Quando, por fim, calaram-se, o silêncio caiu sobre o banheiro e choramos juntas. Elas, em prantos e eu, baixinho. Meu corpo estava congelado e a vergonha de ter me escondido por esse tempo todo me castigava. Ainda assim, não era capaz de sentir nem o menor impulso pra sair daquela cabine.
Uma das garotas perguntou a outra se deveriam sair, ouviu uma negação, e o silêncio volto9u a predominar. Isso resumiu as horas que se seguam. As vezes, uma das duas chorava e a outra dava algum tipo de consolo. Tentavam uma conversa, esboçavam planos de sair dali, mas logo o assunto morria em seus lábios. Assim como eu, temiam a inevitável hora em que se viram obrigadas a sair daquele banheiro. Uma hora tentaram forçar a porta da cabine em que eu me escondia, o que quase me levou ao infarto, mas logo desistiram.
Quando finalmente a monotonia se interrompeu, foi apenas iniciar nossos pesadelos.
Um novo som chegou aos meus ouvidos, diferente de todos os outros. Uma espécie de rosnado profundo e gutural, que parecia invocar os próprios demônios para a terra. As garotas chamaram pelo nome da terceira novamente, Soraia com as vozes chorosas. O que parecia ser alívio, transformou-se rápido em horror conforme as palavras aliviadas transmutaram-se em gritos.
Também havia aquele rosnado. Um calafrio glacial fez meu corpo chacoalhar, mas além da tremedeira, esse foi o único movimento que fui capaz de fazer. O entorpecimento atrapalhava até para executar funções básicas, como respirar.
Eu nunca havia sentido tanto medo em minha vida, tremia como se estivesse presa em um eterno frio polar.
Ouvi passadas, batidas contra as portas de madeira e outro grito de dor sair da boca de uma das garotas com quem dividi o banheiro. A segunda não parava de perguntar se havia algo errado com a tal Soraia, mas logo desistiu. O inferno sabia o que tinha errado com a Soraia.
Através de seus gritos, entendi que a menina dada como morta havia acordado e mordido uma das colegas. Os sons que seguiram, não consegui identificar, mas pareciam intermináveis. Naquela bagunça, só me era distinguível o constante rosnado. Encontrando um pouco de força, fui capaz de me levantar e tremendo, subir no tanque daquela cabine para ver o que aconteceria. Precisava confirmar o terror que eu só era permitida ouvir.
Por cima da porta, vi que, próxima da minha cabine, aquela que deveria ser Soraia se erguia lentamente, provavelmente após ser derrubada pelas outras garotas. Foi fácil para mim identificá-la pelos olhos arregalados e com grosseiras veias vermelhas destacando-se. Além disso, seu pescoço era uma indistinguivel massa de carne viva e sangue sexo. Um de seus dedos estava torcido em posição irreal, mas ela não parecia se incomodar. No canto de sua boca, uma espuma espessa de baba branca se formava.
Olhei para a direção das outras duas, onde uma delas de cabelos castanhos, tentava ajudar a amiga a se levantar quase arrastando-a na direção da porta. Era inútil tentar descobrir onde a segunda havia sido mordida, sua blusa que autrora fora branca agora estava empapada de um vivo vermelho sangue.
Somente uma espécie de som esganiçado escapou da minha garganta, diante do que se sucedera. Mesmo se eu quisesse ter avisado, a movimentação da Soraia (deveria chamá-la assim?) foi rápida demais para que eu se quer pudesse processar. Com as pernas flexionadas antes de se levantar, atirou-se em um pulo predatório nos longos cabelos castanhos da que tentava ajudar a amiga, e puxando-a para o chão, onde abriu a boca de uma maneira quase irreal e cravou os dentes na cabeça da garota.
Enquanto a boca da menina de cabelos castanhos abriu-se num “o” digno de desenhos animados, a colega ensaguentada também foi ao chão, tendo sido puxada quando a primeria levou o bote. Em desespero, desvencilhou-se da amiga e arrastou-se para uma das cabines, trancando a porta atrás de si.
A menina que agora estava no chão gritou conforme o monstro erguia a cabeça, segurando na boca um grotesco pedaço de carne, úmido de sangue. O rosto da garota nada mais era do que um buraco desfigurado.
Uma contração forte no meu estômago obrigou-me a descer do tanque e antecedeu um vômito amargo. Mesmo não vendo mais nada, o terrível som de carne molhada sendo mastigado foi o suficiente para me manter curvada sobre o tanque por incontáveis minutos. Naquele momento descobri o motivo primordial que guaiva os seres atacarem os semelhantes.
