Não, eu não estava.
Digo, ele não havia me arrastado para qualquer tipo de perigo.
É só que “a salvo” simplesmente era uma coisa que tinha deixado de existir, embora naquela altura eu ainda não soubesse.
A primeira pessoa que eu vi foi Cláudio Dultra: outro terceiranista, mas familiar para mim por estudarmos na mesma sala. Tinha a pele escura, olhos e cabelos negros e uma expressão de poucos amigos. Diferente da maioria dos nossos colegas, tinha músculos definidos e traços mais adultos. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vinhamos do resto das salas de ensino médio, em uma curva acentuada. Quando nos viu, assumiu uma postura nervosa ao perceber como corríamos rápido.
Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela.
Guga não pareceu estar surpreso, conforme continuava correndo em direção à porta. Aquela altura eu já havia conseguido estabelecer equilíbrio e corria junto com ele, alguns passos para trás.
Fecha a porta quando a gente passar! Falou Guga conforme nos aproximávamos. Tem outros vindo!
Naquele momento, virei a cabeça para trás a fim de ter noção do que se passava. A princípio, haviam dois que se moviam bem rápido – quase corriam – mas os quatro que vinham atrás pareciam ser mais lentos. Porém ainda lentos moviam-se com determinação indispostos a parar.
Todos, exceto um, usavam uniformes escolares, mas seus machucados eram tão grotescos que me recusei a ficar olhando, buscando identificá-los. Que sentido teria isso, afinal? Eu nem saberia dizer se ainda estavam vivos.
Passamos correndo pela enorme porta de madeira escura e imediatamente ouvi o barulho dela fechando. Respirando alto virei para atrás, vendo Cláudio analisando os dois puxadores da porta alinhando e, por fim, enfiando um pedaço de madeira no meio deles certificando-se de que a porta não seria aberta.
Assim que terminou, virou para nós, focando seus olhos em Guga.
Você conseguiu?
Guga não respondeu, apenas mostrou duas chaves que carregava nas mãos, ambas com chaveiro de plásticos pendurados, indicando 3B em um e 3C no outro. Eram chaves das salas das turmas do terceiro ano.
Continuo achando a sua ideia retardada, Cláudio disse sem rodeis, virando para mim. Não se preocupava em esconder a desconfiança em seu rosto. Roberta, você foi atacada? Ele me olhou de cima abaixo. Não acompanhei o seu olhar, imaginando que deveriam haver rastros de sangue por todo o meu corpo, ainda que não aparentassem ser machucados sérios. Neguei com a cabeça, sustentando o olhar dele quando voltou a me encarar. O que houve com sua calça?
Olhei para baixo, vendo minha calça legging suja de pó, com alguns rasgos superficiais.
Eu estava presa em uma das cabines do banheiro, com uma dessas coisas do lado de fora. Tive que passar por cima da divisória para chegar até a porta e sair, acho que rasguei no processo. Menti, passando a mão pelas minhas canelas. Eram rasgos superficiais e eu sabia que não havia causado nenhum dano a minha perna, então imaginei que fosse melhor esconder o fato de que havia sido um deles.
Só tinha um? Você não tentou bater nele?
Olhei para ele, pasma.
Eu deveria bater? Era uma menina com um uniforme do colégio… de qualquer forma, eles nem ao menos parecem se incomodar com a dor. Eu vi um deles quebrar os dentes na minha frente e nem sentir.
Respondi.
Eles não param porque dói, mas se você conseguir bater bem forte, pode derrubá-los. Nisso ainda são como pessoas normais.
E as vezes quando você bate, eles param. Guga interrompeu. Eu não sei por que e porque só acontece as vezes, mas eu acho que eles morr… ele deixou a frase se perder no ar, incerto.
Entendi a sua hesitação. Como você pode dizer que algo que já está morto morreu de novo?
Ficamos em silêncio alguns segundos, não tão confortáveis com a situação. Guga e Cláudio eram bons amigos, mas eu não era particularmente chegada a nenhum dos dois. Trocava apenas alguma ideia relacionada a aula ou a provas com Cláudio eventualmente, quando nossos grupos de amigos estavam juntos. Ainda não tinha certeza se já tinha conversado com Guga antes.
