— Matheusinho quer falar contigo — disse Rafa, saindo e os deixando a sós.
— Como vai a sua irmã? — Bodão sorriu de maneira provocante.
— Ela tá bem.
— Diz ae? O que tu quer?
Matheus abaixou a cabeça. Sentiu o corpo estremecer e as mãos suarem frio. Um grande nervoso o tomou. O coração batia rápido, deixando-o levemente ofegante. Esfregou as mãos uma na outra, umedeceu os lábios e engoliu em seco o pavor que causava um nó na sua garganta. Ergueu os olhos para o grande homem à sua frente e, com a voz entrecortada, começou a gaguejar:
— Tô-tô-tô... — Parou e respirou fundo. — Tô precisando de emprego — conseguiu dizer por fim.
Matheus ergueu novamente a cabeça em direção à figura tão peculiar à sua frente. Caio era grande, tinha quase dois metros de altura, e isso era bastante intimidador. Era preto, muito forte e tinha o seu corpo coberto por centenas de tatuagens. Algumas eram lembranças das suas passagens na prisão. Havia até desenhos indecifráveis no rosto, que também era adornado por um cavanhaque de mais de quatorze centímetros de comprimento. Ele tinha mais apreço por aquele punhado de pelos crespos do que pelos próprios filhos. Cultivava aquilo há anos.
— Emprego? — Riu. — Tu quer um trampo aqui? Aqui no morro, no meio da bandidagem? — perguntou incrédulo, explodindo em uma grande gargalhada. — O que rolou?
— O meu pai morreu — Matheus respondeu seriamente.
Bodão desfez o sorriso.
— Tô sabendo.
— Tamo passando fome em casa.
O dono do morro fez uma pausa na contagem do dinheiro e olhou para ele com interesse. Viu ali a grande oportunidade de ter um bom contador na sua organização. Finalmente, ele conseguiu o que tentou por muito tempo: ter um garoto inteligente na sua equipe. Alguém em quem pudesse confiar em termos de caráter. Matheus não era ambicioso com o dinheiro. Não seria mais um larápio que Bodão teria de arrancar a cabeça mais tarde.
— Beleza. Fechou. Senta aqui. — Levantou-se da cadeira, dando lugar para o menino franzino.
Matheus se aproximou, arredio. Antes que pudesse sentar-se, Bodão segurou firmemente o seu ombro. Matheus olhou para ele com medo, seus olhos arregalados de surpresa e apreensão.
— Pega a visão, muleque. O teu pai era um bosta, tu sabe disso. Tô confiando que você não será igual a ele. Se pisar torto na linha, vai pro pneu, morô?
— Tô ligado — respondeu apressadamente, sentindo os dedos dele se afundando em um aperto cada vez mais forte, o causando dor.
— É bom que realmente esteja.
Bodão se afastou, e Matheus encarou a cadeira colocando a sua mão sobre o encosto. Engoliu em seco o medo que lhe causava enjoo. Sabia que a partir do momento que se sentasse ali, não mais sairia daquela facção. Aqueles traficantes seriam sua nova família e aquele seria o seu futuro até quando Deus permitisse. Acabava ali a expectativa de uma boa vida fora do morro ou o sonho de um diploma. Vagarosamente, sentou-se no velho móvel que dava sinais de que um dia fora de cor vermelha. Fechou os olhos e respirou fundo e devagar. Tentou não se sentir mais assustado do que já estava. Tentou assimilar que aquele pequeno movimento era a entrega do seu futuro ao crime organizado da Rocinha. Matheus abriu os olhos e observou todo o montante de dinheiro à sua frente.
— Essa é a grana que sobe. Vem das festas dos bacanas, chega todos os dias pela manhã. Você precisa contar, separar em bolos de mil reais e então fazer a contabilidade. — Entregou-lhe um caderno gasto com a imagem de uma surfista na capa. Os cantinhos pareciam ter sido roídos por um rato. — Aqui fica a relação de quantos quilos desceu, para onde foi cada grama e quem estavam com elas.
— Tá, entendi.
— Consegue fazer isso?
