Eu já não era capaz de dizer o que guiava: o medo de definhar até morrer, presa com um demônio saído de pesadelos profanos;
O horror de se quer imaginar o inevitável confronto que se desenharia casos eu tentasse fugir ou a mais pura insanidade;Vamos dizer que, por absolutamente nenhum motivo além do impulso natural de sobrevivência, arrisquei uma nova olhada, ciente que ou eu encontraria uma forma de sobreviver agora ou cederia meu último resquício de sanidade pra este espetáculo de horror.
Abaixei o meu corpo ao máximo que fui capaz, com lentidão e esmero, aproximando a cabeça do vão entre a porta do banheiro e o chão gelado. Era quase insuficiente para espremer meu rosto de forma que permitisse a visão. Também me mantive atenta e tomei cuidado de não encostar a cabeça na porta, evitando a todo custo produzir qualquer ruido que fosse.
Eu sabia que o único motivo de continuar viva até que aquele momento era o fato de não me ter feito até então. A tal altura, ainda era impossível pra mim deduzir qual seria o grau de audição daquelas coisas, por isso o menor estalo que meu corpo produzia já era suficiente para enviar uma onda de gelo por toda minha espinha.
Por baixo da porta, fui capaz de enxergar um par de tênis Vans pretos a dois metros de mim. As canelas de quem os calçava eram brancas, maculadas por fios de sangue que desciam até se perderem no algodão das meias brancas. Ao lado do Vans, uma poça d água se formava, com uma espessa espuma branca nas bordas. Aquilo que outrora fora uma estudante parecia estar completamente imóvel. Eu não sabia se fitava algo, ou se quer se era capaz de prender a sua atenção em alguma coisa. Qualquer que fosse essa resposta, apenas a realização de que eu somente via a parte de trás do tênis - que significava que aquilo não estava virado na minha direção – era o suficiente. No meu campo de visão, não era possível ver mais nada além disso.
Ousei perguntar-me por que parara de comer a sua amiga, mas simplesmente pensar nisso quase me fez ficar mais maluca que eu já estava.
Ainda com cuidado, ergui-me até ficar em pé. A operação teria que ser bem cuidadosa, mas imaginei que eu seria capaz de produzir o mínimo barulho. Que Deus permitisse que isso fosse suficiente.
Em câmera lenta, eu comecei a subir no tanque, colocando uma perna por vez, ouvindo alguns estalos que a porcelana fazia sob meu peso. Espalmei as mãos nos ladrilhos gelados da parede, tentando deixar a maior parte do peso apoiado somente nelas. Cada movimento milimétrico que eu fazia me permitia sentir a instabilidade do tanque. Todo meu corpo – as minhas axilas, principalmente – ficaram úmidos conforme o meu nervosismo aumentava.
Quando comecei a me erguer em pé, tive cautela antes de ficar completamente ereta. Consegui ver, por sobre a porta de madeira, que Soraia realmente estava de costas pra mim, fitando a pequena janelinha no alto da parede, permitindo-me ver apenas seus compridos cabelos castanhos. O som que vinha do lado de fora (gritos) parecia mantê-las devidamente interessada. Não conseguia ver seu rosto e agradeci por não ter de ver novamente aqueles deformados olhos vermelhos.
Da altura que eu estava, olhei ao meu redor e precisei de muita força para não desisti imediatamente: próximo a porta, o corpo sem vida, com o rosto mutilado, estava estirado no chão. Quis evitar olhar, mas era inevitável: estava tão próximo a porta que seria impossível não ter que arrastá-lo para o lado para abrir passagem. Uma crescente poça de sangue se formava ao redor do cadáver.
Certamente o único motivo pelo qual não vomitei foi por não haver mais nada no meu estômago.
Eu não saberia dizer quanto tempo eu tinha, mas a partir do momento em que encontrei coragem para m esgueirar para fora do banheiro, minha agonia tornou-se crescente a cada segundo que eu passava dentro daquela cabine. Em certo momento, eu pouco ligava para que horrores eu teria de enfrentar no momento em que cruzasse a porta que me separaria daquele banheiro. A ideia de continuar ali para sempre era o único impulso que eu necessitava para começar a me movimentar em direção a liberdade.
