ficar, algo dentro de mim sempre gritou que ela deveria ser protegida, guardada. Emily era pura, inocente e doce, deveria se manter assim, mas eu não resisti.Depois do dia que senti seus lábios eu soube que não poderia voltar atrás e deixar que outros seguissem beijando minha garota, que assim como qualquer outra tinha desejos, mesmo que estivesse começando a descobri-los, e que iria encontrar em qualquer outro garoto ou homem que ela quisesse.Mas eu jamais deixaria outro tocá-la, ela era minha e de ninguém ma
Entrei em casa tentando me manter calma, as coisas não iam se resolver do dia para a noite. Papai não ia deixar de me odiar e simplesmente voltar a confiar em mim, eu precisava merecer tudo outra vez.Se eu tivesse voltado para a cidade e ficado com minha mãe quando ela ficou doente nada disso estaria acontecendo. Ao menos ela entendeu o porquê eu precisava ficar longe e me perdoou, eu só não entendia porque meu pai não podia fazer o mesmo.A casa estava escura, com as cortinas ainda fechadas, e o cheiro de bebida ainda estava impregnado naquele lugar.— É isso! — falei determinada, eu ia fazer uma bela faxina e deixar a luz entrar naquelas paredes. Isso me manteria ocupada e mostraria para o meu velho que eu não iria desistir, não estava indo embora tão cedo.Encarei aquele sofá iluminado por minhas lembranças e pela luz do sol, que finalmente atravessavam as janelas. Se eu pudesse me esquecer de todas elas, apagar cada uma daquelas memórias, do mesmo jeito como um simples fechar
Corri o mais rápido que pude daquele lugar, eu tinha sido estúpida o suficiente para ter ido até ali, isso era bem feito pra mim.Mesmo com a distância consegui ver a semelhança deles, o mesmo tom de cabelo e o rosto redondo de Carla. Filho da mãe desgraçado!— Emy? — Ouvi os gritos. — Emily! — Virei bem a tempo de ver que Bete corria pelo estacionamento em minha direção. — Não acredito que é você sua grande vaca. Onde se meteu e porque não veio me ver? — ela gritou mesmo sem me alcançar.— Quando você chegou aqui? — consegui falar antes que nossos corpos se chocassem. Depois de Bianca ela era a única com quem ainda tinha contato nessa cidade. — Porque não me contou que tinha voltado?— Você não foi a primeira a me falar da sua vinda para cá também. E voltar pra cidade não é a novidade mais legal para sair por aí espalhando.— Vai por mim, eu sei. O que fez com seu cabelo? — Encarei as madeixas que antes eram constantemente pintadas de ruivo natural agora no seu tom real de loiro
ANOS ATRÁS— AI MEU DEUS! — Bete gritou pela milésima vez. — Não acredito que você dormiu com Marcos.— Fala baixo sua maluca. E não, eu não dormi com ele... — Apesar de eu não querer contar tudo isso para ela na escola, a ansiedade foi maior do que minha força de vontade.— No sentido literal da palavra sim, aconteceu. — ela sussurrou, atingindo um tom dramático.— Nós passamos a noite juntos, só isso — sussurrei. Não queria que todos na escola ficassem sabendo, não porque me envergonhasse do que tinha feito, mas sim as porque garotas que ficavam com Marcos ganhavam um "alvo" para garotos. Era incrível como todos os outros caras simplesmente passavam a enxergar a garota depois disso. No fundo eu queria gritar para todos que havíamos passado a noite juntos. — Ele me beijou, me abraçou... foi incrível.— Ok, ok apaixonadinha, vai com calma Emy. Sabe que Marcos não é do tipo que namora, não vá começar a criar esperanças, não quero que você se machuque. Por mais que ele seja gato, n