Meu coração cavalgou novamente ao lembrar da necessidade de sair daquele lugar, como se a simples menção dessa ideia já evidenciasse a minha ruína. Ainda assim, fato era quem em uma manhã eu já havia visto mais carnificina do que se quer seria capaz de figurar em meus pesadelos mais viscerais e sobreviver aquele show de horrores para morrer de medo trancado em uma cabine de banheiro que parecia ser a coisa menos digerível do meu dia. Pesei que se fosse para morrer, que fosse de exaustão tentando lutar contra esses monstros, em vez de padecer com um rato assustador.
Uma pena que esses pensamentos heroicos fossem inúteis para me motivar a deixar aquele banheiro fétido em que eu estava trancada. A coragem é linda nos livros, mas na vida real ela pesa em uma tonelada e fede como a morte.
Ouvi mais uma vez os gemidos e soube que eles estavam lá, como se alguma hora eu realmente tivesse sido capaz de esquecê-los. Também tinha um cadáver, esses elementos me eram conhecidos porque eu ouvira o desenrolar da peça macabra que os originaria, enquanto obrigava-me a ficar quieta, pressionando as mãos contra a boca para impedir meu desespero de se fazer presente.Antes de tudo começar a ir pro inferno, nós havíamos sido avisados, mas naturalmente ignoramos.
A minha primeira vez que lembro de ter escutado algo sobre o caso foi nas férias de verão. Sei que houve outras notícias antes, mas não haviam atraído suficientemente minha atenção para se quer serem lembradas.Estava na sala de espera do posto de saúde aguardando o término do atendimento de minha avó, com os olhos preguiçosamente pousados na televisão, acompanhando o jornal do almoço.Lembro de ter assistido despreocupadamente 15 minutos de notícias corriqueiras até o anúncio feito por uma mulher de terninho e saia azul marinhos ter chamado a minha atenção: tratava-se de um espécime completamente novo, que estava congelado pelo que acreditavam ser, no mínimo dois mil anos. Os pesquisadores responsáveis justificaram o repentino retorno a atividade do vírus com a progressão do aquecimento global, responsável pelo derretimento das colatas polares.
Logo, o foco mudou.O homem de meia idade que dividia a tela com a apresentadora questionou sobre recentes boatos que começaram a se espalhar sobre a morte de cientistas responsáveis pelo caso. Ainda havia poucas informações sobre essa nova doença e suas formas de transmissão, mas seis mortes já haviam sido confirmadas até aquele momento no instituto responsável pelas pesquisas, em Monarca e nos EUA.
A partir daí, minha memória se perde, pois lembro que minha avó Anastácia saiu da sala de consultas abrindo um sorriso ao me ver. Era uma senhora de quase 80 anos, seus cabelos já estavam brancos e seu rosto era dominado por linhas de expressão, porém tinha a saúde em dia e sem muito esforço era possível ver a beleza que autrora tivera quando era mais nova.
Senti lágrimas quentes escorrendo pelo meu rosto ao me lembrar dela, agora parecia tudo muito distante, presa há mais de quatro horas dentro do último cubículo do banheiro feminino do meu colégio, acompanhada somente pleo cheiro da podridão e do sangue, além do constante grunhido vindo do lado de fora. Todas as vezes que chorei nesse meio tempo, tive de fazer silêncio. Pouco sabia sobre o que quer que fossem aquelas… coisas do outro lado da porta, mas acreditava que se eu conseguisse me manter quieta, ficaria a salvo.
Por enquanto, pelo menos…
É pouco, mas “por enquanto” era tudo ao que podia me apegar, tive uma implicável impressão de que, a partir desse dia, cada segundo contaria como se valesse uma vida. Pois pelo que eu percebi nesse curto tempo em que andei pelo inferno, cada segundo, de fato, pode significar a sua vida.
Abracei novamente os joelhos, colocando o rosto entre eles, pensando que só tomaria um pouco de fôlego e sairia dali. Aquela altura até eu já sabia que se tratava de uma mentira. Eu tentei de verdade na primeira vez, quando chegue a espiar por cima da porta, enquanto escalava a parede, mas imediatamente desisti e desatei a chorar, segurando aquela sensação intermitente de vômito (embora já não houvesse mais nada para sair do meu estômago).
