Capítulo II

Eu vaguei pelos corredores do supermercado me certificando que tinha pegado tudo das duas listas. Bruno era responsável por pegar todas as coisas de Carla, mas ele falava tanto que sempre esquecia alguma coisa.

— Cara que calor dos infernos, como aquela maluca está aguentando? — ele apontou para uma mulher no fim do corredor, usando uma calça jeans e moletom com o capuz cobrindo o rosto. — Vamos logo passar no caixa, quero poder chegar em casa a tempo de ver o jogo.

Por um momento meu coração palpitou no peito, quase como um aviso, mas assim que a criança parou ao lado dela conversando eu esqueci tudo. Não era minha garota, nunca seria. Minha garota estava em São Paulo, feliz com o namorado advogado, curtindo a vida de cidade grande.

— Mais alguma coisa? — Kelly, a atendente perguntou me trazendo de volta a realidade.

— Cara, o leite! — gritei quando a menina correu me fazendo lembrar de Felipe. — Carla me mataria se eu esquecesse.

Corri atravessando o corredor e ainda olhei de relance para a mulher misteriosa, não queria ser intrometido, mas dificilmente as pessoas se vestiam assim em São Fernando. Ou era um usuário de droga, ou alguém que estava fugindo da polícia. Não sabia qual das duas opções serviram para ela, mas não era nada boa eu tinha certeza.

Quando voltei ela já não estava mais lá, mas vi os caras apontando para o outro caixa, meus olhos se desviaram rapidamente e eu avistei as costas da desconhecida de moletom.

— É ela, eu tenho certeza! — Bruno cochichou e eu semicerrei os olhos tentando ver melhor a mulher.

— De quem vocês estão falando? — mas ao invés de ganhar uma resposta ele falou mais alto.

— Emily? — que porra era aquela? Alguma pegadinha daqueles dois? Não seria a primeira vez.

Mas a mulher se virou e nossos olhares se encontraram. Merda era ela! Era ela de verdade. Meu coração disparou no peito enquanto eu esquadrinhava o rosto branco e bem cuidado, as bochechas grandes e os olhos castanhos que eu amava.

Emily estava de volta. Minha Emy! Mas antes que eu pudesse me recuperar e fazer alguma coisa, ela pegou as sacolas no balcão e saiu em disparada.

— Desde quando ele voltou? Será que o senhor Miguel...

— Não! — interrompi antes que ele falasse alguma besteira. — O Miguel está bem, eu vi ele ontem a noite.

— Então o que será que ela quer aqui depois desses cinco anos. — Bruno me olhou com uma expressão culpada, ele tinha me ajudado a quebrar o coração dela e tinha acompanhado meu sofrimento todos esses anos longe da minha garota.

— Não tenho ideia. Mas se tem uma pessoa que sabe o que ela veio fazer na cidade é a Bianca.

Ia sair daqui direto falar com minha irmã, eu nunca perguntei nada de Emy para ela durante esses cinco anos, me mantive firme em não demonstrar nada. Mas estava na hora disso mudar, se ela estava de volta era minha chance de fazer certo dessa vez, de mostrar o quanto eu a amo!

ANOS ATRÁS

 — Emmy, já deu sua hora — Fernando, meu irmão falou, já me empurrando para fora da festa.

 — Qual é Fe? Só mais um pouco — implorei para ele, fazendo minha melhor expressão de amorzinho. 

 — Nem mais dez segundos. Arraste sua bunda daqui antes que o papai me coloque de castigo por sua causa.

 — Ok, ok. Só me deixe achar Bete — resmunguei, e corri a procura daquela maluca, que só podia estar pendurada com Brian. — Aí está você. — A encontrei na varanda, depois de ter rodado por toda a casa a sua procura. — Tenho que ir agora, você vem?

 — Sem chance. Daqui vamos para casa do Tom.

 — Você perdeu a cabeça? O Tom estava metido com coisa errada, ele foi até para o reformatório! — reclamei torcendo para que ela visse o óbvio. — Pare de dar ouvidos a tudo o que Brian fala. — ela sempre ficava imersa no mundinho dos caras com quem estava saindo.

