Parte Um
Uma Garota Apaixonada
Cristina
Já percebeu como as nossas expectativas da juventude são frustradas logo após os vinte dois anos? É como se ao soprar as velas, atravessássemos um portal que nos leva do Vale dos Sonhos direto para a Terra das Desilusões. Até os vinte e dois eu estava certa de que a minha vida seria um sucesso absoluto, que após a graduação trabalharia no melhor centro de avaliações psicológicas de Nova Iorque. Mas estava enganada. Quer dizer, ao menos eu havia conseguido trabalhar na sonhada instituição, mas não exercendo a minha profissão.
Eu era a escrava… Opa! Não. Eu era a secretária de um chefe narcisista, cujo robe era fazer os seus funcionários chorarem no banheiro. Era exatamente nove da noite. Eu estava com fome, muita fome. E estressar-me quando estou faminta não é uma ideia inteligente. Então, estava torcendo para o meu chefe sair daquela sala sem nem sequer olhar para mim.
— Continua aqui? — perguntou Carter, ao entrar na recepção com algumas pastas nas mãos. Ele era outro escravo, mas que atuava no jurídico.
Encolhi os ombros com destreza em resposta e suspirei fundo, cansada. Ele sorriu com um pouco de pena no olhar. Sem dizer mais nada, entrou na sala do monstro que ali habitava.
Levantei-me e segui até o bebedouro do outro lado da sala. Enchi um copo com água e aproximei da janela. A vista dali era a única coisa bela naquele lugar. La fora o frio já obrigava as pessoas a usarem grossos casacos. O outono estava sendo rigoroso, anunciando que a estação seguinte seria ainda pior do que o esperado.
— Cristina?! — chamou o monstro.
Forçando um cara minimamente agradável que não expressasse o meu desejo de esquartejá-lo, virei-me na sua direção.
— Já pode ir — disse, sem tirar os olhos dos papéis que tinha nas mãos.
Ele entrou novamente na sala e ouvi quando a tranca foi girada pelo lado de dentro.
— Filho da puta! — resmunguei, irritada.
O infeliz estava lá dentro desde as seis da tarde. Não me interfonou ou chamou-me nem uma vez. Desde às seis ele não precisou de mim para absolutamente nada! Por que não me dispensou antes?
— Cuzão! — disse encarando a porta dupla de vidro branco.
No armário atrás da minha mesa, peguei a bolsa e o casaco, vestindo-o a caminho do elevador.
— Tchau, Greg — despedi-me do porteiro da noite, ao passar pelas roletas na saída do térreo.
— Tchau, Cris.
Passei pela porta giratória e parei na calçada, respirando o ar da liberdade. Peguei o celular no bolso do casaco e mandei mensagem para Anna. Ela e outros amigos foram para o happy hour. Com sorte ainda teria tempo de ao menos uma cerveja com eles.
Desculpe. Já estou em casa. 09:32 PM Anna
A sua resposta deixou-me um pouco triste.
Tudo bem. Logo estarei aí. 09:33 PM Cris
Mas eu ainda precisava de uma cerveja. Não voltaria para casa sem ao menos tomar uma caneca enquanto xingaria o meu chefe para Jeremy. Atravessei a rua e caminhei até o ponto de ônibus. Dez minutos depois, ele chegou.
— Boa noite — disse ao entrar.
— Boa noite, Cris. Segundo turno outra vez? — brincou o motorista, rindo em seguida.
— Um segundo turno não remunerado.
Paguei pela passagem e caminhei para a traseira do ônibus quase vazio, sentando-me próximo da saída. O trajeto até em casa levava apenas quinze minutos a essa hora. Não pegar o ponto alto do trânsito nova-iorquino era a única coisa boa em sair do trabalho depois das oito. Quando avistei o bar, levantei e dei sinal de desembarcaria no próximo ponto.
— Até amanhã, Lance — disse alto para que ele escutasse, e desci.
Ele deu duas curtas buzinadinhas para mim e se foi. Voltei alguns metros até o bar e ao entrar, o cheiro de cigarro e cerveja seca no chão, logo invadiu as minhas narinas.
— Cris… Bem na hora! — disse o cara grande atrás do balcão de bebidas.
Apesar do seu tamanho ser intimidador, Jeremy é um homem legal. Desde o início da graduação, eu frequento o seu bar. Por muitas vezes fomos juntos caminhando para casa, já que ele morava dois prédios depois do meu. Ao menos uma vez na semana eu estava ali, àquela hora, implorando por álcool nas veias.
Ao sentar-me no banco diante dele, uma caneca de quinhentos mililitros foi posta à minha frente. Jeremy colocou um potinho com amendoim ao lado e parou, olhando-me de braços cruzados.
— Vai lá. Pode desabafar.
