Quando o corredor desembocou em uma área mais ampla, que dava acesso à escadaria, tomei ainda mais cuidado com os meus movimentos. O chão é as paredes brancas estavam repletos de manchas de sangue. O cheiro era tão forte que me obrigou a trancar a respiração.
O cheiro ou a meia dúzia de monstros que se reuniam no canto da sala.
Eu pude ver algumas partes que apareciam por baixo de montoeira de corpos: pernas, braços, cabeças completamente desfiguradas. As coisas banqueteavam-se em meio a cadáveres ensaguentados e me obriguei a desviar o olhar para não enlouquecer. O impulso de vomitar me dominou de novo, mas precisei ignorá-lo.
Passei a me mover lentamente as costas coladas na parede atrás de mim sem me importar se manchava a blusa polo branca do meu uniforme. Estavam distraídos, faziam sons guturais e era possível ouvir o barulho de carne se rasgando conforme jogavam as cabeças para trás, puxando violentamente pedaços em seus dentes. O cheiro de morte e podridão fazia meu nariz doer.
Logo ao chegar na escadaria vi que três deles- dois com uniforme, mas que eu não consegui identificar e outro que eu conhecia: uma professora do jardim de infância - subiam vagarosamente as escadas. O barulho do banquete de seus colegas os atraíra pensei. Assim que seus olhos pousaram mim, percebi seus movimentos se acelerando, conforme os olhos cheios de veia se arregalaram. Entraram em modo de caça pensei comigo mesma.
Subi as escadas com pressa, rumando para o terceiro andar do prédio de salas de aula, ignorando o barulho que eu estava fazendo. Como eu queria gritar igual a uma idiota em perigo e esperar ajuda. Por que eu precisava continuar correndo?
Eu estava completamente fraca de medo, tendo noção que o terceiro andar era o último daquele prédio. Havia outra escadaria além da que eu usava, mas ficava no final de um longo corredor e seria a minha única saída, caso aquele andar estivesse ainda pior do que o de baixo. Eu corria como um rato e temia estar em direção a armadilha que eu mesma criará.
Tropecei no último degrau movendo as pernas rápido para não cair no chão, mas me desequilibrando. Olhei pra cima com medo de ter chegado atraindo a indesejada atenção de qualquer coisa que gostaria de comer a minha cara.
Os olhos verdes que captaram os meus porém não tinham nenhuma semelhança com os olhos dos meus predadores.
Parei aí me equilibrar e fechei os olhos no menino que saia da sala da coordenadora como se fosse um dia comum em que ele acabará de levar uma bronca. Usava o mesmo uniforme que eu seus olhos eram verdes, os cabelos castanhos claros e seu nome era Guga. Ele também estava no terceiro ano e estudava na sala C enquanto eu estudava na B. Estava completamente inteiro, se não fossem algumas gotas de sangue no pescoço, manchado levemente a gola da camiseta. Eu não consegui identificar qualquer sinal de machucados ou da infecção.
Com a mesma surpresa ele me encarou de volta, imóvel. Senti que meu coração cavalgava, provavelmente diante da surpresa de ver outra pessoa viva. Pensei que ele deveria estar se sentindo o mesmo. Ficamos parados nos olhando por pouco segundos, mas o tempo pareceu parar por anos enquanto meu corpo se enchia da alegria em ver algo diferente daqueles monstros, ainda que fosse uma pessoa que eu mal conhecia. Uma brisa chegou até o meu corpo, causando uma sensação gélida e arrancando-me do transe.
Guga? A pergunta era neurótica. Seu nome era Guga Benedito Ferreira e eu sabia disso, embora nunca tenhamos trocado mais do que duas palavras (se quer havíamos conversado algum dia?) Na vida. Eu estava naquele mesmo colégio desde o quinto ano enquanto Guga entrou somente no ensino médio. O motivo de saber o seu nome era porque ele também praticava esportes e mais de uma vez já fomos a campeonatos nacionais de esporte no mesmo ônibus escolar, mas também porque minha amiga Duda estava sempre falando dele.