 — Gata ele está comendo na minha mão, não o contrário. — ela cochichou em meu ouvido, enquanto acenava para ele. — Olha só, Bianca também está indo embora. Talvez vocês possam ir juntas? — Bete gritou, para que a outra garota ouvisse, não me deixando muita escolha a não ser segui-la.

 Bianca era dois anos mais nova que nós, por isso não nos falávamos muito, mas nos conhecíamos há muito tempo, afinal quem não se conhecia naquela cidade minúscula.

 — Oi Emily. — ela murmurou doce e tímida como sempre.

 — Como você está indo? Soube que sua mãe aceitou um emprego fora da cidade. — puxei assunto tentando ser cordial, mas não querendo ser invasiva, infelizmente não houvesse muito o que falar além das últimas fofocas e a mãe dela ter saído da cidade deixando o marido e dois filhos para trás era uma delas.

 — Bem, ela se mudou no sábado passado.

Todos na cidade sabiam que a mãe dela na verdade estava fugindo, ela finalmente tinha cansado de apanhar daquele velho bêbado que era o marido e se mandou sem olhar para trás.

 — Entendo. — Resmunguei, sem saber ao certo o que falar, mas meus pensamentos foram interrompidos por Marcos.

 — Te mandei esperar no portão pirralha.

Marcos Almeida era dois anos mais velho do que eu, assim como meu irmão, ele já havia terminado a escola, mas não deixou a cidade para fazer faculdade como todos faziam, ele só trabalhava na oficina do senhor Silva, para minha alegria que podia ver aquele corpão na cidade.

Os braços musculosos, não eram de tomar bomba ou passar horas na academia, eram de trabalho pesado, assim como o tanquinho sarado que ele exibia com orgulho pela cidade. Ele podia ter apenas vinte anos, mas até as mulheres casadas babavam por ele.

 O fato é que ele sempre foi um gato, os cabelos castanhos, uma barba por fazer os lábios carnudos e rosados que chamavam a atenção. E aquele olhar, se o corpo já não bastasse ele carregava um olhar de fazer a calcinha molhar e o coração explodir só de te encarar.

Ele era cobiçado por todas as meninas daqui, mas claro que não dava à mínima. Marcos só saía com garotas mais velhas que ele e de fora da cidade.

— Como você está vendo já tenho companhia, então não precisa me escoltar até em casa. — Bianca falou, e ele me olhou de verdade pela primeira vez.

Mesmo que nos vissemos sempre nas ruas da pequena cidade, ele nunca tinha me dedicado mais do que alguns olhares de relance, mas agora ele estava com os olhos azuis presos aos meus.

 — Emily Carvalho. — meu nome em sua boca soou quase como uma prece. — Seu irmão sabe que você saiu sozinha?

 — Na verdade foi ele quem me colocou pra fora. — consegui falar mesmo com seus olhos focados nos meus.

 Fernando não é um mau irmão, nós nos protegemos de tudo e de todos, éramos inseparáveis. Mas tínhamos toque de recolher diferente, Fernando estava indo para a faculdade já no próximo mês enquanto eu continuava no ensino médio, segundo ano pra ser mais exata.

 E como ali era uma das cidades mais pacatas do interior, ou seja, perigo quase nenhum, não tinha medo eu ir pra casa sozinha já que meu horário logo bateria.

 Marcos estreitou os olhos azuis para mim e eu quase tive um troço.

 — Então eu deixo você primeiro em casa. — comunicou, passando um braço ao redor da irmã. — E depois você. — fez o mesmo comigo.

 O cheiro de sua colônia masculina invadiu meu espaço e eu sabia que estava totalmente ferrada, teria ainda mais fantasias com ele depois disso. Minhas bochechas esquentaram no mesmo instante e meu coração disparou no peito.

 Qual é universo, porque brincar comigo assim! Ele é Marcos Almeida, rosto de anjo e atitude de diabo, era uma combinação nada justa e tê-lo ali com o braço envolvendo meu corpo era uma tortura com uma garota virgem que nunca teria uma chance.