— Hoje não tem desabafo.
— Não? — perguntou com certo espanto.
— Não. Quero falar sobre réu primário. Quantos anos de prisão acha que eu pegaria se matasse aquele filho da puta? Quer dizer… posso alegar legitima defesa, não é? Ele me tortura psicologicamente, todos os dias.
Jeremy riu alto.
— Okay. Bom… tem algo que precisa saber sobre réu primário. Ele só existe se for pega! — Piscou para mim com cumplicidade e se afastou, indo até o homem sentado do outro lado do balcão, servindo-lhe outra dose de algo que deduzi ser uísque.
Ele parecia solitário e um pouco triste. Ombros caídos, alguns suspiros pesados com certa frequência e olhar baixo. Apesar da melancolia, era um homem bonito.
Cristina— O crime perfeito existe? — perguntei para Jeremy. — Claro. Pílulas de cafeína sintetizada. Quinze gramas e ele terá um ataque cardíaco que parecerá ter sido causado por cocaína. — Jeremy… Quero saber como sabe disso? — Ele riu outra vez. — Séries de investigação ensinam mais do que você pode imaginar. — Eu devia assistir à alguma? — Comece por CSI. — Qual deles? — Qualquer um. — Afastou-se novamente, quando outro homem se aproximou do balcão. — Uma Red Beer — pediu ele, sentando-se no banco ao meu lado. — Boa noite — cumprimentou-me, curvando o canto da boca em um sorriso mal-intencionado. Dei-o um pequeno sorriso e virei o corpo um pouco para a esquerda, tentando ignorá-lo. Sabia que em segundos ele começaria a puxar uma conversa a qual não estava nem um pouco interessada. — Sou Logan. Não o respondi. Somente o ignorei, tomando um gole da cerveja que já estava pela metade. — Está sozinha aqui? — Puxou o seu banco para mais perto do meu. — Não é da sua con
CristinaParei diante do espelho e ajeitei a blusa. Passei as mãos delicadamente pelos cabelos presos em um coque alinhadinho e respirei fundo. Eu iria voltar lá, pedir desculpas, agradecer novamente pelo soco bem dado, pagar a conta e ir para casa. Ao sair do banheiro, Cillian estava ali, parado de frente a porta. Até me assustei um pouco ao vê-lo. — Me desculpe se fui atirada ou… — Não pude terminar a frase. Ele beijou-me, fazendo-me prender o ar nos pulmões com a surpresa. A sua mão esquerda laçou a minha cintura, enquanto a outra segurou a minha nuca com firmeza. A sua língua era quente e os lábios faziam um trabalho suave sobre os meus. Abracei-o tentando impedir que os segundos se acabassem. Parecia que tudo havia se encaixado tão bem. Nossos corpos… as línguas… Até a maneira sincronizada que respirávamos. Ele girou-me no espaço do corredor e prensou-me contra a parede. O beijo ficou mais feroz e um gemido escapou da minha boca. Cillian mordeu o meu lábio inferior e apertou
CristinaOs meus olhos abriram-se preguiçosos ao ser acordada pelo barulho alto que fazia a prensa do caminhão do lixo, parado em frente ao nosso prédio. Piscando lentamente algumas vezes, encarei o teto percebendo como o dia já estava claro. Gradualmente, fui tomando consciência do ambiente ao meu redor. O caminhou apitou lá fora e eu olhei para janela, confusa. Já era sábado? Sábado era o único dia que eu ouvia a coleta do lixo passar. Olhei para o relógio sobre a mesa de cabeceira e forcei as vistas sonolentas para enxergar o dia escrito logo abaixo das horas. — Quinta? Quinta-feira? — perguntei em um grito, saltando da cama, assustada e muito atrasada. Abri a porta do quarto e corri até a lavanderia. Na secadora, peguei uma calça jeans qualquer. Não tinha nem certeza se era mesmo minha. — Anna! Já são sete e meia, acorda! — gritei ao passar pelo corredor. — Merda! Merda! Merda! Eu estava completamente apavorada. Tinha exatamente meia hora para chegar à faculdade ou perderi
CristinaA aula parecia interminável. Foram quarenta e cinco minutos encarando o professor enquanto ele se esforçava ao máximo para não me olhar. Mas, às vezes, os nossos olhares se encontravam. E durante todo esse tempo, por algumas vezes, o meu complexo de inferioridade manifestou-se, fazendo me questionar se a culpa da sua fuga era minha. Fechando os olhos, respirei fundo. Não era mais uma garota me submetendo a machos escrotos, migalhas e relações tóxicas. Não podia permitir nem por um segundo esses pensamentos gerados pelas mágoas e traumas do passado. Eu era mais do que qualquer homem jamais poderia ver. Precisava lembrar-me disso. Quando a aula acabou, ele se despediu de todos de forma geral enquanto reunia as suas coisas rapidamente, colocando-as dentro de uma bolsa. Connor, o aluno auxiliar do senhor Roy, foi até a sua mesa. Eles apertaram as mãos e conversaram brevemente. — Vou para a biblioteca. Você vem? — perguntou Anna. — Vai na frente. Eu já vou indo. Ela olhou pa
