Cristina
Os meus olhos abriram-se preguiçosos ao ser acordada pelo barulho alto que fazia a prensa do caminhão do lixo, parado em frente ao nosso prédio. Piscando lentamente algumas vezes, encarei o teto percebendo como o dia já estava claro. Gradualmente, fui tomando consciência do ambiente ao meu redor. O caminhou apitou lá fora e eu olhei para janela, confusa. Já era sábado? Sábado era o único dia que eu ouvia a coleta do lixo passar. Olhei para o relógio sobre a mesa de cabeceira e forcei as vistas sonolentas para enxergar o dia escrito logo abaixo das horas.
— Quinta? Quinta-feira? — perguntei em um grito, saltando da cama, assustada e muito atrasada.
Abri a porta do quarto e corri até a lavanderia. Na secadora, peguei uma calça jeans qualquer. Não tinha nem certeza se era mesmo minha.
— Anna! Já são sete e meia, acorda! — gritei ao passar pelo corredor. — Merda! Merda! Merda!
Eu estava completamente apavorada. Tinha exatamente meia hora para chegar à faculdade ou perderia a avaliação.
— Anna! Você me ouviu? — Soquei a porta do seu quarto a caminho do banheiro.
Enquanto fazia xixi, escovei os dentes. Passei a escova depressa pelos cabelos armados, arrebentando alguns fios, com certeza. De volta ao meu quarto, calcei as botas, vesti o casaco e fui até o quarto da Anna, abrindo a sua porta.
— Anna! — chamei-a ao entrar, mas não havia ninguém ali. O quarto estava vazio e a cama já havia sido feita. — Não acredito que fez isso comigo.
Peguei o celular e corri para sala, apanhando a bolsa, o casaco de inverno e o cachecol, pendurados no hall da entrada. Descendo as escadas, liguei para a mulher que se dizia ser minha melhor amiga.
— Onde você está? — ela disse baixinho.
— Caramba, Anna. Poderia ter me acordado!
— Eu saí às seis e meia, tinha que ir à biblioteca.
— Então poderia ter me ligado ou mandado mensagem.
— Eu liguei. Seis vezes! O seu celular deve estar no silencioso.
Afastei-o da orelha e olhei para tela. Ele de fato estava no modo não perturbe.
— Merda! Okay. Já chego aí! Não deixe esse cara aplicar a avaliação antes de eu chegar!
— É melhor correr!
Desliguei o celular, joguei-o na bolsa e corri pela calçada, esbarrando nas pessoas enquanto gritava um pedido de desculpas. Atravessei a rua correndo o risco de atropelamento e recebendo xingamentos. Continuei a correr pela calçada, chegando esbaforida na faculdade, ao mesmo tempo que o sino da igreja badalou anunciando ser oito horas.
— Porra!
Subi depressa os degraus quase sem fôlego, fazendo uma rápida parada no meio do caminho.
— Merda de faculdade sem elevador!
A passos largos, caminhei para o auditório onde seria a aula daquela manhã. Quando cheguei na porta, parei por um segundo e respirei fundo. Passei as mãos pelos cabelos e pelo rosto. Eu estava suada e mal conseguia respirar direito sem parecer que havia corrido dois quilômetros.
Ao abrir a porta, ela rangeu alto anunciando para todos a minha chegada. A sala estava silenciosa e um pouco escura, como de costume. Foi impossível não chamar a atenção de todos os alunos para mim.
— Desculpe — pedia para eles enquanto descia os degraus até onde Anna estava sentada, logo à frente do palco. — Desculpe — pedi mais uma vez para os meus colegas.
Quando cheguei ao meu lugar, olhei para frente pronta para pedir perdão ao senhor Roy pelo meu atraso e a interrupção. Mas não era ele de pé atrás da mesa, usando óculos de grau. Nem de longe se parecia com um velho ranzinza e barrigudo. Os meus olhos mal podiam crer em que eles viam ali, a poucos metros de distância.
— Caramba — sussurrei para mim mesmo.
O defensor dos pobres estava bem na minha frente. Cillian me encarava tenso, mas desviou rapidamente o olhar, abaixando a cabeça.
— O que você está fazendo? Sente-se logo! — sussurrou Anna.
Olhei para ela e depois para ele novamente, sentando-me em seguida.
— O que aconteceu com o senhor Roy?
— Ele teve um infarto ontem de manhã. Esse é o novo professor.
Cillian olhou-me outra vez e umedeceu os lábios com a língua.
— Bom… Como eu ia dizendo… — Olhou para a turma. — Estarei com vocês nesse semestre e farei a mentoria das teses no lugar do senhor Roy. — Furtivamente, os seus olhos voltaram até mim, mas logo deram atenção para a caderneta nas suas mãos. — Vai levar alguns dias para nos ajustarmos, e eu conto com a ajuda de vocês. Dei uma olhada no material do Roy, mas não havia nenhuma anotação de onde pararam.