Eu estava na última das cabines do banheiro feminino, encolhida no chão. Era lá onde ficavam os instrumentos de limpeza das responsáveis pela faxina do colégio: produtos químicos, vassouras, panos de limpezas, baldes e estoques de papel higiênico. Não havia uma privada, mas sim um tanque para lavagem. Aquela última cabine ficava trancada, ao acesso somente das funcionárias da limpeza, por isso foi necessário que eu pulasse por cima da parede divisória para chegar até ela. No momento, apenas havia me parecido sensato ficar em uma cabine trancada, mas distante da porta e que dispunha de alguns centímetros a mais do que as outras.
Quando corri para me esconder nesse banheiro, no segundo andar da biblioteca, o escolhi justamente por estar sempre vazio, mas talvez essa houvesse sido a minha ruína. Cheguei em completo pânico e desespero, desejando fugir do caos que se instaurava do lado de fora. Gostaria de dizer que quando finalmente pulei as cabines e sentei no chão com as costas rentes a parede, desfrutei do silêncio, porém que ilusão cruel esta seria: ainda era possível ouvir gritos frenéticos, grunhidos assustadoramente próximos e a confusão digna da mente de um louco.
Pude desfrutar da estranha tranquilidade de me ver longe do campo de guerra por algum tempo, o qual eu não soube calcular, já que não estava com meu celular. Posso dizer que quase consegui me acalmar completamente, rascunhando um plano de tentar recuperar os meus pertences e sair do colégio pela parte de trás, quando um estrondo congelou o meu coração e me levou novamente ao encontro do desespero.
A porta principal do banheiro abriu e pares de passos adentraram, trazendo consigo vozes femininas assustadas.
A biblioteca do colégio tinha dois andares, sendo o segundo onde ficava a sala de informática e locais para palestras. Era pouco frequentado, por isso acreditei que seria bom para me esconder por um tempo. De fato, parecia, ser, já que não fora a única que me interessei por ele.
A porta foi fechada e comecei a ouvir o desespero se espalhar, pude perceber que eram três garotas que me faziam companhia, porém apenas ouvia duas vozes, a terceira só conseguia emitir gemidos e um choro abafado. Ouvi papéis sendo puxados e torneiras ligadas, enquanto uma das garotas, em prantos, fazia referências sobre “aquela mordida” e a febre da amiga que não parava de subir.
Tinham as vozes nervosas e inquietas, mas demorou pouco para terem discrição e diminuírem o tom de conversa.
Naquele momento, pensei em revelar que eu estava lá, mas hesitei com a menção da “mordida”. Eu sabia pouco sobre o que quer que estava acontecendo, mas tinha noção de que tinha a ver com aquele vírus que começara a invadir as notícias e os fóruns de discussão. Ninguém poderia adivinhar o tamanho que aquilo tomaria e, em meio a notícias falsas e superstições, começamos a conhecer um pouco sobre aquilo que viera para ceifar o futuro a humanidade.
Eu não queria pensar naquilo, afinal era ridículo. Parecia uma espécie de filme de terror deturpado e estúpido. A diferença é que era real. Eu havia lido um pouco a respeito algumas semanas antes de tentarem impedir as discussões de se espalharem: o vírus era capaz de deixar as pessoas completamente violentas e irracionais. Fazia com que elas atacassem qualquer coisa, incluindo outras pessoas.
Então aconteciam as mordidas, e assim se espalhavam o vírus.
Na verdade, o que diziam era que qualquer contato entre fluidos corporais era o suficiente para espalhar a doença, mas as mordidas acabaram ficando conhecidas. “Mordidas” trata-se de um eufemismo generoso para ataques brutais de canibalismo.
Por minutos intermináveis, acompanhei em silêncio as duas garotas conversando sobre o que deveriam fazer: permanecer e esperar ou sair e buscar ajuda para a sua amiga. Aquela altura, já estava claro que qualquer interferência de minha parte não serviria de nada além de denunciar o meu esconderijo. Eu queria voltar a ficar sozinha e me concentrar em meu plano mental de fuga. Não queria dividir aquele banheiro com mais ninguém e muito menos alguém que já fora atacado por alguma criatura e agora carregava consigo a doença. Além do que, cada segundo que se passava tornava ainda mais inconveniente a minha situação, ouvindo escondida se sem demonstrar qualquer ajuda aquela cena macabra. Então, apenas, permaneci quieta, esperando a gloriosa hora em que elas abandonariam aquele banheiro em busca de ajuda.