Não precisei pensar muito para identificar que a melhor rota de fuga seria evitando sair pela porta da cabine e dar de cara com o monstro que esperava para devorar minha carne. Como a havia feito uma vez imaginei que passar pela parte de cima de cada cubículo, tentando fazer a menor quantidade de barulho possível, seria a única forma de garantir uma fuga segura. Ainda que o espaço para esgueirar meu corpo deixado entre o final das paredes de divisória e o teto fosse estreito, tive certeza que conseguiria me locomover por lá.
Cria o plano era fácil, colocá-lo em prática logo mostrou ser outra história. Da primeira vez que pulei de uma cabine para outra, não precisei me preocupar com fazer barulho ou ser delicada; somente pude sentir o meu instinto desesperado. Dessa vez, imediatamente sentia a dificuldade de segurar o peso do meu corpo por muito tempo, conforme me movimentava a fim de evitar qualquer barulho. Apoiei meu pé na parede e tomei um leve impulso que me ajudou a colocar a outra perna em volta da divisória, permitindo que eu ficasse sentada sobre ela, uma perna para cada lado. Encontrei-me arfando apenas nesse esforço: graça à lentidão dos movimentos que eu precisava executar, tinha que segurar o meu próprio peso por muito tempo.
Sentada sobre a divisória, dei uma boa olhada na garota monstro que estava de costas pra mim. A minha movimentação não havia despertado-lhe a atenção, pois mantinha os olhos virados em direção a pequena janela do banheiro. Pela primeira vez, hesitei perante uma assombrosa ideia: aquele ser tinha vontade própria? Poderia simplesmente mover-se e virar em minha direção, mesmo que não houvesse nenhum estímulo?
Já surpresa por ter encontrado coragem pra chegar até ali, decidi tentar ser rápida. Era muito fácil enquanto eu tinha a certeza que o monstro não me via, mas não desejei descobrir se eu teria forças para continuar se ela se desse conta da minha presença.
Estiquei os braços até alcançar o topo da parede da divisória seguinte e encontrar o apoio. Posicionei as pernas de forma a ficar de joelhos e “engatinhei” de uma divisória pra outra. Senti o incômodo da minha canela contra o concreto, mas busquei abstrair. Sob uma pequena dor, consegui fazer a minha primeira travessia, terminando sentada na minha posição inicial, com uma perna para cada lado e as costas curvadas por causa da altura do teto.
Haviam seis cabines de banheiro e agora eu me encontrava na divisória da segunda com a terceira, contando a partir da que eu saí. Precisaria repetir aquele movimento mais três vezes até chegar em uma posição onde eu acreditava que conseguiria pular e sair pela porta antes da coisa ter qualquer reação. Não ousei pensar se quando eu chegasse até o final, teria coragem para realmente fazer isso.
Respirei fundo e repeti os movimentos, tomando o devido cuidado de não me apressar e mantendo os olhos vidrados nas costas do que um dia fora uma estudante do mesmo colégio que eu. Se me dissessem que demorei 10 minutos, eu acreditaria tão cegamente quanto acreditaria que foram apenas 10 segundos. A adrenalina mostrou-se novamente presente, não apenas me ajudando-me a encontrar forças para realizar aquilo, mas também encharcando as palmas das minhas mãos e fazendo meu coração palpitar. Eu já não era capaz de distinguir se eram batidas normais de alguém nervoso ou se haviam evoluído para uma taquicardia. Mas sabia dizer que doía.
Quando finalmente me posicionei sentada em cima da divisória seguinte, desviei pela primeira vez o olhar do zumbi a minha frente e olhei para a cabine embaixo de mim. Senti o coração parar conforme o arrepio gélido atravessou a minha espinha, congelando meu corpo em completo terror. Gotas involuntárias da urina escorreram. Sem importar em jogar todo o meu esforço anterior no lixo, puxei a perna rapidamente pra cima, quase com força suficiente para me desequilibrar.
A poucos metros de mim, no cubículo seguinte, estava a outra estudante. Aquela que, não conseguindo escapar após ser atacada, trancou-se no banheiro. Amaldiçoei-me por ter me esquecido de sua presença de uma maneira tão idiota.