— Ele ia aplicar uma avaliação sobre comportamento obsessivo — disse Anna.
— Ótimo. Obrigado.
— Ainda terá a avaliação? — perguntou outro aluno.
— Não, por ora.
A sala inteira suspirou com alívio, fazendo Cillian dar um pequeno sorriso nervoso.
— Anna… — chamei-a ao sussurro.
— Acho que devemos mandar flores ao senhor Roy.
— É ele.
— Ele? Ele quem?
— O professor novo. É o cara de ontem à noite — disse, sem tirar os olhos dele. Nem sequer conseguia piscar.
— O quê? — perguntou um pouco alto.
— Shhh. — Encarei-a.
— Está zoando?
— Não.
— Que merda. — Riu baixinho.
CristinaA aula parecia interminável. Foram quarenta e cinco minutos encarando o professor enquanto ele se esforçava ao máximo para não me olhar. Mas, às vezes, os nossos olhares se encontravam. E durante todo esse tempo, por algumas vezes, o meu complexo de inferioridade manifestou-se, fazendo me questionar se a culpa da sua fuga era minha. Fechando os olhos, respirei fundo. Não era mais uma garota me submetendo a machos escrotos, migalhas e relações tóxicas. Não podia permitir nem por um segundo esses pensamentos gerados pelas mágoas e traumas do passado. Eu era mais do que qualquer homem jamais poderia ver. Precisava lembrar-me disso. Quando a aula acabou, ele se despediu de todos de forma geral enquanto reunia as suas coisas rapidamente, colocando-as dentro de uma bolsa. Connor, o aluno auxiliar do senhor Roy, foi até a sua mesa. Eles apertaram as mãos e conversaram brevemente. — Vou para a biblioteca. Você vem? — perguntou Anna. — Vai na frente. Eu já vou indo. Ela olhou pa
CristinaEra nove e meia quando cheguei em casa. Havia um bilhete da Anna na porta da geladeira. A sua vez de ir às compras. Dormirei na casa do Ed. Até segunda. 09:33 PM Anna Abri a geladeira e não havia muito ali além de leite, maças e um pedaço de queijo que eu duvidava muito que fosse queijo azul. — Está bem, Anna. Estou indo ao mercado — conversei comigo mesma. No quarto, troquei a roupa do dia por uma calça de ginástica e camiseta da NYU. Calcei tênis de corrida, prendi os cabelos com o elástico e vesti um moletom antes do casaco de inverno. Com a bolsa pendurada no ombro, segui para o mercado a meia hora de casa. Ao chegar, entrei empurrando um grande carrinho de compras. Anna tinha uma lista específica de coisas que ela sempre me pedia para comprar. Ela já ficava salva no bloco de notas do celular. O carrinho já estava bem cheio e eu me questionava se conseguiria levar tudo isso a pé para casa. Entrei na sessão alcoólica, pensando em comprar um vinho que não tive
CristinaNa manhã seguinte, segui sozinha para a faculdade. Cheguei às sete e meia e sentei-me na biblioteca. O senhor Roy começava a fazer falta. Ele sempre aparecia por aqui essas horas e ajudava-me um pouco mais com a tese. Espalhei sobre a mesa as notações, abri o laptop, alguns livros e comecei a estudar. Um bloco com algumas folhas foi jogado à minha frente, fazendo um barulho alto e assustando-me. Olhei para elas e depois para o corpo que se escorava à mesa, ao meu lado. — O que é isso? — perguntei para Cillian. — Li a última versão da sua tese enviada ao Roy e fiz algumas observações. Transtorno de estresse pós-traumático é um bom tema. Mas existe muito argumento pessoal sendo exposto de maneira muito hostil. É bem claro que esse tema mexe com as suas emoções. Talvez você devesse considerar mudar. Ainda dá tempo. — Mas eu não quero! — O meu tom saiu um tanto rude. Ele encarou-me em silêncio por alguns segundos, observando-me com olhos estreitos. — Okay. Leia as anotaçõ
CristinaEstava em frente ao espelho aplicando o batom, quando o interfone tocou. Olhei as horas no celular e eram exatamente nove e meia. — Pontual — disse para mim mesma. Eu havia saído do trabalho às oito e quinze e mandado a mensagem para Bea. Ela disse que às nove e meia chegaria para me buscar. Apertei o botão no interfone para destravar a porta lá embaixo e depois o outro que me permitia falar e ser ouvido por quem quer que estivesse na entrada. — Pode subir — disse e voltei em seguida para o banheiro, finalizando o batom. A campainha tocou e caminhei até a porta, ajeitando os cabelos soltos. Ao abri-la, outra surpresa naquele dia. Não era a Bea. — Cillian? Ele ergueu a cabeça e os lábios se abriram com espanto. Os ombros ficaram tensos e o peito se encheu de ar. Os seus olhos piscaram lentamente, ao mesmo tempo que engoliu em seco. Ele parecia estar sem palavras e quase sem fôlego. — Nossa… — Foi a única coisa que saiu da sua boca em um sussurro. — O que faz aqui?