CristinaEra nove e meia quando cheguei em casa. Havia um bilhete da Anna na porta da geladeira. A sua vez de ir às compras. Dormirei na casa do Ed. Até segunda. 09:33 PM Anna Abri a geladeira e não havia muito ali além de leite, maças e um pedaço de queijo que eu duvidava muito que fosse queijo azul. — Está bem, Anna. Estou indo ao mercado — conversei comigo mesma. No quarto, troquei a roupa do dia por uma calça de ginástica e camiseta da NYU. Calcei tênis de corrida, prendi os cabelos com o elástico e vesti um moletom antes do casaco de inverno. Com a bolsa pendurada no ombro, segui para o mercado a meia hora de casa. Ao chegar, entrei empurrando um grande carrinho de compras. Anna tinha uma lista específica de coisas que ela sempre me pedia para comprar. Ela já ficava salva no bloco de notas do celular. O carrinho já estava bem cheio e eu me questionava se conseguiria levar tudo isso a pé para casa. Entrei na sessão alcoólica, pensando em comprar um vinho que não tive
CristinaNa manhã seguinte, segui sozinha para a faculdade. Cheguei às sete e meia e sentei-me na biblioteca. O senhor Roy começava a fazer falta. Ele sempre aparecia por aqui essas horas e ajudava-me um pouco mais com a tese. Espalhei sobre a mesa as notações, abri o laptop, alguns livros e comecei a estudar. Um bloco com algumas folhas foi jogado à minha frente, fazendo um barulho alto e assustando-me. Olhei para elas e depois para o corpo que se escorava à mesa, ao meu lado. — O que é isso? — perguntei para Cillian. — Li a última versão da sua tese enviada ao Roy e fiz algumas observações. Transtorno de estresse pós-traumático é um bom tema. Mas existe muito argumento pessoal sendo exposto de maneira muito hostil. É bem claro que esse tema mexe com as suas emoções. Talvez você devesse considerar mudar. Ainda dá tempo. — Mas eu não quero! — O meu tom saiu um tanto rude. Ele encarou-me em silêncio por alguns segundos, observando-me com olhos estreitos. — Okay. Leia as anotaçõ
CristinaEstava em frente ao espelho aplicando o batom, quando o interfone tocou. Olhei as horas no celular e eram exatamente nove e meia. — Pontual — disse para mim mesma. Eu havia saído do trabalho às oito e quinze e mandado a mensagem para Bea. Ela disse que às nove e meia chegaria para me buscar. Apertei o botão no interfone para destravar a porta lá embaixo e depois o outro que me permitia falar e ser ouvido por quem quer que estivesse na entrada. — Pode subir — disse e voltei em seguida para o banheiro, finalizando o batom. A campainha tocou e caminhei até a porta, ajeitando os cabelos soltos. Ao abri-la, outra surpresa naquele dia. Não era a Bea. — Cillian? Ele ergueu a cabeça e os lábios se abriram com espanto. Os ombros ficaram tensos e o peito se encheu de ar. Os seus olhos piscaram lentamente, ao mesmo tempo que engoliu em seco. Ele parecia estar sem palavras e quase sem fôlego. — Nossa… — Foi a única coisa que saiu da sua boca em um sussurro. — O que faz aqui?
CristinaAcordei com o barulho irritante da prensa do caminhão de lixo. Tentei me levantar, mas a minha cabeça latejou. Eu nem sequer sabia que horas eram quando chegamos em casa. A última coisa que me lembro, foi de tirar os sapatos e subir sobre uma mesa com uma mulher que conheci naquela noite, para cantar Dancing Queen. Vagarosamente, levantei-me da cama e saí do quarto, arrastando-me pelas paredes do corredor. Bea estava na sala, sentada no chão, em frente a janela, meditando sob a luz do sol. Não a atrapalhei, apenas segui caminho até a cozinha e peguei um remédio para a dor de cabeça e um copo d’agua. — Aproveitou bem a noite — disse ela, enquanto começava se alongar. — Eu não me lembro de muita coisa após cantar sobre a mesa. — Dancing Queen? Sério? — Ela riu. — É a minha música favorita. Não consigo resistir. Aspirina? — ofereci. — Eu já tomei. — Vou fazer ovos com bacon. Quer? — Eca! Eu não como carne. — Desde quando? — Desde Bali. — Entendi. Então farei ovos e t