 Como era de se esperar Marcos parecia alheio a minha presença, apenas eu e Bianca conversávamos, fomos o caminho todo falando sobre a festa e quem tinha ficado com quem, se alguém caiu bêbado ou se haviam vomitado.

Pela manhã toda a cidade já estaria sabendo dos acontecimentos da festa, esse era mais um presente de se morar em uma cidade pequena.

 — Ok maninha, eu volto tarde hoje, então vê se vai deitar logo. — ele disse, beijando o topo da cabeça de Bianca, ela me deu um aceno e correu escada acima para casa.

 A casa deles ficava do outro lado da cidade, cerca de vinte minutos andando rápido até a minha casa. Não era uma caminhada longa e levando em conta o clima, era até bem vinda, mas claro que isso sem o gostoso da cidade ao meu lado.

  — Sabe, você não precisa realmente me levar, eu posso ir sozinha.

 — Seu irmão não devia te deixar andando por aí sozinha, mas eu entendo o mundinho de vocês é bem diferente da realidade. — Ele se referia ao dinheiro que tínhamos, meu pai era um bom advogado, então tínhamos uma boa vida. — Eu vou deixá-la em casa assim como minha irmã. Vocês têm a mesma idade, não é?

 — Não! — eu praticamente gritei achando um absurdo que ele achasse que eu tinha quinze anos, já estava com dezessete! — Sou dois anos mais velha que ela. — Ele ergueu uma sobrancelha achando graça. — E eu nem te conheço direito, então poderia ser perigoso também andar com você. — falei, cruzando meus braços e andando mais depressa para fugir da minha vergonha.

 — Posso até ser perigoso, mas não costumo mexer com crianças, então fiquei tranquila. — ele disse, me alcançando em dois passos.

 Isso só me deixou ainda mais irritada, minha vontade era de socar a cara dele, então bati os pés mais duro no chão e comecei a marchar para casa, se ele queria me seguir era problema dele, mas eu não daria a mínima atenção.

 — Criança! — bufei praticamente correndo. Como ele falava comigo assim?

 — Ei, pega minha jaqueta.

 O vento estava apertando e, se eu conhecia bem São Fernando, estaria chovendo em questão de minutos, mas eu não queria nada daquele babaca presunçoso.

 — Não precisa! Eu só tenho que chegar em casa rápido.

 — Sabe que vai começar a chover em minutos, não é? Pega de uma vez essa jaqueta Emy. — ele me chamou pelo meu apelido, me pegando de surpresa.

 Parei no meio da rua olhando para ele, sem saber se aceitava a jaqueta, ou perguntava como ele sabia meu apelido.

Tinha algo nos seus olhos ou eu estava maluca? Estava maluca, só podia estar.

 — Tudo bem. — falei, me aproximando e deixando que ele colocasse a jaqueta sobre meus ombros.

 O jeito que ele me olhou me fez querer ficar ali para sempre, parada, encarando-o. Suas mãos se mantiveram em meus ombros, emanando calor através da jaqueta de couro e indo direto a minha pele. Eu queria que ele me tocasse, de repente a vontade de beijá-lo se sobrepos a tudo.

Devia ser assim que ele atraía as garotas, porque eu me sentia totalmente atraída naquele momento.

 Mas o momento todo não durou muito, já que pingos do tamanho de cascalhos começaram a cair do céu.

 — Droga! Vamos! — ele gritou, pegando a minha mão e começando a correr.

Claro que o universo não cooperava nunca ao meu favor! Só me dava um gostinho do céu, para ser arrancado logo em seguida.

 Corremos por um longo caminho, eu não fazia muita ideia de onde estávamos indo, já que mal consegui reparar nas coisas a nossa volta. Marcos corria bem mais rápido do que eu, então me deixei ser puxada por ele até que alcançamos o parque central, que sempre estava aberto, e ele nos puxou para um dos coretos perto da fonte.

 — Vamos ficar aqui até que a tempestade diminua. — ele murmurou, enquanto observava as nuvens no céu e eu não conseguia parar de observá-lo.