CristinaAcordei com o barulho irritante da prensa do caminhão de lixo. Tentei me levantar, mas a minha cabeça latejou. Eu nem sequer sabia que horas eram quando chegamos em casa. A última coisa que me lembro, foi de tirar os sapatos e subir sobre uma mesa com uma mulher que conheci naquela noite, para cantar Dancing Queen. Vagarosamente, levantei-me da cama e saí do quarto, arrastando-me pelas paredes do corredor. Bea estava na sala, sentada no chão, em frente a janela, meditando sob a luz do sol. Não a atrapalhei, apenas segui caminho até a cozinha e peguei um remédio para a dor de cabeça e um copo d’agua. — Aproveitou bem a noite — disse ela, enquanto começava se alongar. — Eu não me lembro de muita coisa após cantar sobre a mesa. — Dancing Queen? Sério? — Ela riu. — É a minha música favorita. Não consigo resistir. Aspirina? — ofereci. — Eu já tomei. — Vou fazer ovos com bacon. Quer? — Eca! Eu não como carne. — Desde quando? — Desde Bali. — Entendi. Então farei ovos e t
CristinaDeixei a sala às pressas com o celular na mão. Eu havia me esquecido completamente do feriado. Os meus pais me matariam se eu não estivesse em casa. De certa forma, devia isso a eles. Nem sequer pude visitá-los durante todo o verão devido ao trabalho. Liguei para a rodoviária rezando para que ainda tivesse passagem. Faltava uma semana. — Interestadual. Como posso ajudar? — Preciso de uma passagem para Bridgeport. — Certo. O próximo ônibus disponível saí às quatro, no dia vinte e quatro de novembro. — O quê? Não. Isso é depois do feriado. Preciso de uma passagem para antes da Ação de Graças! — Fui um tanto impaciente. — Eu lamento, mas não há mais assentos disponíveis. Todos os ônibus estão lotados. — Senhorita Reis… — Cillian chamou por mim, mas eu não olhei para ele. Apenas ergui o dedo indicador para que me desse um minuto. — Querida, você não entendeu. É um caso de vida ou morte. Preciso estar em casa para o feriado! — Você e o resto da população americana. Tenha
Separei a roupa que usaria no dia seguinte e guardei todas as outras. Depois de um banho quente e do jantar, deitei-me para dormir, mas estava ansiosa demais para isso. Apanhei o celular e nele havia uma mensagem de texto da Marisol. Ansiosa por amanhã. Estou com saudade 10:02 p.m. Marisol Também estou. Logo mais estarei aí. Como está o humor do papai? 10:04 p.m. Cris Por quê? Vai trazer alguém? Um namoradinho? 10:06 p.m. Marisol Um amigo! 10:06 p.m. Cris Ele ainda tem a faca de caça. Mas relaxe. Ele será bem-vindo. 10:07 p.m. Marisol Ri alto. Nosso pai sempre amolava a faca de caça na mesa de centro da sala, quando levávamos algum amigo em casa, ainda que não fosse sequer uma paquera. Boa noite, Sol. 10:08 p.m. Cris ***Quando o despertador tocou, eu já estava de pé, vestida, conferindo a roupa em frente ao espelho na porta do guarda-roupa. O meu coração batia acelerado. Eu estava nervosa, sentindo borboletas no estômago. Não porque iria ver os meus pais
CristinaEnquanto caminhávamos pelo passeio que levava até a casa, olhei para janela e vi dois rostinhos ali, com sorrisos travessos. Quando me viram aproximar, desapareceram rapidamente. Subimos os degraus da varanda e quando chegamos na porta, segurei a maçaneta e parei por alguns segundos. — Por que paramos? — Estou dando tempo para as minhas irmãs se esconderem. Elas fazem isso toda vez que venho para casa. Gostam de me dar susto. Ele riu. Abri a porta e entramos. — Cheguei! — anunciei, retirando o sobretudo. Pendurei-o no cabideiro da entrada e em seguida fiz o mesmo com casaco do Cillian. — Hija! — disse a minha mãe, vindo de braços abertos até mim. — Finalmente estás en casa. Abracei-a apertado e beijei o seu rosto. — Te extrañé mucho mamá. — Soltei-a. — Mama… Esse é o Cillian. Um amigo da faculdade. — Seja bem-vindo! Sou Rosalia — disse ela, sorridente, estendendo-lhe a mão. — Gracias por recibirme en tu casa — respondeu ele. Olhei-o um pouco surpresa por vê-lo fa