Eles os comiam…
Com pesadas gotas de suor se formando em minha testa, liguei a torneira do tanque para limpar o rosto e os rostos do meu café da manhã, mas desliguei imediatamente. Eu não sabia se o pequeno ataque havia chamado atenção, mas tudo indicava que a coisa ainda estava ocupada.
(comendo)....
Com a garota que ficou para trás…
Mesmo tendo lavado o rosto, as gotas de suor logo voltaram. Na verdade, escorriam por todo meu corpo, criando uma incomoda sensação gélida. Meu corpo tremia em completo descontrole enquanto eu me ajoelhava, abaixando até o chão e ficando em posição fetal. Aquela cena grotesca se repetia em loop na minha mente, com o infectado arrancando um pedaço do rosto daquela garota com os dentes.
Penso que elas haviam se desenrolado sobre a terra enquanto eu permanecia deitada, abraçada aos joelhos e tremendo. Acredito que cheguei muito perto de entrar em choque e nunca mais responder pelos meus atos.
Aquela peça de horror se desenrolou bem ao meu lado e eu não fui capaz de fazer anda. Certamente, estar presa com aquele zumbi logo ao meu lado era a punição que Deus escolhera para mim pela minha omissão. Quando pensava que nem mesmo tentei ajudá-las, setnia a sensação da bile ardendo minha garganta novamente.
A ideia de morrer ali era tão terrível quanto pensar em sair daquela cabine e encarar novamente aqueles olhos arregalados e vermelhos. A cada segundo que eu tentava esboçar um plano para me esgueirar pra fora, meu corpo desatava a tremer como se fosse eletrocutado e meu coração batia tão forte que chegava a machucar. Tudo isso com a dissonância macabra daquele infindável grunhido desumano.
Eu nunca sairia daquele banheiro.
Eu já não era capaz de dizer o que guiava: o medo de definhar até morrer, presa com um demônio saído de pesadelos profanos;O horror de se quer imaginar o inevitável confronto que se desenharia casos eu tentasse fugir ou a mais pura insanidade; Vamos dizer que, por absolutamente nenhum motivo além do impulso natural de sobrevivência, arrisquei uma nova olhada, ciente que ou eu encontraria uma forma de sobreviver agora ou cederia meu último resquício de sanidade pra este espetáculo de horror. Abaixei o meu corpo ao máximo que fui capaz, com lentidão e esmero, aproximando a cabeça do vão entre a porta do banheiro e o chão gelado. Era quase insuficiente para espremer meu rosto de forma que permitisse a visão. Também me mantive atenta e tomei cuidado de não encostar a cabeça na porta, evitando a todo custo produzir qualquer ruido que fosse. Eu sabia que o único motivo de continuar viva até que aquele momento era o fato de não me ter feito até então. A tal altu
A passagem daquela divisória para a seguinte me deixou ainda mais tensa, tomando cuidado dobrado para evitar qualquer ruído. Caso algo desse errado, meu ceifador estaria logo abaixo de mim. Pude perceber que, mesmo diminuindo os ruídos ao mínimo, a minha sombra ainda se fazia presente, passando por sobre cabeça daquele ser, que não parecia se importar. Suas visões eram perfeitas, tais como eram quando seres humanos? Como seriam seus sentidos?Haveria a necessidade de me preocupar tanto?Quando terminei a travessia, virada com ambas as pernas para a cabine a minha frente, percebi como meus músculos estavam tensionados e tentei relaxar, sem muito sucesso. Agora estava as duas cabines de distância da porta. O corpo da última menina - a única, de fato, morta - estava logo em frente a porta da última cabine. Eu pretendia descer e sair pela porta, mas logo entendi que a ideia seria falha: a parte de cima do seu corpo estava apoiada na porta da cabine, o que dificultaria
Infelizmente, foi tudo o que eu pude analisar, pois precisei sair correndo. Não tive intenção de tentar me comunicar com eles, afinal seria inútil: tudo que eles queriam era garantir algumas mordidas em minha carne e eventualmente transformar-me em um dos seus. Enquanto o monstro sem olho andava a passos lentos e arrastados; o segundo, logo ao trocarmos olhares, iniciou uma corrida determinada. Se fosse só o seu companheiro, eu poderia ter fugido tranquilamente, porém precisei me apressar e correr o mais rápido que eu pude em direção ao corredor que ligava o prédio da biblioteca com o de sala de aulas. A primeira coisa que notei foi que um deles era rápido. Muito mais rápido. A segunda é que eles estavam mais machucados. Diferentemente daqueles com quem dividi o banheiro, que possuía, que possuíam um ou outros machucados aparentes, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, estes tinha
