Capítulo 01

— Matheusinho quer falar contigo — disse Rafa, saindo e os deixando a sós.

— Como vai a sua irmã? — Bodão sorriu de maneira provocante.

— Ela bem.

— Diz ae? O que tu quer?

Matheus abaixou a cabeça. Sentiu o corpo estremecer e as mãos suarem frio. Um grande nervoso o tomou. O coração batia rápido, deixando-o levemente ofegante. Esfregou as mãos uma na outra, umedeceu os lábios e engoliu em seco o pavor que causava um nó na sua garganta. Ergueu os olhos para o grande homem à sua frente e, com a voz entrecortada, começou a gaguejar:

Tô-tô-tô... — Parou e respirou fundo. — precisando de emprego — conseguiu dizer por fim.

Matheus ergueu novamente a cabeça em direção à figura tão peculiar à sua frente. Caio era grande, tinha quase dois metros de altura, e isso era bastante intimidador. Era preto, muito forte e tinha o seu corpo coberto por centenas de tatuagens. Algumas eram lembranças das suas passagens na prisão. Havia até desenhos indecifráveis no rosto, que também era adornado por um cavanhaque de mais de quatorze centímetros de comprimento. Ele tinha mais apreço por aquele punhado de pelos crespos do que pelos próprios filhos. Cultivava aquilo há anos.

— Emprego? — Riu. — Tu quer um trampo aqui? Aqui no morro, no meio da bandidagem? — perguntou incrédulo, explodindo em uma grande gargalhada. — O que rolou?

— O meu pai morreu — Matheus respondeu seriamente.

Bodão desfez o sorriso.

sabendo.

Tamo passando fome em casa.

O dono do morro fez uma pausa na contagem do dinheiro e olhou para ele com interesse. Viu ali a grande oportunidade de ter um bom contador na sua organização. Finalmente, ele conseguiu o que tentou por muito tempo: ter um garoto inteligente na sua equipe. Alguém em quem pudesse confiar em termos de caráter. Matheus não era ambicioso com o dinheiro. Não seria mais um larápio que Bodão teria de arrancar a cabeça mais tarde.

— Beleza. Fechou. Senta aqui. — Levantou-se da cadeira, dando lugar para o menino franzino.

Matheus se aproximou, arredio. Antes que pudesse sentar-se, Bodão segurou firmemente o seu ombro. Matheus olhou para ele com medo, seus olhos arregalados de surpresa e apreensão.

— Pega a visão, muleque. O teu pai era um bosta, tu sabe disso. confiando que você não será igual a ele. Se pisar torto na linha, vai pro pneu, morô?

ligado — respondeu apressadamente, sentindo os dedos dele se afundando em um aperto cada vez mais forte, o causando dor.

— É bom que realmente esteja.

Bodão se afastou, e Matheus encarou a cadeira colocando a sua mão sobre o encosto. Engoliu em seco o medo que lhe causava enjoo. Sabia que a partir do momento que se sentasse ali, não mais sairia daquela facção. Aqueles traficantes seriam sua nova família e aquele seria o seu futuro até quando Deus permitisse. Acabava ali a expectativa de uma boa vida fora do morro ou o sonho de um diploma. Vagarosamente, sentou-se no velho móvel que dava sinais de que um dia fora de cor vermelha. Fechou os olhos e respirou fundo e devagar. Tentou não se sentir mais assustado do que já estava. Tentou assimilar que aquele pequeno movimento era a entrega do seu futuro ao crime organizado da Rocinha. Matheus abriu os olhos e observou todo o montante de dinheiro à sua frente.

— Essa é a grana que sobe. Vem das festas dos bacanas, chega todos os dias pela manhã. Você precisa contar, separar em bolos de mil reais e então fazer a contabilidade. — Entregou-lhe um caderno gasto com a imagem de uma surfista na capa. Os cantinhos pareciam ter sido roídos por um rato. — Aqui fica a relação de quantos quilos desceu, para onde foi cada grama e quem estavam com elas.

, entendi.

— Consegue fazer isso?

— Sim! — afirmou certo disso, olhando para o seu chefe a partir de agora.

— Já é.

Bodão sorriu e, logo em seguida, recolocou o cigarro na boca.

Ae, chefe?! Tem uma mina aqui querendo ver o senhor — disse um homem parado na porta. Aquele era um dos milhares de homens espalhados pelo morro, que todos chamavam de soldados.

— Manda entrar. — Sorriu, sugestivo. Olhou novamente para Matheus e piscou-lhe.

Carla, uma das amigas da sua irmã, entrou. Ela não devia ter mais do que dezesseis anos. A mãe dela se esforçava sozinha para cuidar dos três filhos. Antes, quando a mãe de Matheus tinha uma boa saúde, elas desciam juntas para trabalhar nas casas das famílias ricas.

A menina entrou rebolando com um sorriso faceiro e enrolando uma mecha do cabelo cacheado no dedo. Quando viu Matheus, uma risadinha debochada escapou dela. Bodão a beijou na boca e deu um tapa na sua bunda que estalou, alto.

Vamo nessa.

Levou-a em direção à porta ao canto da sala, e a menina deu uma última olhada para Matheus por cima do ombro antes de sair.

— Viu só, gracinha. Até os bons se corrompem — disse Bodão para ela, encarando mais uma vez o novo integrante daquela merda.

Carla ficou surpresa de vê-lo ali. Matheus era provavelmente o garoto mais íntegro daquele lugar. Desde a infância, ele era alvo de piadas por ser tão certinho e dedicado aos estudos. Nunca ia a bailes funks ou se juntava a rodinhas de maconha. Estudava até tarde e sempre abotoava o último botão da sua gola polo de segunda mão. No fundo, ela achava triste vê-lo ali. Sabia que o bullying que praticavam com ele era apenas inveja de Matheus no fim das contas.

Os dois entraram no quarto e fecharam a porta. Enquanto ele fazia anotações e contas usando uma velha calculadora, o casal no quarto se divertia entre gemidos e palavrões. Matheus ficou ainda mais nervoso e sentiu uma grande vergonha alheia. Perguntou a si mesmo se aquilo seria frequente.

— Vai se acostumando — disse um dos soldados para ele, rindo com divertimento da cara do pobre menino.

Não demorou muito – na verdade, uns cinco minutos – e a porta foi aberta. O casal saiu de lá amassados e suados. O batom rosa da boca de Carla estava desbotado e borrado. Bodão caminhou até a mesa e apanhou um dos bolos de notas. Arrancou cem reais dali e entregou para menina.

— Até semana que vem, lindinha.

— Até mais, amor — despediu-se com a voz manhosa, saindo dali enquanto guardava o dinheiro no sutiã.

Bodão se virou para Matheus e devolveu o restante das notas.

— Anota ae. Saída de cem reais para comer a boceta da Carla. — Gargalhou diabólico.

Os olhos de Matheus arregalaram novamente. Ele não sabia se devia mesmo anotar aquele valor no caderno de caixa.

— Vai, muleque. Anota ae. — Riu a caminho da saída. — Vou dar uma volta, fiquem de olho no Matheusinho — ordenou para os dois caras parados na porta de entrada.

O chefe saiu e ele fez a anotação. Respirou fundo e tratou de se concentrar no trabalho. Sabia que não podia errar, pois jamais haveria margem para isso.

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