Primeira Noite

Luna acordou sobressaltada, seu coração batendo forte no peito. Levou alguns segundos para entender onde estava, até que o som de batidas firmes na porta a trouxe completamente de volta à realidade.

— Entre! — disse com a voz rouca de sono, acreditando que era seu pai.

A porta se abriu lentamente, mas ao invés de Eliezer, uma jovem mulher entrou no quarto. Ela tinha a pele morena que reluzia sob a luz suave do lustre, cabelos negros presos em um coque elegante e vestia um vestido longo, coberto por um avental impecavelmente branco. Sua beleza era esplêndida, e sua postura, graciosa, com um toque de autoridade que parecia natural.

— Boa noite. — disse a jovem, sua voz aveludada e formal. — Meu nome é Ravena. Sou empregada da casa e também sua criada. Vim avisá-la que o jantar está pronto, e o senhor Eliezer a aguarda na sala de jantar.

Luna piscou, tentando se acostumar à presença de Ravena. Antes que pudesse responder, a jovem olhou ao redor, notando as malas ainda intocadas no chão.

— Ah, vejo que não teve tempo de organizar suas coisas. Ravena sorriu, um sorriso suave, mas algo em seu olhar parecia profundamente observador. — Se quiser, posso ajudá-la com isso após o jantar.

— Obrigada. — respondeu Luna, acenando com a cabeça. Apesar da desconfiança que sentia em relação a todos naquela casa, havia algo tranquilizador na voz de Ravena.

Luna se levantou lentamente, ainda sonolenta, e estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la, Ravena.

Ravena hesitou por um instante antes de aceitar o cumprimento, mas assim que suas mãos se tocaram, Ravena puxou a mão de volta quase como se tivesse levado um choque.

Luna franziu o cenho, confusa.

— Está tudo bem? Eu fiz algo errado?

Ravena deu um passo para trás, seus olhos fixos na mão que havia segurado. Por um momento, um lampejo de algo indiscernível – medo, talvez – passou por seu rosto. Mas então, ela rapidamente recompôs a expressão, sorrindo novamente, como se nada tivesse acontecido.

— Ah, não, não é nada. — Disse Ravena, sua voz levemente trêmula. — Foi apenas um… reflexo. Me desculpe, senhorita Luna. Vou deixá-la se preparar.

Antes que Luna pudesse insistir, Ravena inclinou a cabeça educadamente e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si com cuidado.

Luna ficou parada por alguns instantes, encarando a porta fechada. Havia algo estranho naquele encontro, mas ela não conseguia entender o quê. Algo naquela casa – e nas pessoas que viviam nela – parecia cheia de mistérios.

Com um suspiro, ela deu uma última olhada no porta-retrato que ainda estava sobre a cama, pegou-o e posicionou de pé no criado mudo ao lado da cama antes de se levantar e começar a se arrumar para o jantar.

Luna desceu as escadas, ainda tentando esquecer o encontro estranho com Ravena. O cheiro do jantar – um aroma que lembrava ervas e algo assado – preenchia o ar, guiando-a até uma sala de jantar ampla, com um lustre dourado que lançava sombras suaves nas paredes cobertas por tapeçarias antigas.

Eliezer estava sentado à cabeceira de uma mesa longa de mogno, segurando uma taça de vinho. Ele se levantou ao vê-la entrar, indicando a cadeira ao lado dele.

— Espero que tenha descansado bem. — Disse ele, com a voz controlada.

— Sim, obrigada. — Respondeu Luna, sentando-se.

Antes que a conversa pudesse avançar, Ravena entrou na sala carregando uma travessa prateada, seus movimentos tão fluidos que pareciam quase sobrenaturais. Ela colocou a comida sobre a mesa e começou a servir.

Luna a observou enquanto ela se movia. Algo em Ravena parecia diferente agora – mais calculado, como se ela estivesse mantendo uma postura controlada demais.

— Ravena cuida de muitas coisas nesta casa. — Disse Eliezer de repente, como se percebesse os olhos de Luna fixos na jovem. — Ela é... indispensável.

Ravena ergueu os olhos, sua expressão permanecendo neutra.

— É minha obrigação, senhor.

O tom dela era educado, mas havia algo mais que Luna não conseguia identificar.

Depois que Ravena saiu, Luna não conseguiu conter a curiosidade.

— Ela é tão jovem... Faz tempo que trabalha aqui?

Eliezer ficou em silêncio por um instante, os dedos batendo de leve na taça de vinho.

— Ravena faz parte de algo... maior. — Disse ele, finalmente.

Luna franziu a testa, mas antes que pudesse perguntar mais, Ravena retornou para limpar a mesa, seus olhos evitando os de Eliezer.

— Posso ajudar? — Ofereceu Luna, sentindo-se desconfortável em apenas observar.

— Não, senhorita, isso é meu trabalho. — Ravena pegou os pratos com mãos firmes, mas Luna notou algo peculiar – as mãos da jovem tremiam levemente.

— Você está bem? — Luna perguntou, ignorando a recusa.

Por um momento, Ravena parou, os pratos em suas mãos quase caindo. Então, ela se virou, encarando Luna com uma intensidade que fez a garota recuar ligeiramente.

— Nem sempre escolhemos os papéis que desempenhamos. — Disse Ravena, sua voz baixa e sombria. — Alguns de nós são... obrigados a seguir caminhos que outros traçaram.

Luna arregalou os olhos, mas antes que pudesse perguntar o que aquilo significava, Ravena saiu da sala em silêncio, desaparecendo nas sombras do corredor.

Eliezer suspirou profundamente, quebrando o silêncio.

— Ravena é leal. — Disse ele, como se tentasse justificar algo. — A lealdade dela é... hereditária.

— O que isso significa? — Luna perguntou, ainda tentando entender o que acabara de acontecer.

— É complicado. — Respondeu ele, com uma expressão fechada. — E não é algo que você precise se preocupar.

***

Mais tarde, Ravena estava sozinha na cozinha, as mãos apertando o balcão de mármore enquanto respirava fundo. Ela tentou afastar a sensação que a atingiu ao tocar Luna. Algo estava errado – muito errado.

Ela caminhou até uma porta escondida atrás da despensa, que levava a um pequeno quarto escuro. Ali, um altar de madeira envelhecida estava coberto de velas apagadas e runas entalhadas.

— Avó, por que agora? murmurou, acendendo uma das velas com um estalar de dedos. — Eu a servi, como você me ordenou... Como elas nos ordenaram. Mas essa garota... Ela é diferente. Eu senti.

O brilho da chama refletiu nos olhos de Ravena, e no espelho acima do altar, uma figura indistinta começou a se formar – o rosto de uma mulher mais velha, com olhos fundos e uma aura imponente.

— Você sabe por que estamos ligadas a eles, neta. A voz profunda da figura ecoou na sala. — O sangue deles nos aprisiona, mas o dela...

Ravena respirou fundo, incapaz de desviar o olhar do reflexo.

— O dela pode ser o fim de tudo.

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