Matheus encarava a plaquinha de numeração 1103 no cemitério. Mal tinham tido dinheiro para enterrar o pai, quem diria fazer uma lápide para ele. Não que o homem merecesse, pois, nem de longe merecia. Ele machucava a sua mãe sempre que bebia, o que era com grande frequência. E o machucava mesmo que não estivesse alcoolizado, talvez por puro prazer. O pai odiava o fato do filho ser tão inteligente e querer estudar.
Matheus estava no segundo ano do curso de Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando o pai teve um infarto na calçada do bar. Ele desejava uma vida melhor para si e a sua família, ansiando por sair da Comunidade da Rocinha e morar em um lugar onde, no meio da noite, não houvesse trocas de tiros. Matheus era uma vítima do sistema, e mesmo sendo tentado diversas vezes, não cedeu ao crime. Porém, ser resistente não seria mais possível. Ele precisava comer. Precisava alimentar a sua mãe e a irmã.
Quando chegou em casa, olhou para o sofá e viu a mãe adormecida. Caminhou até a cozinha e viu as panelas vazias. O seu pai era um traste abusador, mas ao menos colocava o mínimo na mesa e isso agora eles não tinham mais. Ele guardou a mochila no seu quarto. Gabriela não estava em casa, devia estar em algum casebre enroscada no maldito namorado. Matheus saiu e foi até a velha casa que todos chamavam de Boca 1. Era lá onde o grande comandante do morro passava boa parte do dia. Rafa, seu melhor amigo, também ficava ali. Conheciam-se desde a infância. Enquanto um escolheu o fuzil, o outro escolheu os livros.
— Rafa — chamou ao se aproximar.
— E ae, Matheusinho — o menino disse sorridente, indo ao encontro do amigo.
— Tô precisando de um favorzão — falou Matheus.
— Fala ae. — Enquanto lhe dava toda a sua atenção, segurava a arma à frente do corpo com total afinidade. Chegava a ser assustador. Aquilo não era uma bola de futebol ou um copo de Coca-Cola. Era uma arma de fogo! E não estava ali por acaso, era para matar alguém, se necessário.
— As coisas tão difíceis lá em casa. Depois que o velho morreu, tu sabe como é. Preciso tomar iniciativa, a gente tem que comer.
Rafa o encarou com a sobrancelha esquerda arqueada e um olhar desconfiado. Ele já havia visto outros chegarem até ele exatamente com esse papo e a mesma feição rendida. Sabia o que viria a seguir. Sentiu-se triste por isso. O seu melhor amigo não era como ele, um rapaz com as mãos sujas e a vida perdida. Rafa sempre se orgulhava muito de que Matheus era universitário na federal. Enchia a boca para contar para todo mundo.
— Coé, Matheus? Onde tu quer chegar? — No fundo, recusava-se a acreditar.
— Eu não tenho escolha — disse Matheus de cabeça baixa.
— Tem sim! Por que tu num tenta emprego lá embaixo? — Aproximou-se mais dele.
— Faz uma semana que ando por toda cidade e não consegui nada. Sou preto, de comunidade e não tenho experiência. Acha mesmo que vou conseguir um trampo fácil? A geladeira tá vazia, cara — falou um tanto desesperado.
Rafael coçou a barba por fazer e respirou fundo. Olhou para casa atrás dele e depois para o amigo. Sentiu um aperto no peito.
— Deixa eu te ajudar. Posso te dar uma grana.
— Pode me ajudar hoje. E na próxima semana? E o mês que vem? Não pode me ajudar pra sempre.
— Tu sabe que uma vez dentro, não tá fora mais. — Respirou fundo, sentindo enorme tristeza.
Matheus assentiu.
— Beleza. Entra ae. Bora trocar uma ideia com o Bodão.
Deu dois tapinhas no ombro dele com piedade e o acompanhou para dentro da casa. Caio, ou Bodão como todos chamavam, comandava o morro há mais de dez anos. Ele gostava de Matheus, o viu crescer. Achava ele ótimo com números e sempre o quis junto dele. Por muitas vezes ofereceu-lhe o que podemos gentilmente chamar de emprego, mas que sempre fora recusado. Com o tempo, percebeu que Matheus não seria corrompido, então desistiu.
Bodão estava sentado em uma cadeira e fumava um cigarro enquanto contava notas de dinheiro. Separava-as em pequenos montinhos sobre uma grande mesa gasta de madeira que ficava onde era para ser a sala de TV daquela velha casa. Quando viu Rafa entrar com Matheus, parou e encarou os dois com um olhar surpreso.