Vamos então, começou Cláudio, virando-se para o corredor a nossa frente, os outros estão esperando.
Que outros? Preparei-me para perguntar, mas assim que virei na mesma direção de Cláudio a minha pergunta foi respondida.
Havia um grupo de pessoas, mas do que eu esperava ver vivas naquele instante. Nenhum deles era particularmente próximo a mim, mas era impossível não sentir felicidade em ver outros rostos humanos.
A maior surpresa foi ver o nosso professor de geografia, Roberto. Era um homem bem alto, de cabelos raspados e um óculos de grau estilo aviador. Diferente da maioria dos professores, este não era particularmente chegado aos alunos, fazendo o seu trabalho e não colocando esforço em estender qualquer relação para algo além de pura formalidade profissional. Ele parecia inquieto, amarrando algo na perna de Mayara.
Mayara Merry roía a unha pintada do polegar, enquanto fitava fixamente o nada, parecendo aterrorizada. Era uma menina bonita, agradável e gentil, que certamente só seria descrita com palavras boas por qualquer um daquele colégio. Tinha a pele bronzeada de sol e cabelos loiros que se ondulavam nas costas. Você poderia dizer que ela era garota má do colégio, pela aparência perfeita e sobrenome gringo, se não a conhecesse bem. Ao seu lado estava Valentina Cherry, uma garota negra de cabelos longos e lisos. Usava grande óculos redondos de armação dourada e segurava o celular no ouvido, mas não falava nada. Valentina tinha a voz baixa e contida, era gentil, porém investia todo o tempo disponível nos estudos.
Anny Novasque a melhor amiga de Mayara estava sentada do seu outro lado, com o celular na mão. Quebrando o clima de pessoas agradáveis, Anny era uma completa estúpida. Ela estava no segundo ano, mas eu a conhecia pelos treinos de handebol. Jogava tão bem quanto seu ego era alto, porém não poucas vezes fazia uso excessivo de força física e agressividade para vencer as adversarias na marcação. O que era incrível quando jogávamos juntas representando o colégio, tornava-se irritante de jogar contra durante os treinos. Ela não gostava de mim.
Em pé, próximo a janela, estava um garoto alto e gordinho, com cabelos acobreados e leves sardas pelo rosto, que se mesclavam com algumas de suas espinhas. Usava óculos e seu rosto portava um semblante sério, olhando para o lado de fora do prédio. Fábio um intercambista colombiano do terceiro ano, estava ao seu lado, chorando em prantos. Os cabelos negros e lisos escorriam até quase cobrir seus olhos.
Uma menina negra com os cabelos crespos e volumosos conversava com um garoto que eu conhecia por já ter estudado comigo: Dudu Martins que reprovou o ano passado. Trajava-se de forma caricata como um típico badboy problemático (jaqueta de couro, moicano e coleira de spikes). Quem completava aquele estranho grupo era outra terceiranista, Lorena Garcia uma colega que eu conhecia e gostava de cabelos castanhos e óculos fundo de garrafa. Estava sentada n chão, abraçando os joelhos e olhando para os próprios All Star. Lágrimas escorriam pelo canto de seus olhos e ela parecia estar em choque.
Entendi, observando todos aqueles alunos de diferentes turmas juntos e as chaves na mão de Guga – indicando que as portas estavam trancadas – que os caos, que se instaurou pela hora do intervalo do ensino médio, nunca permitiu que os alunos voltassem para sala.
Começou por volta de quase 10 horas, quando os alunos mais novos voltavam para as salas e nós, mais velhos eramos liberados para o recreio. O indicador do início do caos fora uma movimentação irregular próxima ao protão de acesso, que permanecia fechado durante período de aula. Eu, Duda e Ananda, que sempre passávamos o intervalo juntas, tentamos acompanhar de longe, mas era difícil entender o que exatamente acontecia.
Até Duda se fartou e resolveu se aproximar, enquanto eu e Ananda ficamos de longe, logo as pessoas começaram a cochichar sobre um cara estranho que entrou no colégio e se recusava a acatar as ordens do segurança. Ele não estava armado, mas aprecia desorientado e apresentava um comportamento estranho.