 As chuvas de verão eram comuns por aqui, não havia nuvem alguma e em questão de minutos o céu se transformava.

 Já estava quase na hora do toque de recolher que papai me deu, mas eu não estava tão preocupada com isso agora. Claro que Fernando me mataria se ficasse de castigo por minha causa, mas com aquele cara ali do meu lado eu não conseguia me preocupar com mais nada.

 Olhei para Marcos que estava dando pequenos pulinhos no lugar, e foi aí que percebi que ele estava apenas com uma blusa xadrez de mangas curtas e ela estava completamente encharcada, grudada ao seu corpo.

Eu, por outro lado estava quente e seca com sua jaqueta em volta do meu corpo.

 — Você está congelando. — murmurei, chamando sua atenção. — Aqui, melhor colocar ela de volta antes que fique doente. — Tirei a jaqueta e estendi para ele.

 — Não mesmo, aí vai ser você a ficar doente.

 — Pelo menos eu estou seca. — Ele cogitou a ideia olhando da jaqueta estendida para mim, então voltou a semicerrar os olhos.

 — Ok, mas venha pra perto. — ordenou, pegando a jaqueta e me puxando junto. Assim que começou a tirar a camiseta ensopada eu o encarei com mais atenção. Claro que já tinha o visto sem camisa por aí, mas não tão perto de mim. Ele colocou a jaqueta e me puxou para o seu abraço. — Assim você também vai ficar quente.

 Eu estava quente! Estava pegando fogo naquele momento e totalmente paralisada por estar agarrada a seu tronco nu, com a jaqueta dele nos cobrindo.

 Não pira Emily, não pira!

 Já que me encontrava ali o melhor era aproveitar, então me aconcheguei em seu peito esfregando a bochecha em sua pele, que em minutos ja estava quente e seca.

 Enquanto inspirava seu cheiro e ouvia seu coração bater, pedi a Deus para que aquele momento durasse para sempre. Era idiota eu sabia, a qualquer momento a chuva iria passar e teríamos que ir embora e eu passaria o resto da noite na minha cama pensando nele e ele na cama fazendo coisas com outra garota, mas naquele pequeno momento eu pedi para que não tivesse fim.

 — Você tem hora para estar em casa? — ele me perguntou, quando a tempestade começou a aliviar. Eu poderia mentir, mas não o enganaria porque se eu não tivesse horário estaria na festa como todos os outros. Acenei que sim com a cabeça. — Então é melhor irmos andando, não quero que seus pais fiquem preocupados.

 — Tudo bem. — respondi um tanto sem vontade. Não queria sair dali nem tão cedo, mas infelizmente deixamos nosso pequeno refúgio e começamos a caminhar em silêncio de baixo da fina garoa.

 Para minha surpresa ele não se soltou de mim, meu braço estava protegido embaixo da jaqueta tocando suas costas quentes e seu braço direito me mantinha presa a ele. Andamos abraçados até minha casa, e eu quis gritar por ter sido tão rápido o trajeto.

 — Está entregue! É melhor entrar pra se esquentar. — ele falou, me soltando quando pisei no primeiro degrau.

 Mas quando ele esticou os braços para me soltar eu segurei mais forte sua mão, não querendo deixar aquele momento se acabar e o encarei, a coragem me encheu naquele momento e apertei mais forte seus dedos e mordi meu lábio, torcendo para que ele entendesse o recado.

 Então como se soubesse o que eu estava pensando ele se aproximou e tocou meu rosto, o segurando bem perto do dele. Seu polegar deslizou por minha bochecha, me causando um arrepio com o toque suave e tentador.

Fechei meus olhos esperando o beijo, ansiosa para sentir seus lábios tocando os meus, mas tudo o que senti foi sua respiração contra a minha, um resvalar rápido em meus lábios e então um beijo tocando minha testa.

 Ele os manteve lá por um longo tempo e então saiu em disparada, pelo mesmo caminho que tínhamos feito, nem ao menos olhou para trás. Enquanto eu me mantinha na escada, com o coração disparado e imaginando o que poderia ter sido um beijo dele.

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