Mas essa hora nunca chegou e agora eu estava bem fudida…
Logo a situação se tornou pior conforme, pelo que consegui entender, a garota mordida perdia a consciência e calava os seus tortuosos gemidos para sempre. As colegas, desesperadas, sacudiram-na e gritaram o seu nome pelo que parecem décadas. Ainda em meu completo torpor, um gosto amargo dominou a minha garganta, sinalizando a ânsia de vômito. Quais horrores não se passavam diante dos olhos daquelas garotas, sendo elas apenas estudantes tão comuns quanto eu? Que mundo blasfemo era aquele que as obrigava a segurar o corpo (com ou sem vida) de alguém tão jovem quanto elas próprias.
Quando, por fim, calaram-se, o silêncio caiu sobre o banheiro e choramos juntas. Elas, em prantos e eu, baixinho. Meu corpo estava congelado e a vergonha de ter me escondido por esse tempo todo me castigava. Ainda assim, não era capaz de sentir nem o menor impulso pra sair daquela cabine.Uma das garotas perguntou a outra se deveriam sair, ouviu uma negação, e o silêncio volto9u a predominar. Isso resumiu as horas que se seguam. As vezes, uma das duas chorava e a outra dava algum tipo de consolo. Tentavam uma conversa, esboçavam planos de sair dali, mas logo o assunto morria em seus lábios. Assim como eu, temiam a inevitável hora em que se viram obrigadas a sair daquele banheiro. Uma hora tentaram forçar a porta da cabine em que eu me escondia, o que quase me levou ao infarto, mas logo desistiram.Quando finalmente a monotonia se interrompeu, foi apenas iniciar nossos pesadelos.Um novo som chegou aos meus ouvidos, diferente de todos os outr
Eu já não era capaz de dizer o que guiava: o medo de definhar até morrer, presa com um demônio saído de pesadelos profanos;O horror de se quer imaginar o inevitável confronto que se desenharia casos eu tentasse fugir ou a mais pura insanidade; Vamos dizer que, por absolutamente nenhum motivo além do impulso natural de sobrevivência, arrisquei uma nova olhada, ciente que ou eu encontraria uma forma de sobreviver agora ou cederia meu último resquício de sanidade pra este espetáculo de horror. Abaixei o meu corpo ao máximo que fui capaz, com lentidão e esmero, aproximando a cabeça do vão entre a porta do banheiro e o chão gelado. Era quase insuficiente para espremer meu rosto de forma que permitisse a visão. Também me mantive atenta e tomei cuidado de não encostar a cabeça na porta, evitando a todo custo produzir qualquer ruido que fosse. Eu sabia que o único motivo de continuar viva até que aquele momento era o fato de não me ter feito até então. A tal altu
A passagem daquela divisória para a seguinte me deixou ainda mais tensa, tomando cuidado dobrado para evitar qualquer ruído. Caso algo desse errado, meu ceifador estaria logo abaixo de mim. Pude perceber que, mesmo diminuindo os ruídos ao mínimo, a minha sombra ainda se fazia presente, passando por sobre cabeça daquele ser, que não parecia se importar. Suas visões eram perfeitas, tais como eram quando seres humanos? Como seriam seus sentidos?Haveria a necessidade de me preocupar tanto?Quando terminei a travessia, virada com ambas as pernas para a cabine a minha frente, percebi como meus músculos estavam tensionados e tentei relaxar, sem muito sucesso. Agora estava as duas cabines de distância da porta. O corpo da última menina - a única, de fato, morta - estava logo em frente a porta da última cabine. Eu pretendia descer e sair pela porta, mas logo entendi que a ideia seria falha: a parte de cima do seu corpo estava apoiada na porta da cabine, o que dificultaria
Infelizmente, foi tudo o que eu pude analisar, pois precisei sair correndo. Não tive intenção de tentar me comunicar com eles, afinal seria inútil: tudo que eles queriam era garantir algumas mordidas em minha carne e eventualmente transformar-me em um dos seus. Enquanto o monstro sem olho andava a passos lentos e arrastados; o segundo, logo ao trocarmos olhares, iniciou uma corrida determinada. Se fosse só o seu companheiro, eu poderia ter fugido tranquilamente, porém precisei me apressar e correr o mais rápido que eu pude em direção ao corredor que ligava o prédio da biblioteca com o de sala de aulas. A primeira coisa que notei foi que um deles era rápido. Muito mais rápido. A segunda é que eles estavam mais machucados. Diferentemente daqueles com quem dividi o banheiro, que possuía, que possuíam um ou outros machucados aparentes, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, estes tinha