Queria poder dizer que não, mas no fundo eu temia já imaginar do que se tratava. Afinal, havia sido noticiado em todo o mundo já e, apesar de termos perdido contato com vários fóruns e sites que se propunham e passar notícias censuradas pela mídia, nada parecia sugerir que havia melhorado. Quando, por fim, veio o primeiro grito, confesso que…
Roberta! Que bom que você está bem! A voz baixinha e doce de Valentina gentilmente afastou-me de meus devaneios. Ela sorriu fracamente para mim conforme eu me aproximava parecendo um passarinho frágil, de tão magra que eu era, enquanto tremia de medo. Seus olhos estavam inchados e vermelhos.
Olha, veio correndo tão rápido que as marias chiquinhas soltaram? Completo Anny com sarcasmo…
referia-se ao penteado habitual que eu usava para jogar, com duas marias chiquinhas altas na cabeça, pois não gostava de usar rabo de cavalo. Ela já deixaria claro algumas vezes como desgostava dessa minha preferência. Meu cabelo negro estava solto naquela manhã, porque não haveria treino.
Mayara olhou para ela com os olhos arregalados em reprovação, mas não falou nada.Sorri de volta para Valentina, mas não consegui disfarçar por muito tempo o meu incomodo conforme me aproximei delas.Mayara, o que houve com sua perna? Perguntei, finalmente compreendendo que o professor Roberto amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.Mayara olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.Ela não foi atacada. Cláudio quem respondeu, atrás de mim. Cortou a perna em um arame enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não é nada sério.Desculpa ser tão indelicada, é só que… comecei olhando nos úmidos olhos cor de mel da garota.Não, tudo bem… ela olhou para a perna dando de ombros. Acho que é uma preocupação válida. Conversar parecia acalmá-la um pouco.Então você conseguiu? Perguntou Anny
Você vai sozinha? Perguntou Cláudio, levemente surpreso, enquanto me seguia porta afora. Eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou voltar para casa hoje. Quando falei isso, vários olhares vieram em minha direção. O professor Roberto já estava em pé, de braços cruzados e olhou para mim: Você acha que é seguro tentar ir pra casa, Rute? Indagou, com a voz preocupada, todo mundo está dizendo que o transporte publico parou. Olhei para ele e agradeci a preocupação… Não tem problema, professor. Eu vou a pé, se precisar, só teria de atravessar a ponte, falei, calmamente, preciso encontrar com a minha avó e com a Mel… justificando sem perceber que talvez eles não soubessem de quem eu estava falando. Como você pretende sair do colégio? Perguntou-me a garota negra de cabelos crespos. Ela parecia bastante calma diante da situação. O pátio está uma loucura, e para chegar a qualq
Este era o acesso a um lance contínuo e escadas em formato de cascata, que ficavam a parte, mas uniam todos os andares do prédio. O espaço era largo e conseguimos entrar todos sem problemas. Estava aparentemente vazio e silencioso, porém uma pequena trilha de sangue na escada me fez sentir um enorme calafrio. Alguma coisa já passou por ali…A escada para cima está limpa, vamos subir de uma vez, murmurou Roberto, buscando falar baixo.Sem nenhuma objeção, Guga fechou a porta de acesso ao corredor e seguimos para cima, apenas o barulho dos nossos passos chegando aos ouvidos. Era possível ouvir, bem ao longe, alguns gemidos. Olhei para baixo, mas não tinha ninguém atrás de mim além de Cláudio e Guga.Subimos em silêncio dois lances de escadas, que terminaram em um pequeno espaço plano antes da porta de madeira de aparência velha, porém imponente. Com um pouco de esperança, Roberto ten
