Acordei sem a menor vontade de me levantar, era quase impossível continuar dormindo nessa cidade por muito tempo depois do nascer do sol, pois os pássaros e o calor acordam qualquer um, mesmo assim me mantive na cama por mais uma hora depois que acordei.
A porta do quarto do meu pai ainda estava fechada, e eu ia dar a ele o tempo necessário até que estivesse pronto para finalmente conversarmos.
Então encarei a cozinha: "Você não estava aqui!" as palavras dele rodavam em minha cabeça e voltavam para me acertar como um tapa na cara. "Não finja que se importa!". Era mais difícil encarar a verdade de frente do que eu pensei, mas antes que eu me entregasse aos pensamentos errôneos e depressivos a campainha tocou.
Janice não iria bater, ela tinha a chave e havia me prometido não contar a ninguém que eu estava aqui. Então quem diabos poderia ser? Fiquei parada na porta esperando que batessem de novo e bateram, mais forte dessa vez.
— Emily Carvalho, eu sei que você está aí dentro e não vou embora sem dar uma boa olhada nessa sua cara! — a voz de Bianca encheu meus ouvidos.
Abri rapidamente a porta e a vi. Seus cabelos castanhos e os belos olhos azuis dos Almeida, eu quis desabar no mesmo instante, mas ela me conhecia muito bem, pois me puxou para seus braços antes que eu me debulhasse em lágrimas na sua frente.
— Eu preciso sair daqui! — murmurei, ainda grudada em seu pescoço e não precisou mais nada para que ela me arrastasse para fora de casa até sua picape.
Bianca dirigiu sem me questionar, não falamos nada durante o caminho e eu agradeci, pois precisava do ar limpo batendo no rosto e de um pouco de silêncio, já que meus pensamentos gritavam incessantes.
Demorou mais do que eu me lembrava para chegarmos a uma das lanchonetes da cidade, Rosa fazia um dos melhores bolos e eu queria muito comer algo desde ontem à noite. A ideia de encarar a todos ainda me aterrorizava, mas de certa forma a presença de Bianca ao meu lado me dava forças.
— Ok, vamos lá pro fundo querida. — ela disse, abrindo a porta e depois me empurrando até uma das mesas escondidas. — Você precisa comer e muito. — Meu sorriso forçado saiu antes mesmo que ela deixasse a mesa e fosse fazer o pedido. — E então mocinha quando chegou a cidade?
— Ontem. — murmurei, e mantive minha cabeça baixa para fugir dos olhares das pessoas em volta. — E me arrependi no mesmo instante que coloquei os pés em casa.
— Tão rápido assim? Soube que seu pai está com problemas, mas não imaginei que estivesse assim. — Eu sabia que ela estava sendo sincera, era uma das poucas pessoas que eu ainda podia manter minha fé sem me decepcionar.
— Eu quero levá-lo embora, ficar naquela casa não está fazendo nenhum bem a ele.
— Nem para você. — ela soltou antes mesmo que pudesse se controlar. — Era isso que você não queria me contar semana passada quando nos falamos no telefone? Porque se for, já deveria saber que nessa cidade nada fica guardado por muito tempo.
— As coisas não estão saindo como eu planejei, já era para eu ter dado o fora daqui ontem. Quem foi que te contou que eu estava aqui? — Mesmo eu já tendo minhas suspeitas eu precisava saber.
— Marcos. — falou, e rapidamente encheu a boca com pão para fugir do assunto. Era isso então, ele tinha ido atrás de Bi para falar que eu estava de volta. — Ele queria saber o que você está fazendo na cidade, na verdade todo mundo quer. — Antes que conseguisse responder as panquecas foram colocadas na nossa frente.
— Então é verdade que está de volta a cidade. — a garçonete, que reconheci como Sara, uma colega de turma do meu irmão, falou. Ela tinha um olho roxo e eu quis perguntar o que tinha acontecido e se ela estava bem, mas me contive, velhos hábitos de cidade pequena sempre acabavam voltando. — Vai ficar por muito tempo?
— Espero que não. — murmurei, para que apenas elas duas ouvissem, mas todos estavam com os olhos em nós. Ela se limitou a acenar com a cabeça e sair. — O que aconteceu com ela?
Sara era uma das garotas mais lindas da cidade, longos cabelos loiros, olhos verdes claro, mas o que mais chamava a atenção era o quanto ela podia ser doce e amigável.
— Longa história, mas sabe o David? O marido? Se mostrou um verdadeiro cretino nesses anos. — Estava chocada, eles eram sem dúvidas o casal perfeito da cidade, mas pelo jeito eu não era a única com problemas grandes por aqui. — O garoto dela é um amor e com certeza vai ser um profissional do futebol, você precisa ver. Falando em ver, vamos até o clube hoje à noite, você precisa conhecer o Joshua antes que ele vá embora.