O único motivo para que eu ainda estivesse viva é que a menina naquela cabine estava no chão, sentado sobre os joelhos, com o peso do corpo apoiado contra a parede, os cabelos loiros embolando-se. Fitava a porta de madeira a sua frente. Minha perna não havia entrado em seu campo de visão e chamado sua atenção. Uma nova onda de náuseas me dominou quando imaginei que o motivo para estar daquela forma era que a garota deve ter morrido naquela posição. Percebi que já estava se tornando mais fácil para mim afastar aquela figura monstruosa do ser humano que autrora fora. Não pude refletir se eu estava certa em dividi-los dessa forma.
A passagem daquela divisória para a seguinte me deixou ainda mais tensa, tomando cuidado dobrado para evitar qualquer ruído. Caso algo desse errado, meu ceifador estaria logo abaixo de mim. Pude perceber que, mesmo diminuindo os ruídos ao mínimo, a minha sombra ainda se fazia presente, passando por sobre cabeça daquele ser, que não parecia se importar. Suas visões eram perfeitas, tais como eram quando seres humanos? Como seriam seus sentidos?Haveria a necessidade de me preocupar tanto?Quando terminei a travessia, virada com ambas as pernas para a cabine a minha frente, percebi como meus músculos estavam tensionados e tentei relaxar, sem muito sucesso. Agora estava as duas cabines de distância da porta. O corpo da última menina - a única, de fato, morta - estava logo em frente a porta da última cabine. Eu pretendia descer e sair pela porta, mas logo entendi que a ideia seria falha: a parte de cima do seu corpo estava apoiada na porta da cabine, o que dificultaria
Infelizmente, foi tudo o que eu pude analisar, pois precisei sair correndo. Não tive intenção de tentar me comunicar com eles, afinal seria inútil: tudo que eles queriam era garantir algumas mordidas em minha carne e eventualmente transformar-me em um dos seus. Enquanto o monstro sem olho andava a passos lentos e arrastados; o segundo, logo ao trocarmos olhares, iniciou uma corrida determinada. Se fosse só o seu companheiro, eu poderia ter fugido tranquilamente, porém precisei me apressar e correr o mais rápido que eu pude em direção ao corredor que ligava o prédio da biblioteca com o de sala de aulas. A primeira coisa que notei foi que um deles era rápido. Muito mais rápido. A segunda é que eles estavam mais machucados. Diferentemente daqueles com quem dividi o banheiro, que possuía, que possuíam um ou outros machucados aparentes, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, mas conservavam a sua aparência de quem um dia foi humano, estes tinha
Quando o corredor desembocou em uma área mais ampla, que dava acesso à escadaria, tomei ainda mais cuidado com os meus movimentos. O chão é as paredes brancas estavam repletos de manchas de sangue. O cheiro era tão forte que me obrigou a trancar a respiração.O cheiro ou a meia dúzia de monstros que se reuniam no canto da sala.Eu pude ver algumas partes que apareciam por baixo de montoeira de corpos: pernas, braços, cabeças completamente desfiguradas. As coisas banqueteavam-se em meio a cadáveres ensaguentados e me obriguei a desviar o olhar para não enlouquecer. O impulso de vomitar me dominou de novo, mas precisei ignorá-lo.Passei a me mover lentamente as costas coladas na parede atrás de mim sem me importar se manchava a blusa polo branca do meu uniforme. Estavam distraídos, faziam sons guturais e era possível ouvir o barulho de carne se rasgando conforme jogavam as cabeças para trás, puxando violentamente pedaços em seus dentes. O cheiro de morte e podr