— Ora, ora. A quem devo o prazer da visita? — Retirou o cigarro da boca, escorando-se na cadeira.
— Matheusinho quer falar contigo — disse Rafa, saindo e os deixando a sós.— Como vai a sua irmã? — Bodão sorriu de maneira provocante.— Ela tá bem.— Diz ae? O que tu quer?Matheus abaixou a cabeça. Sentiu o corpo estremecer e as mãos suarem frio. Um grande nervoso o tomou. O coração batia rápido, deixando-o levemente ofegante. Esfregou as mãos uma na outra, umedeceu os lábios e engoliu em seco o pavor que causava um nó na sua garganta. Ergueu os olhos para o grande homem à sua frente e, com a voz entrecortada, começou a gaguejar:— Tô-tô-tô... — Parou e respirou fundo. — Tô precisando de emprego — conseguiu dizer por fim.Matheus ergueu novamente a cabeça em direção à figura tão peculiar à sua frente. Caio era grande, tinha quase dois metros de altura, e isso era bastante intimidador. Era preto, muito forte e tinha o seu corpo coberto por centenas de tatuagens. Algumas eram lembranças das suas passagens na prisão. Havia até desenhos indecifráveis no rosto, que também era adornado p
Barbara estava atrasada. Chegou ao evento estacionando a sua Lamborghini em frente ao hotel Copacabana Palace. Aquela seria mais uma noite glamorosa entre muitas das quais já estava de saco cheio. Vários fotógrafos na entrada a acertaram com uma chuva de flashes. Ela sorriu para alguns, mesmo sentindo-se plenamente incomodada, enquanto seguia para livrar-se deles. Mas antes de cruzar a porta, olhou desdenhosa para tudo aquilo. Ela não entendia o porquê precisava de tanto luxo para um simples encontro entre empresários. Eles não eram nenhum astro de cinema ou Dalai-lama, eram apenas pessoas com muito dinheiro conhecidas pela minoria do país a qual pertencem.Ela entrou e viu a quantidade de gente ali. Era um grande exagero. Duvidou que o seu pai conhecesse um terço daquelas pessoas. Embora gostasse do acesso fácil ao dinheiro e de poder ter todos os dias da semana livre, Barbara jamais se curvaria ao dinheiro como muitos naquela festa faziam, vendendo a sua dignidade e caráter. Como, n
Eles caminharam até o grupo com quem o seu pai conversava antes. A mulher diante dela a olhou dos pés à cabeça com desdém e uma pitada de inveja. Ela claramente também não havia gostado do vestido da Barbara, que pouco se importava com a opinião alheia.— Barbara, estes são Cássio e Miranda Correa, do Grupo Solos.— É um prazer conhecê-los. — Apertou as mãos de ambos com um mínimo sorriso forçado nos lábios.— O seu pai fala maravilhas sobre você. — Cássio sorriu simpático.A mulher nada lhe disse, ainda a avaliava com uma expressão que diria agora ser de nojo e estranheza.— E este é Edgar, o filho deles.Só então Barbara olhou para o lado. Ela não havia notado o homem à sua esquerda. Ele era alto, branco, cabelo castanho-claro e olhos amendoados. Tinha um belo sorriso que marcava o canto direito dos seus grossos lábios. Era um homem bonito, por assim dizer.— Muito prazer, Barbara. — Estendeu a mão para ela.— Olá, Edgar.Colocou a mão sobre a dele. Edgar a levou até os seus lábios
Os dois levantaram-se, mas antes que fossem embora, Barbara bebeu tudo o que restava do uísque em um só gole. Eles saíram de fininho e, mesmo que alguém na saída os notasse, nada seria dito aos meninos ricos. Barbara o levou até o seu carro no estacionamento privado.— Você dirige uma Lamborghini? — perguntou impressionado, ficando com a boca aberta.— O que esperava?— Uma SVU, talvez.Ela riu do quanto patético Edgar era. Nem de longe é alguém por quem ela sentiria desejo de beijar.— Espere um minuto.Ela entrou no carro e pegou uma bolsa no banco ao lado. Com muita dificuldade, devido ao teto baixo, trocou de roupa. Definitivamente, aquele vestido não era apropriado para um baile na comunidade. Ela o substitui por uma saia de seda branca e um top de lantejoulas prateadas, mantendo a sandália preta. Retirou as joias e colocou um par de brincos de prata. Ajeitando os cabelos com os dedos, saiu do carro.— Uau! — disse Edgar com a mão no queixo, vendo-a mais sensual do que antes.— V