Ele usou as sobrancelhas franzindo a testa. Não sabia o meu nome. Não senti qualquer ressentimento afinal meu contato com os terceiranistas de outras turmas era resumido as garotas que treinavam handbol comigo.
Sua expressão clareou.
Roberta - falou para minha surpresa. Ouvir a sua voz me causou um alívio conforme percebi que era a primeira voz - não gritos - não humana que chegava até meus ouvidos em horas.
Então os grunhidos atrás de mim nos arrancaram de nossos devaneios bobos. Guga começou a correr vindo em minha direção.
Anda, vem! Senti sua mão se fechando em torno do meu pulso e uma paixão logo antes dele começar a correr. Sem qualquer delicadeza ele me arrastou atrás de sua enquanto eu tentava encontrar equilíbrio. Não protestei apesar de não ter gostado nada - tem mais gente viva aqui em cima...
Ah sim...
Eu estava salva então!
Não, eu não estava. Digo, ele não havia me arrastado para qualquer tipo de perigo. É só que “a salvo” simplesmente era uma coisa que tinha deixado de existir, embora naquela altura eu ainda não soubesse. A primeira pessoa que eu vi foi Cláudio Dultra: outro terceiranista, mas familiar para mim por estudarmos na mesma sala. Tinha a pele escura, olhos e cabelos negros e uma expressão de poucos amigos. Diferente da maioria dos nossos colegas, tinha músculos definidos e traços mais adultos. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vinhamos do resto das salas de ensino médio, em uma curva acentuada. Quando nos viu, assumiu uma postura nervosa ao perceber como corríamos rápido. Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela. Guga não pareceu estar surpreso, conforme continuava correndo em direção à porta. Aquela altura eu já havia conseguido estabelecer equ
Mayara olhou para ela com os olhos arregalados em reprovação, mas não falou nada.Sorri de volta para Valentina, mas não consegui disfarçar por muito tempo o meu incomodo conforme me aproximei delas.Mayara, o que houve com sua perna? Perguntei, finalmente compreendendo que o professor Roberto amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.Mayara olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.Ela não foi atacada. Cláudio quem respondeu, atrás de mim. Cortou a perna em um arame enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não é nada sério.Desculpa ser tão indelicada, é só que… comecei olhando nos úmidos olhos cor de mel da garota.Não, tudo bem… ela olhou para a perna dando de ombros. Acho que é uma preocupação válida. Conversar parecia acalmá-la um pouco.Então você conseguiu? Perguntou Anny
Você vai sozinha? Perguntou Cláudio, levemente surpreso, enquanto me seguia porta afora. Eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou voltar para casa hoje. Quando falei isso, vários olhares vieram em minha direção. O professor Roberto já estava em pé, de braços cruzados e olhou para mim: Você acha que é seguro tentar ir pra casa, Rute? Indagou, com a voz preocupada, todo mundo está dizendo que o transporte publico parou. Olhei para ele e agradeci a preocupação… Não tem problema, professor. Eu vou a pé, se precisar, só teria de atravessar a ponte, falei, calmamente, preciso encontrar com a minha avó e com a Mel… justificando sem perceber que talvez eles não soubessem de quem eu estava falando. Como você pretende sair do colégio? Perguntou-me a garota negra de cabelos crespos. Ela parecia bastante calma diante da situação. O pátio está uma loucura, e para chegar a qualq
Este era o acesso a um lance contínuo e escadas em formato de cascata, que ficavam a parte, mas uniam todos os andares do prédio. O espaço era largo e conseguimos entrar todos sem problemas. Estava aparentemente vazio e silencioso, porém uma pequena trilha de sangue na escada me fez sentir um enorme calafrio. Alguma coisa já passou por ali…A escada para cima está limpa, vamos subir de uma vez, murmurou Roberto, buscando falar baixo.Sem nenhuma objeção, Guga fechou a porta de acesso ao corredor e seguimos para cima, apenas o barulho dos nossos passos chegando aos ouvidos. Era possível ouvir, bem ao longe, alguns gemidos. Olhei para baixo, mas não tinha ninguém atrás de mim além de Cláudio e Guga.Subimos em silêncio dois lances de escadas, que terminaram em um pequeno espaço plano antes da porta de madeira de aparência velha, porém imponente. Com um pouco de esperança, Roberto ten