Imediatamente amaldiçoei a minha decisão burra de gritar. Não contentes somente em arrancar pedaços de carne da minha amiga estirada na escadaria, três deles viraram as cabeças grotescas para mim e começaram a subir em minha direção. Não eram rápidos, mas isso não os tornava menos assustadores. Rute??? Ouvi a voz de Valentina ecoar acima de mim... Lorena? Eu estou bem! Gritei de volta, sem saber como informar o estado de Lorena. Virei-me a fim de subir correndo de volta para o meu corpo, mas tropecei e caí no chão. Minha canela bateu contra a quina do degrau e um grunhido de dor vazou por meus lábios. Só então percebi como eu tremia. A barra de metal batia continuamente no chão, emitindo um som metálico constante, pela falta de instabilidade com que eu segurava ela. Sem tempo a perder, apoiei-me nos braços e subir alguns degraus de quatro mesmo, até conseguir focar em pé. Corri
Com o nosso colégio ficava em uma parte mais elevada do resto da cidade tínhamos uma visão privilegiada da cobertura, bela em todos os outros dias. Hoje porém este camarote só nos dava uma perspectiva pior do fim do mundo que se estendia sob nós.Havia muita fumaça e isso era o mais perceptível de imediato. Vários focos de uma espessa fortuna negra subiam aos céus provindos de chamas altas de incêndio. Quase todas as ruas que vi encontravam se completamente dominadas por carros parados em fila indiana e só então o barulho das buzinas tornou-se evidente. E estas eram as boas e nas outras ruas era possível ver engavetamentos grotescos, batidas de quase 10 carros de uma só vez. Mas o pior eram as pessoas correndo como milhares de formiguinhas desesperadas corriam descontroladamente de seres grotescos infernais, mas tão parecidos com as presas que perseguiam.Naquele cenário profano o caso mostrou-se como a única lei e ao longe da cidade o tapete azul do mar se estendia até
A escada de emergência sacudia com o vento, criando um balanço incômodo, seguido pelo barulho da estrutura de metal batendo contra a parede do prédio. Cada batida era pontuada por um gritinho de Mayara, que tremia logo a minha frente. Ellenao meu lado, encarava ela com reprovação, revirando os olhos e os pousando em mim, buscando identificar a minha opinião sobre aquilo. Concordou silenciosamente com ela, dando um riso de deboche para tentar expressar minha reprovação. Mayara, será que você não pode calar essa boca? Perguntou Anny a sua frente focada nos degraus e apertando com força o corrimão de segurança.Mayara manhou baixinho tentando segurar o próximo gritinho, conforme a estrutura em que estávamos sacudia. Quando ela se virou para o próximo lance de escadas, pude olhar para seu rosto e vi que dois caminhos de lágrimas se destacavam em sua bochechas bronzeadas.
E por qual caminho vamos? Perguntou Valentina baixinho...Como vamos ter que passar na casa da Mayara que é na Avenida das Torres acho que a gente pode seguir essa rua e descer até a principal. De lá a gente segue até a sua casa e depois nós vemos o que fica melhor pode ser? Guga olhou para mim e para Cláudio que concordamos sem realmente ter uma ideia melhor.Rute pode guiar o caminho e eu e o Guga ficamos atrás para proteger vocês de qualquer coisa que vier. Cláudio continuou... vamos correndo então mantenham o ritmo... falem baixo e mais importante absolutamente em circunstâncias nenhuma gritem ou façam algo que chame a atenção deles.Conseguimos afastar alguns e abrir distância, mas se vários vierem para cima de nós...Ele deixou a frase morrer no ar criando uma onde de tensão que passou por todos nós que ali estavam...<
Ellen foi a última a pular o portão fazendo-o com agilidade de um gato e pousando no chão com graça. Sem maiores problemas (além da blusa meio rasgada de Anny) todos conseguiram jogar suas mochilas para o outro lado e escalar o portão tranquilamente. Enquanto a última a travessia era feita eu junto de Cláudio e Guga permanecemos um pouco afastados tentando anteceder a movimentação de qualquer um dos cadáveres que viesse em nossa direção. Dois se moviam lentamente cindo da direção que devíamos seguir naquela rua. Outros dois estavam deitados no chão aparentemente imóveis, mas havíamos percebido movimentos menores que nos permitiam detectar que ainda restava vida (não vida) neles. Vamos rápido agora... Guga olhou para nós sua voz pouco mais do que um cochicho não precisa bater neles até eles pararem só se certifiquem de dar uma porrada boa o suficiente para afastá-lo ou derrubá