— Não sabia que ele estava de folga, então mocinha o que está fazendo aqui? Deveria estar com seu namorado.
— Ele pode estar no exército e morar em outro país, mas com certeza eu o vi mais nesses anos do que vi você. — ela resmungou, com seu dom de fazer uma reprimenda soar doce. — Não adianta, não vai fugir de mim tão fácil.
Tomamos café em meio a risadas, as primeiras que eu dava desde que decidi vir para cá. Era difícil ficar por perto de Bianca e a leveza dela não te contagiar.
Janice tinha razão quanto a diferença da cidade, mas eram as pessoas que tinham mudado. Cinco anos é tempo suficiente para grandes mudanças.
— Obrigada pelo café e a gente se vê por aí, talvez, enquanto eu ainda estiver na cidade. — me despedi, já pulando do carro para evitar que ela me pedisse para sair com a noite.
— Por aí nada, passo aqui as sete e não adianta dizer não porque você vai! — ela ordenou, e já ia saindo com a picape, mas parou e colocou a cabeça para fora de sua janela. — Ei Emy, pega leve com seu pai. Ele só precisa de tempo.
Eu ia esperar, o tempo que fosse preciso. Já havia perdido minha mãe, não ia perder ele também.
ANOS ATRÁSTempo... era tudo o que precisava ultimamente e o que não estava tendo.As aulas do cursinho, junto com o começo das aulas na escola e todo estresse de "o que eu vou cursar na faculdade", estavam acabando comigo. Então me desculpem todos, mas eu iria ter um bom momento esse final de semana.Há meses eu não ia a uma festa, mas hoje tinha decidido ir. Com meus pais fora da cidade e Fernando na faculdade tudo ficava mais fácil. Eu estava no último ano da escola finalmente e merecia um pouco de diversão.Eu estava dançando no meio da sala na casa de John, tentando extravasar toda a energia acumulada e acabar com todo o estresse que vinha me consumindo.— Olha só, eu vou ficar com Maicon essa noite, então o Vitor é todo seu. — Bete gritou, para ser ouvida por cima da música alta me pegando de surpresa.Os meninos vinham trazendo bebidas e olhando para Vitor ele não era alguém que me chamava a atenção, mas não era de se jogar fora. Eu ainda estava obcecada com o deus grego v
MARCOSBianca tinha estado de plantão na noite passada, mas isso não me impediu de ir direto ao seu trabalho perguntar o que Emily estava fazendo de volta a cidade.Eu estava cheio de esperança que ela tivesse voltado de vez, para ficar. Parte minha imaginava que talvez ela estivesse sofrendo pelo um término recente, mas ao mesmo tempo eu ficava feliz porque aí ela estaria livre para ser reconquistada.Sempre detestei ver qualquer cara tocando-a, mesmo antes que começassemos a ficar, algo dentro de mim sempre gritou que ela deveria ser protegida, guardada. Emily era pura, inocente e doce, deveria se manter assim, mas eu não resisti.Depois do dia que senti seus lábios eu soube que não poderia voltar atrás e deixar que outros seguissem beijando minha garota, que assim como qualquer outra tinha desejos, mesmo que estivesse começando a descobri-los, e que iria encontrar em qualquer outro garoto ou homem que ela quisesse.Mas eu jamais deixaria outro tocá-la, ela era minha e de ninguém ma
Entrei em casa tentando me manter calma, as coisas não iam se resolver do dia para a noite. Papai não ia deixar de me odiar e simplesmente voltar a confiar em mim, eu precisava merecer tudo outra vez.Se eu tivesse voltado para a cidade e ficado com minha mãe quando ela ficou doente nada disso estaria acontecendo. Ao menos ela entendeu o porquê eu precisava ficar longe e me perdoou, eu só não entendia porque meu pai não podia fazer o mesmo.A casa estava escura, com as cortinas ainda fechadas, e o cheiro de bebida ainda estava impregnado naquele lugar.— É isso! — falei determinada, eu ia fazer uma bela faxina e deixar a luz entrar naquelas paredes. Isso me manteria ocupada e mostraria para o meu velho que eu não iria desistir, não estava indo embora tão cedo.Encarei aquele sofá iluminado por minhas lembranças e pela luz do sol, que finalmente atravessavam as janelas. Se eu pudesse me esquecer de todas elas, apagar cada uma daquelas memórias, do mesmo jeito como um simples fechar