Imediatamente amaldiçoei a minha decisão burra de gritar. Não contentes somente em arrancar pedaços de carne da minha amiga estirada na escadaria, três deles viraram as cabeças grotescas para mim e começaram a subir em minha direção. Não eram rápidos, mas isso não os tornava menos assustadores. Rute??? Ouvi a voz de Valentina ecoar acima de mim... Lorena? Eu estou bem! Gritei de volta, sem saber como informar o estado de Lorena. Virei-me a fim de subir correndo de volta para o meu corpo, mas tropecei e caí no chão. Minha canela bateu contra a quina do degrau e um grunhido de dor vazou por meus lábios. Só então percebi como eu tremia. A barra de metal batia continuamente no chão, emitindo um som metálico constante, pela falta de instabilidade com que eu segurava ela. Sem tempo a perder, apoiei-me nos braços e subir alguns degraus de quatro mesmo, até conseguir focar em pé. Corri
Com o nosso colégio ficava em uma parte mais elevada do resto da cidade tínhamos uma visão privilegiada da cobertura, bela em todos os outros dias. Hoje porém este camarote só nos dava uma perspectiva pior do fim do mundo que se estendia sob nós.Havia muita fumaça e isso era o mais perceptível de imediato. Vários focos de uma espessa fortuna negra subiam aos céus provindos de chamas altas de incêndio. Quase todas as ruas que vi encontravam se completamente dominadas por carros parados em fila indiana e só então o barulho das buzinas tornou-se evidente. E estas eram as boas e nas outras ruas era possível ver engavetamentos grotescos, batidas de quase 10 carros de uma só vez. Mas o pior eram as pessoas correndo como milhares de formiguinhas desesperadas corriam descontroladamente de seres grotescos infernais, mas tão parecidos com as presas que perseguiam.Naquele cenário profano o caso mostrou-se como a única lei e ao longe da cidade o tapete azul do mar se estendia até
A escada de emergência sacudia com o vento, criando um balanço incômodo, seguido pelo barulho da estrutura de metal batendo contra a parede do prédio. Cada batida era pontuada por um gritinho de Mayara, que tremia logo a minha frente. Ellenao meu lado, encarava ela com reprovação, revirando os olhos e os pousando em mim, buscando identificar a minha opinião sobre aquilo. Concordou silenciosamente com ela, dando um riso de deboche para tentar expressar minha reprovação. Mayara, será que você não pode calar essa boca? Perguntou Anny a sua frente focada nos degraus e apertando com força o corrimão de segurança.Mayara manhou baixinho tentando segurar o próximo gritinho, conforme a estrutura em que estávamos sacudia. Quando ela se virou para o próximo lance de escadas, pude olhar para seu rosto e vi que dois caminhos de lágrimas se destacavam em sua bochechas bronzeadas.
E por qual caminho vamos? Perguntou Valentina baixinho...Como vamos ter que passar na casa da Mayara que é na Avenida das Torres acho que a gente pode seguir essa rua e descer até a principal. De lá a gente segue até a sua casa e depois nós vemos o que fica melhor pode ser? Guga olhou para mim e para Cláudio que concordamos sem realmente ter uma ideia melhor.Rute pode guiar o caminho e eu e o Guga ficamos atrás para proteger vocês de qualquer coisa que vier. Cláudio continuou... vamos correndo então mantenham o ritmo... falem baixo e mais importante absolutamente em circunstâncias nenhuma gritem ou façam algo que chame a atenção deles.Conseguimos afastar alguns e abrir distância, mas se vários vierem para cima de nós...Ele deixou a frase morrer no ar criando uma onde de tensão que passou por todos nós que ali estavam...<