— Sim! — afirmou certo disso, olhando para o seu chefe a partir de agora.
— Já é.
Bodão sorriu e, logo em seguida, recolocou o cigarro na boca.
— Ae, chefe?! Tem uma mina aqui querendo ver o senhor — disse um homem parado na porta. Aquele era um dos milhares de homens espalhados pelo morro, que todos chamavam de soldados.
— Manda entrar. — Sorriu, sugestivo. Olhou novamente para Matheus e piscou-lhe.
Carla, uma das amigas da sua irmã, entrou. Ela não devia ter mais do que dezesseis anos. A mãe dela se esforçava sozinha para cuidar dos três filhos. Antes, quando a mãe de Matheus tinha uma boa saúde, elas desciam juntas para trabalhar nas casas das famílias ricas.
A menina entrou rebolando com um sorriso faceiro e enrolando uma mecha do cabelo cacheado no dedo. Quando viu Matheus, uma risadinha debochada escapou dela. Bodão a beijou na boca e deu um tapa na sua bunda que estalou, alto.
— Vamo nessa.
Levou-a em direção à porta ao canto da sala, e a menina deu uma última olhada para Matheus por cima do ombro antes de sair.
— Viu só, gracinha. Até os bons se corrompem — disse Bodão para ela, encarando mais uma vez o novo integrante daquela merda.
Carla ficou surpresa de vê-lo ali. Matheus era provavelmente o garoto mais íntegro daquele lugar. Desde a infância, ele era alvo de piadas por ser tão certinho e dedicado aos estudos. Nunca ia a bailes funks ou se juntava a rodinhas de maconha. Estudava até tarde e sempre abotoava o último botão da sua gola polo de segunda mão. No fundo, ela achava triste vê-lo ali. Sabia que o bullying que praticavam com ele era apenas inveja de Matheus no fim das contas.
Os dois entraram no quarto e fecharam a porta. Enquanto ele fazia anotações e contas usando uma velha calculadora, o casal no quarto se divertia entre gemidos e palavrões. Matheus ficou ainda mais nervoso e sentiu uma grande vergonha alheia. Perguntou a si mesmo se aquilo seria frequente.
— Vai se acostumando — disse um dos soldados para ele, rindo com divertimento da cara do pobre menino.
Não demorou muito – na verdade, uns cinco minutos – e a porta foi aberta. O casal saiu de lá amassados e suados. O batom rosa da boca de Carla estava desbotado e borrado. Bodão caminhou até a mesa e apanhou um dos bolos de notas. Arrancou cem reais dali e entregou para menina.
— Até semana que vem, lindinha.
— Até mais, amor — despediu-se com a voz manhosa, saindo dali enquanto guardava o dinheiro no sutiã.
Bodão se virou para Matheus e devolveu o restante das notas.
— Anota ae. Saída de cem reais para comer a boceta da Carla. — Gargalhou diabólico.
Os olhos de Matheus arregalaram novamente. Ele não sabia se devia mesmo anotar aquele valor no caderno de caixa.
— Vai, muleque. Anota ae. — Riu a caminho da saída. — Vou dar uma volta, fiquem de olho no Matheusinho — ordenou para os dois caras parados na porta de entrada.
O chefe saiu e ele fez a anotação. Respirou fundo e tratou de se concentrar no trabalho. Sabia que não podia errar, pois jamais haveria margem para isso.