Quando o corredor desembocou em uma área mais ampla, que dava acesso à escadaria, tomei ainda mais cuidado com os meus movimentos. O chão é as paredes brancas estavam repletos de manchas de sangue. O cheiro era tão forte que me obrigou a trancar a respiração.O cheiro ou a meia dúzia de monstros que se reuniam no canto da sala.Eu pude ver algumas partes que apareciam por baixo de montoeira de corpos: pernas, braços, cabeças completamente desfiguradas. As coisas banqueteavam-se em meio a cadáveres ensaguentados e me obriguei a desviar o olhar para não enlouquecer. O impulso de vomitar me dominou de novo, mas precisei ignorá-lo.Passei a me mover lentamente as costas coladas na parede atrás de mim sem me importar se manchava a blusa polo branca do meu uniforme. Estavam distraídos, faziam sons guturais e era possível ouvir o barulho de carne se rasgando conforme jogavam as cabeças para trás, puxando violentamente pedaços em seus dentes. O cheiro de morte e podr
Não, eu não estava. Digo, ele não havia me arrastado para qualquer tipo de perigo. É só que “a salvo” simplesmente era uma coisa que tinha deixado de existir, embora naquela altura eu ainda não soubesse. A primeira pessoa que eu vi foi Cláudio Dultra: outro terceiranista, mas familiar para mim por estudarmos na mesma sala. Tinha a pele escura, olhos e cabelos negros e uma expressão de poucos amigos. Diferente da maioria dos nossos colegas, tinha músculos definidos e traços mais adultos. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vinhamos do resto das salas de ensino médio, em uma curva acentuada. Quando nos viu, assumiu uma postura nervosa ao perceber como corríamos rápido. Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela. Guga não pareceu estar surpreso, conforme continuava correndo em direção à porta. Aquela altura eu já havia conseguido estabelecer equ
Mayara olhou para ela com os olhos arregalados em reprovação, mas não falou nada.Sorri de volta para Valentina, mas não consegui disfarçar por muito tempo o meu incomodo conforme me aproximei delas.Mayara, o que houve com sua perna? Perguntei, finalmente compreendendo que o professor Roberto amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.Mayara olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.Ela não foi atacada. Cláudio quem respondeu, atrás de mim. Cortou a perna em um arame enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não é nada sério.Desculpa ser tão indelicada, é só que… comecei olhando nos úmidos olhos cor de mel da garota.Não, tudo bem… ela olhou para a perna dando de ombros. Acho que é uma preocupação válida. Conversar parecia acalmá-la um pouco.Então você conseguiu? Perguntou Anny
Você vai sozinha? Perguntou Cláudio, levemente surpreso, enquanto me seguia porta afora. Eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou voltar para casa hoje. Quando falei isso, vários olhares vieram em minha direção. O professor Roberto já estava em pé, de braços cruzados e olhou para mim: Você acha que é seguro tentar ir pra casa, Rute? Indagou, com a voz preocupada, todo mundo está dizendo que o transporte publico parou. Olhei para ele e agradeci a preocupação… Não tem problema, professor. Eu vou a pé, se precisar, só teria de atravessar a ponte, falei, calmamente, preciso encontrar com a minha avó e com a Mel… justificando sem perceber que talvez eles não soubessem de quem eu estava falando. Como você pretende sair do colégio? Perguntou-me a garota negra de cabelos crespos. Ela parecia bastante calma diante da situação. O pátio está uma loucura, e para chegar a qualq
Este era o acesso a um lance contínuo e escadas em formato de cascata, que ficavam a parte, mas uniam todos os andares do prédio. O espaço era largo e conseguimos entrar todos sem problemas. Estava aparentemente vazio e silencioso, porém uma pequena trilha de sangue na escada me fez sentir um enorme calafrio. Alguma coisa já passou por ali…A escada para cima está limpa, vamos subir de uma vez, murmurou Roberto, buscando falar baixo.Sem nenhuma objeção, Guga fechou a porta de acesso ao corredor e seguimos para cima, apenas o barulho dos nossos passos chegando aos ouvidos. Era possível ouvir, bem ao longe, alguns gemidos. Olhei para baixo, mas não tinha ninguém atrás de mim além de Cláudio e Guga.Subimos em silêncio dois lances de escadas, que terminaram em um pequeno espaço plano antes da porta de madeira de aparência velha, porém imponente. Com um pouco de esperança, Roberto ten