Não, eu não estava. Digo, ele não havia me arrastado para qualquer tipo de perigo. É só que “a salvo” simplesmente era uma coisa que tinha deixado de existir, embora naquela altura eu ainda não soubesse. A primeira pessoa que eu vi foi Cláudio Dultra: outro terceiranista, mas familiar para mim por estudarmos na mesma sala. Tinha a pele escura, olhos e cabelos negros e uma expressão de poucos amigos. Diferente da maioria dos nossos colegas, tinha músculos definidos e traços mais adultos. Estava de braços cruzados próximo à porta de madeira que dividia o corredor de onde vinhamos do resto das salas de ensino médio, em uma curva acentuada. Quando nos viu, assumiu uma postura nervosa ao perceber como corríamos rápido. Notei que segurava uma barra de ferro na mão. Havia sangue nela. Guga não pareceu estar surpreso, conforme continuava correndo em direção à porta. Aquela altura eu já havia conseguido estabelecer equ
Mayara olhou para ela com os olhos arregalados em reprovação, mas não falou nada.Sorri de volta para Valentina, mas não consegui disfarçar por muito tempo o meu incomodo conforme me aproximei delas.Mayara, o que houve com sua perna? Perguntei, finalmente compreendendo que o professor Roberto amarrava uma gaze suja de sangue em volta de sua coxa.Mayara olhou para mim, intrigada pela abordagem repentina.Ela não foi atacada. Cláudio quem respondeu, atrás de mim. Cortou a perna em um arame enquanto tentávamos sair do pátio. Estava sangrando bastante, mas não é nada sério.Desculpa ser tão indelicada, é só que… comecei olhando nos úmidos olhos cor de mel da garota.Não, tudo bem… ela olhou para a perna dando de ombros. Acho que é uma preocupação válida. Conversar parecia acalmá-la um pouco.Então você conseguiu? Perguntou Anny
Você vai sozinha? Perguntou Cláudio, levemente surpreso, enquanto me seguia porta afora. Eu não sei o que vocês vão fazer, mas eu vou voltar para casa hoje. Quando falei isso, vários olhares vieram em minha direção. O professor Roberto já estava em pé, de braços cruzados e olhou para mim: Você acha que é seguro tentar ir pra casa, Rute? Indagou, com a voz preocupada, todo mundo está dizendo que o transporte publico parou. Olhei para ele e agradeci a preocupação… Não tem problema, professor. Eu vou a pé, se precisar, só teria de atravessar a ponte, falei, calmamente, preciso encontrar com a minha avó e com a Mel… justificando sem perceber que talvez eles não soubessem de quem eu estava falando. Como você pretende sair do colégio? Perguntou-me a garota negra de cabelos crespos. Ela parecia bastante calma diante da situação. O pátio está uma loucura, e para chegar a qualq
Este era o acesso a um lance contínuo e escadas em formato de cascata, que ficavam a parte, mas uniam todos os andares do prédio. O espaço era largo e conseguimos entrar todos sem problemas. Estava aparentemente vazio e silencioso, porém uma pequena trilha de sangue na escada me fez sentir um enorme calafrio. Alguma coisa já passou por ali…A escada para cima está limpa, vamos subir de uma vez, murmurou Roberto, buscando falar baixo.Sem nenhuma objeção, Guga fechou a porta de acesso ao corredor e seguimos para cima, apenas o barulho dos nossos passos chegando aos ouvidos. Era possível ouvir, bem ao longe, alguns gemidos. Olhei para baixo, mas não tinha ninguém atrás de mim além de Cláudio e Guga.Subimos em silêncio dois lances de escadas, que terminaram em um pequeno espaço plano antes da porta de madeira de aparência velha, porém imponente. Com um pouco de esperança, Roberto ten
Imediatamente amaldiçoei a minha decisão burra de gritar. Não contentes somente em arrancar pedaços de carne da minha amiga estirada na escadaria, três deles viraram as cabeças grotescas para mim e começaram a subir em minha direção. Não eram rápidos, mas isso não os tornava menos assustadores. Rute??? Ouvi a voz de Valentina ecoar acima de mim... Lorena? Eu estou bem! Gritei de volta, sem saber como informar o estado de Lorena. Virei-me a fim de subir correndo de volta para o meu corpo, mas tropecei e caí no chão. Minha canela bateu contra a quina do degrau e um grunhido de dor vazou por meus lábios. Só então percebi como eu tremia. A barra de metal batia continuamente no chão, emitindo um som metálico constante, pela falta de instabilidade com que eu segurava ela. Sem tempo a perder, apoiei-me nos braços e subir alguns degraus de quatro mesmo, até conseguir focar em pé. Corri