Quando o corredor desembocou em uma área mais ampla, que dava acesso à escadaria, tomei ainda mais cuidado com os meus movimentos. O chão é as paredes brancas estavam repletos de manchas de sangue. O cheiro era tão forte que me obrigou a trancar a respiração.O cheiro ou a meia dúzia de monstros que se reuniam no canto da sala.Eu pude ver algumas partes que apareciam por baixo de montoeira de corpos: pernas, braços, cabeças completamente desfiguradas. As coisas banqueteavam-se em meio a cadáveres ensaguentados e me obriguei a desviar o olhar para não enlouquecer. O impulso de vomitar me dominou de novo, mas precisei ignorá-lo.Passei a me mover lentamente as costas coladas na parede atrás de mim sem me importar se manchava a blusa polo branca do meu uniforme. Estavam distraídos, faziam sons guturais e era possível ouvir o barulho de carne se rasgando conforme jogavam as cabeças para trás, puxando violentamente pedaços em seus dentes. O cheiro de morte e podr
Não, eu não estava. Digo, ele não havia me arrastado para qualquer tipo de perigo. É só que “a salvo” simplesmente era uma coisa que tinha deixado de existir, embora naquela altura eu ainda não soubesse. A primeira pessoa que eu vi foi Cláudio Dultra: outro terceiranista, mas familiar para mim por estudarmos na mesma sala. Tinha a pele escura, olhos e cabelos negros e uma expressão de poucos amigos. Diferente da maioria dos nossos colegas, tinha músculos definidos e traços mais adultos. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vinhamos do resto das salas de ensino médio, em uma curva acentuada. Quando nos viu, assumiu uma postura nervosa ao perceber como corríamos rápido. Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela. Guga não pareceu estar surpreso, conforme continuava correndo em direção à porta. Aquela altura eu já havia conseguido estabelecer equ
Mayara olhou para ela com os olhos arregalados em reprovação, mas não falou nada.Sorri de volta para Valentina, mas não consegui disfarçar por muito tempo o meu incomodo conforme me aproximei delas.Mayara, o que houve com sua perna? Perguntei, finalmente compreendendo que o professor Roberto amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.Mayara olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.Ela não foi atacada. Cláudio quem respondeu, atrás de mim. Cortou a perna em um arame enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não é nada sério.Desculpa ser tão indelicada, é só que… comecei olhando nos úmidos olhos cor de mel da garota.Não, tudo bem… ela olhou para a perna dando de ombros. Acho que é uma preocupação válida. Conversar parecia acalmá-la um pouco.Então você conseguiu? Perguntou Anny
Você vai sozinha? Perguntou Cláudio, levemente surpreso, enquanto me seguia porta afora. Eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou voltar para casa hoje. Quando falei isso, vários olhares vieram em minha direção. O professor Roberto já estava em pé, de braços cruzados e olhou para mim: Você acha que é seguro tentar ir pra casa, Rute? Indagou, com a voz preocupada, todo mundo está dizendo que o transporte publico parou. Olhei para ele e agradeci a preocupação… Não tem problema, professor. Eu vou a pé, se precisar, só teria de atravessar a ponte, falei, calmamente, preciso encontrar com a minha avó e com a Mel… justificando sem perceber que talvez eles não soubessem de quem eu estava falando. Como você pretende sair do colégio? Perguntou-me a garota negra de cabelos crespos. Ela parecia bastante calma diante da situação. O pátio está uma loucura, e para chegar a qualq