Corri o mais rápido que pude daquele lugar, eu tinha sido estúpida o suficiente para ter ido até ali, isso era bem feito pra mim.Mesmo com a distância consegui ver a semelhança deles, o mesmo tom de cabelo e o rosto redondo de Carla. Filho da mãe desgraçado!— Emy? — Ouvi os gritos. — Emily! — Virei bem a tempo de ver que Bete corria pelo estacionamento em minha direção. — Não acredito que é você sua grande vaca. Onde se meteu e porque não veio me ver? — ela gritou mesmo sem me alcançar.— Quando você chegou aqui? — consegui falar antes que nossos corpos se chocassem. Depois de Bianca ela era a única com quem ainda tinha contato nessa cidade. — Porque não me contou que tinha voltado?— Você não foi a primeira a me falar da sua vinda para cá também. E voltar pra cidade não é a novidade mais legal para sair por aí espalhando.— Vai por mim, eu sei. O que fez com seu cabelo? — Encarei as madeixas que antes eram constantemente pintadas de ruivo natural agora no seu tom real de loiro
ANOS ATRÁS— AI MEU DEUS! — Bete gritou pela milésima vez. — Não acredito que você dormiu com Marcos.— Fala baixo sua maluca. E não, eu não dormi com ele... — Apesar de eu não querer contar tudo isso para ela na escola, a ansiedade foi maior do que minha força de vontade.— No sentido literal da palavra sim, aconteceu. — ela sussurrou, atingindo um tom dramático.— Nós passamos a noite juntos, só isso — sussurrei. Não queria que todos na escola ficassem sabendo, não porque me envergonhasse do que tinha feito, mas sim as porque garotas que ficavam com Marcos ganhavam um "alvo" para garotos. Era incrível como todos os outros caras simplesmente passavam a enxergar a garota depois disso. No fundo eu queria gritar para todos que havíamos passado a noite juntos. — Ele me beijou, me abraçou... foi incrível.— Ok, ok apaixonadinha, vai com calma Emy. Sabe que Marcos não é do tipo que namora, não vá começar a criar esperanças, não quero que você se machuque. Por mais que ele seja gato, n
Quando cheguei em casa só queria ficar dentro do carro para sempre, até criar raízes ali, ou até que meus pensamentos cessassem. Mas eu tinha uma faxina inacabada para terminas, um sofá destruído para jogar fora e um pai doente para cuidar.Me arrastei sem ânimo para dentro e a imagem que encontrei me fez congelar no lugar, meu pai estava sentado no sofá de trapos assistindo televisão, milagrosamente parecia sóbrio, mas eu duvidava muito que isso fosse de verdade.— Imaginei que ainda estivesse por aqui, fiz o jantar. — ele disse, sem tirar os olhos da tela para me ver.— O senhor está se sentindo melhor? — perguntei esperançosa, se ele finalmente estivesse sóbrio poderíamos ter a conversa que estava adiando, com sorte poderíamos sair da cidade ainda esse fim de semana. — Podemos conversar agora?— Primeiro você vai comer, não quero mais ninguém morrendo por aqui. — ele murmurou, ainda focado na televisão que passava algo sobre a vida das formigas, com certeza meu pai não estava p
ANOS ATRÁSFazia dois meses que eu e Marcos ficávamos escondidos pelos cantos. Ninguém além de seu amigo Carlos, Bete e Bi sabiam o que estávamos fazendo. Eles que nos davam cobertura.Apesar de passar a maior parte do tempo juntos, às vezes saíamos sozinhos para manter a faixada. Não queríamos os comentários rondando a cidade de novo, especialmente Marcos, ele insistia que não queria chamar a atenção.— Você vai comigo na festa da Amanda. Vocês duas vão. — Bete disse incisiva, enquanto escolhia uma roupa.Ela já tinha jogado mais roupas para fora do guarda-roupa, do que eu poderia contar.— Não mesmo, sem chance. — Bi resmungou. — Eu tenho prova amanhã e já passei o sábado no lago com vocês, preciso estudar essa noite.— Posso ajudar você se qui...— Nem pensar Emily! Isso é uma estratégia para fugir de mim e correr para o Marcos! — ela rosnou como a leoa que era, já decidindo o que iria acontecer essa noite.— Ele vai estar fora da cidade hoje, então não viaje. Se quer que e
Não sei a que horas peguei no sono, depois de entrar na banheira e ficar mergulhada até o nariz por horas, fui para a cama e me joguei nela. Eu queria acabar com aquele pesadelo, não podia pensar pois não queria procurar soluções ou motivos que justificassem Marcos ter sido um cretino comigo. Se o fizesse poderia acabar entendendo e o perdoando.Era isso o que meses de terapia tinham me feito enxergar, aparentemente eu não queria quebrar o elo com Marcos, eu precisava odiá-lo, ou do contrário nada me ligaria a ele.— Já chega! — gritei comigo. — Não preciso de elo nenhum, meu ódio por ele não é infundado. — repeti, encarando o teto.Joguei as cobertas para o lado decidida a mostrar para meu pai que não desistiria dele. Já tinha perdido minha mãe, não o perderia também.Enquanto descia as escadas barulhos vindo do jardim me chamaram a atenção. Seria um milagre meu pai ter acordado sóbrio e com pique suficiente de cuidar do jardim à essa hora. Se fosse isso me dizia que ele estava melho