Barbara estava atrasada. Chegou ao evento estacionando a sua Lamborghini em frente ao hotel Copacabana Palace. Aquela seria mais uma noite glamorosa entre muitas das quais já estava de saco cheio. Vários fotógrafos na entrada a acertaram com uma chuva de flashes. Ela sorriu para alguns, mesmo sentindo-se plenamente incomodada, enquanto seguia para livrar-se deles. Mas antes de cruzar a porta, olhou desdenhosa para tudo aquilo. Ela não entendia o porquê precisava de tanto luxo para um simples encontro entre empresários. Eles não eram nenhum astro de cinema ou Dalai-lama, eram apenas pessoas com muito dinheiro conhecidas pela minoria do país a qual pertencem.Ela entrou e viu a quantidade de gente ali. Era um grande exagero. Duvidou que o seu pai conhecesse um terço daquelas pessoas. Embora gostasse do acesso fácil ao dinheiro e de poder ter todos os dias da semana livre, Barbara jamais se curvaria ao dinheiro como muitos naquela festa faziam, vendendo a sua dignidade e caráter. Como, n
Eles caminharam até o grupo com quem o seu pai conversava antes. A mulher diante dela a olhou dos pés à cabeça com desdém e uma pitada de inveja. Ela claramente também não havia gostado do vestido da Barbara, que pouco se importava com a opinião alheia.— Barbara, estes são Cássio e Miranda Correa, do Grupo Solos.— É um prazer conhecê-los. — Apertou as mãos de ambos com um mínimo sorriso forçado nos lábios.— O seu pai fala maravilhas sobre você. — Cássio sorriu simpático.A mulher nada lhe disse, ainda a avaliava com uma expressão que diria agora ser de nojo e estranheza.— E este é Edgar, o filho deles.Só então Barbara olhou para o lado. Ela não havia notado o homem à sua esquerda. Ele era alto, branco, cabelo castanho-claro e olhos amendoados. Tinha um belo sorriso que marcava o canto direito dos seus grossos lábios. Era um homem bonito, por assim dizer.— Muito prazer, Barbara. — Estendeu a mão para ela.— Olá, Edgar.Colocou a mão sobre a dele. Edgar a levou até os seus lábios
Os dois levantaram-se, mas antes que fossem embora, Barbara bebeu tudo o que restava do uísque em um só gole. Eles saíram de fininho e, mesmo que alguém na saída os notasse, nada seria dito aos meninos ricos. Barbara o levou até o seu carro no estacionamento privado.— Você dirige uma Lamborghini? — perguntou impressionado, ficando com a boca aberta.— O que esperava?— Uma SVU, talvez.Ela riu do quanto patético Edgar era. Nem de longe é alguém por quem ela sentiria desejo de beijar.— Espere um minuto.Ela entrou no carro e pegou uma bolsa no banco ao lado. Com muita dificuldade, devido ao teto baixo, trocou de roupa. Definitivamente, aquele vestido não era apropriado para um baile na comunidade. Ela o substitui por uma saia de seda branca e um top de lantejoulas prateadas, mantendo a sandália preta. Retirou as joias e colocou um par de brincos de prata. Ajeitando os cabelos com os dedos, saiu do carro.— Uau! — disse Edgar com a mão no queixo, vendo-a mais sensual do que antes.— V
Barbara desceu da moto e logo Edgar chegou. O penteado dele já não estava mais tão alinhado.— Valeu — disse ela ao piloto.— As ordens. — Piscou para ela, que sorriu.Respirou fundo e olhou atentamente ao redor. Por toda parte, homens armados.— Estou começando a achar que tudo isso é loucura — disse Edgar, chegando mais perto dela.— Não surta. Já estamos dentro. O que pode dar errado?Ele suspirou e guardou as mãos no bolso.— E para onde vamos agora, garota favela?— Shhh — fez para ele, o encarando de cara feia. — Se disser essa palavra mais uma vez, será chutado daqui com uma bala na bunda.Sim, ela estava errada. Com Edgar, alguma coisa poderia dar errado. Ele olhou para ela tentando disfarçar a cara assustada.— Vai pra onde, bacana? — perguntou um rapaz ao aproximar-se deles. Ele tinha um fuzil na mão, portava aquilo como quem segurava um celular. Barbara engoliu em seco, percebendo que ele nem sequer tentava esconder a arma. Embora pelo tamanho era impossível prendê-la no có