Barbara desceu da moto e logo Edgar chegou. O penteado dele já não estava mais tão alinhado.— Valeu — disse ela ao piloto.— As ordens. — Piscou para ela, que sorriu.Respirou fundo e olhou atentamente ao redor. Por toda parte, homens armados.— Estou começando a achar que tudo isso é loucura — disse Edgar, chegando mais perto dela.— Não surta. Já estamos dentro. O que pode dar errado?Ele suspirou e guardou as mãos no bolso.— E para onde vamos agora, garota favela?— Shhh — fez para ele, o encarando de cara feia. — Se disser essa palavra mais uma vez, será chutado daqui com uma bala na bunda.Sim, ela estava errada. Com Edgar, alguma coisa poderia dar errado. Ele olhou para ela tentando disfarçar a cara assustada.— Vai pra onde, bacana? — perguntou um rapaz ao aproximar-se deles. Ele tinha um fuzil na mão, portava aquilo como quem segurava um celular. Barbara engoliu em seco, percebendo que ele nem sequer tentava esconder a arma. Embora pelo tamanho era impossível prendê-la no có
O homem subiu para parte alta da quadra. Ela entendeu que ali era o camarote e suspeitou que ele devia ser o dono do morro, ou chefe. Não tinha certeza de como o chamavam. Os grandes braços tatuados apoiaram-se na grade do parapeito. Ele não conseguia parar de encará-la com uma feição séria e mandíbula contraída. Barbara desviou os olhos e puxou os braços do Edgar, virando-o para ela.— Vamos embora, está na hora! — gritou no seu ouvido.Ele continuou a dançar e negou com a cabeça a sua intimação.— Nem pensar — gritou de volta.— Edgar, por favor. Nós temos que ir!Negou com um aceno mais uma vez.— E ae, branquinha — disse um homem ao chegar por detrás dela. Barbara virou-se rápido e assustada. — O chefe mandou tu subir.Edgar parou e colocou-se à frente dela.— O que foi, irmão? Ela está comigo. — Puxou Barbara para ele, agarrando-a pela cintura.— Irmão é o caralho! — gritou, empurrando Edgar, que quase foi ao chão. — Vê se não fica no caminho! — Aquilo foi uma ameaça.Segurou fir
— Vai com calma, Fred! — disse Matheus, segurando-o pelo ombro.O homem o respeitou, o que fez Barbara entender que ele não era apenas mais um morador dali. Ele tinha sua hierarquia naquele comando. Talvez isso explicasse o motivo pelo qual eles foram autorizados a entrar com a aprovação dele. Ela puxou Edgar da multidão e escada abaixo, mas ele era teimoso e queria voltar.— Pare! Se voltar para lá, vai sair daqui em um caixão!Edgar parou e a olhou sério. Viu que Barbara não estava brincando e estava brava. Colocou as mãos para cima, rendendo-se, e passou por ela, descendo o morro. Logo eles chegaram à avenida, mas demorou para que passasse um táxi que os levassem de volta para festa onde estavam os pais. Assim que chegaram ao estacionamento, Edgar começou a vomitar, tinha bebido demais. Um homem apareceu e perguntou se estavam bem. Ela pediu que chamassem a secretária do seu pai.— Por que você tinha que beber tanto?Edgar sentou-se no chão, escorando-se a um carro alheio. Barbara
Já fazia dois dias que Barbara ignorava as ligações do Edgar. Ela havia ficado muito brava quando descobriu que o seu pai lhe deu o seu número de telefone. Sentada à mesa de jantar na casa dos pais, com os pés apoiados sobre o tablado de madeira, ela rejeitava mais uma chamada dele, quando Ângela entrou.— Tire os pés da mesa! — ordenou a sua mãe.Ela sorriu e os colocou de volta ao chão, corrigindo sua postura na cadeira. Enfiou mais uma uva na boca e observou a mulher loira à sua frente exigir dos empregados o máximo de cuidado na hora de limpar a prataria.— Quer ir ao shopping? — Barbara perguntou-lhe.— Só se pudermos passar na Chanel. Quero uma bolsa nova.Roubou-lhe uma uva do cacho que tinha nas mãos e foi-se para cozinha.— Vou te esperar no carro — Barbara gritou para que ela pudesse ouvir.Levantou-se e saiu. Lá fora, se acomodou no banco passageiro do carro da sua mãe. Se teve algo que ela aprendeu muito cedo, foi ler o comportamento daquela mulher. Ângela havia se casado