O homem subiu para parte alta da quadra. Ela entendeu que ali era o camarote e suspeitou que ele devia ser o dono do morro, ou chefe. Não tinha certeza de como o chamavam. Os grandes braços tatuados apoiaram-se na grade do parapeito. Ele não conseguia parar de encará-la com uma feição séria e mandíbula contraída. Barbara desviou os olhos e puxou os braços do Edgar, virando-o para ela.— Vamos embora, está na hora! — gritou no seu ouvido.Ele continuou a dançar e negou com a cabeça a sua intimação.— Nem pensar — gritou de volta.— Edgar, por favor. Nós temos que ir!Negou com um aceno mais uma vez.— E ae, branquinha — disse um homem ao chegar por detrás dela. Barbara virou-se rápido e assustada. — O chefe mandou tu subir.Edgar parou e colocou-se à frente dela.— O que foi, irmão? Ela está comigo. — Puxou Barbara para ele, agarrando-a pela cintura.— Irmão é o caralho! — gritou, empurrando Edgar, que quase foi ao chão. — Vê se não fica no caminho! — Aquilo foi uma ameaça.Segurou fir
— Vai com calma, Fred! — disse Matheus, segurando-o pelo ombro.O homem o respeitou, o que fez Barbara entender que ele não era apenas mais um morador dali. Ele tinha sua hierarquia naquele comando. Talvez isso explicasse o motivo pelo qual eles foram autorizados a entrar com a aprovação dele. Ela puxou Edgar da multidão e escada abaixo, mas ele era teimoso e queria voltar.— Pare! Se voltar para lá, vai sair daqui em um caixão!Edgar parou e a olhou sério. Viu que Barbara não estava brincando e estava brava. Colocou as mãos para cima, rendendo-se, e passou por ela, descendo o morro. Logo eles chegaram à avenida, mas demorou para que passasse um táxi que os levassem de volta para festa onde estavam os pais. Assim que chegaram ao estacionamento, Edgar começou a vomitar, tinha bebido demais. Um homem apareceu e perguntou se estavam bem. Ela pediu que chamassem a secretária do seu pai.— Por que você tinha que beber tanto?Edgar sentou-se no chão, escorando-se a um carro alheio. Barbara
Já fazia dois dias que Barbara ignorava as ligações do Edgar. Ela havia ficado muito brava quando descobriu que o seu pai lhe deu o seu número de telefone. Sentada à mesa de jantar na casa dos pais, com os pés apoiados sobre o tablado de madeira, ela rejeitava mais uma chamada dele, quando Ângela entrou.— Tire os pés da mesa! — ordenou a sua mãe.Ela sorriu e os colocou de volta ao chão, corrigindo sua postura na cadeira. Enfiou mais uma uva na boca e observou a mulher loira à sua frente exigir dos empregados o máximo de cuidado na hora de limpar a prataria.— Quer ir ao shopping? — Barbara perguntou-lhe.— Só se pudermos passar na Chanel. Quero uma bolsa nova.Roubou-lhe uma uva do cacho que tinha nas mãos e foi-se para cozinha.— Vou te esperar no carro — Barbara gritou para que ela pudesse ouvir.Levantou-se e saiu. Lá fora, se acomodou no banco passageiro do carro da sua mãe. Se teve algo que ela aprendeu muito cedo, foi ler o comportamento daquela mulher. Ângela havia se casado
Edgar ofereceu o seu braço a ela com tamanho cavalheirismo. Os dois caminhavam à frente conversando como velhos amigos, enquanto Barbara ia atrás a uns dois passos de distância. Ela não estava nem um pouco a fim da companhia dele e odiava que a sua mãe tivesse aceitado. Sentaram-se no melhor restaurante e tomaram champanhe até que fizessem os seus pedidos. Edgar quis pedir para Barbara, que deixou claro que ela tinha capacidade mental de escolher a própria comida. Ele ficou um pouco constrangido, é claro. Barbara não era fácil como as garotas que conhecia. Um tempo depois, Ângela levantou-se, indo ao banheiro. Os dois ficaram a sós e esse momento era tudo o que ele queria.— Eu lhe devo um pedido de desculpas, não é?— Deve? — Encarou-o.Ele riu um pouco sem graça.— Sim. Não imaginei que eu ia ficar tão louco. É que faz muito tempo que eu não ia a uma boa festa.— Boa festa, ela só foi para você. Eu tive que ficar te cercando e cuidando para que não arranjasse uma confusão onde nós s