O que existe entre o trovão e a tempestade?
O som dos meus passos ressoava como trovões ao longe, ecoando pelas ruas inundadas. Cada passo fez meu calçado afundar nas poças, espirrando gotas que bailavam no ar, semelhante aos relâmpagos que cortavam o céu tempestuoso acima de mim. A água dentro do sapato tornava meus movimentos escorregadios, no entanto, eu resistia a cair, segurando firme o único descendente da minha família em meus braços.Correndo desesperadamente, o céu se iluminava com uma luz intensa, acompanhada pelo som perturbador do trovão que ressoava atrás de mim, como se os deuses estivessem decidindo o meu destino. Os lampejos de relâmpago serviam como um lembrete de quão vulnerável minha vida é perante as forças da natureza. Meu desespero era tão excessivo quanto a tempestade.
Meus braços estavam doloridos de exaustão enquanto segurava o bebê, e seu peso parecia aumentar durante a viagem que realizei desde o início da tempestade. Meus músculos estavam rígidos e encharcados pela chuva constante, mas a criança, envolta em seu manto, permanecia seca — como se um escudo invisível a protegesse da intensidade que o cercava. Seu rosto pacífico não demonstrava medo, nem angústia, como se a pureza infantil a protegesse. O bebê não dava sinais de choro, parecendo compreender, instintivamente que, apesar do caos, existia uma força maior conosco.
Eu interrompia minha jornada ao chegar a um orfanato em Beastcreek, a cidade mais distante que minhas pernas foram capazes de percorrer nas últimas duas horas. Com delicadeza, depositei o bebê, envolvido em um manto, na porta, dando-lhe um beijo silencioso na testa. Meus braços, fatigados de sustentar o peso por tanto tempo, finalmente relaxavam. De minha roupa encharcada, extraio um pingente com a imagem de um leão branco, um talismã de lembrete que entrego para a criança. Sinto uma dor aguda no coração, consciente de que esta é a última vez que a verei.
Antes de partir, precisei garantir que não deixei um rastro olfativo para ser rastreado. Observei o ambiente e a chuva já começava a apagar as pistas visíveis, mas o aroma distintivo da minha fuga ainda permeava o ar úmido. Ajoelhei-me no limiar da porta e agarrei um punhado de terra úmida, esfregando-a desesperadamente nas solas das minhas botas, nas roupas encharcadas e em minha pele. A terra molhada e o barro se fundiram com o cheiro da chuva, disfarçando minha rota com um perfume neutro.
No caminho de retorno, a chuva intensa que desabava do céu apagava minhas pegadas, mas não conseguia extinguir meus pensamentos sobre as sete famílias reais — Copperan, Kataris, Leontis, Lynxen, Servalis, Tigryten e Vulpard. Originárias de uma antiga linhagem felina, estas famílias agora carregavam o estigma de décadas de conflitos na acirrada disputa pelo venerado título de Leão Branco.
A profecia transmitida a nós lampejava em minha mente à medida que me distanciava do orfanato onde deixei o garoto. Este, candidato ao título de Leão Branco é predestinado a atingir o supremo poder que nós, Gatos Pardos, tão intensamente buscamos: a vida eterna. A promessa de imortalidade através de seu sangue levou gatos, linces, onças e tigres ao longo da história a sacrificarem suas vidas na busca por essa força. No entanto, a diminuição de adultos conduziu os mais cobiçados a buscar o herói entre os mais inocentes: as crianças recém-nascidas.
Agora toda a nossa espécie está ameaçada.
Enquanto eu seguia pela trilha lamacenta, uma sombra escura e veloz me atingiu abruptamente pelas costas, atacando-me com ferocidade. Antes mesmo de ter a chance de reagir, já estávamos ambas rolando pelo solo pegajoso, em uma confusão de garras e presas. Por instinto, transformei-me em minha forma de puma, consciente de que era menos poderosa que a onça e que dificilmente sobreviveria àquela batalha.
Nós tropeçamos, envolvidas em um duelo. A chuva caía sem trégua sobre nós, com os relâmpagos sonoplasteando nossa conduta selvagem. Era o momento dos deuses fazerem suas apostas finais. A pantera negra lançava suas garras com brutalidade, rasgando minha barriga e mirando minha garganta. Eu contra-atacava com movimentos rápidos e astutos, buscando uma rota de fuga enquanto protegia a região da clavícula.
Em um instante oportuno, rolei para o lado e consegui colocar-me acima dela. Com um salto ágil, surpreendi-a e a empurrei com força para uma poça profunda próxima. A água barrenta e turva nos envolvia enquanto prosseguíamos nossa luta desesperada. Eu me esforçava para mantê-la submersa. Ela poderia ser mais forte do que eu, mas naquele momento não era apenas eu quem lutava. Era o instinto materno que crescia dentro de mim, instigando-me a proteger a criança, independentemente das circunstâncias.
A pantera negra lutava intensamente tentando libertar-se, mas eu usava todo o meu peso contra ela, como se estivesse realizando uma massagem cardiorrespiratória. Envolvidas na lama podre, eu esforcei cada músculo do meu corpo para manter a fera sob controle. Com um gesto preciso, agarrei-a pelo pescoço com as patas dianteiras, imobilizando-a contra o fundo viscoso da poça. A pantera resistia desesperadamente; suas garras arranhando minha pele enquanto sua cabeça era forçada contra o solo.
À medida que os segundos avançavam, a resistência da pantera começava a se esvair.
Seus movimentos, antes ágeis, tornaram-se lentos e descoordenados. Permaneci firme na minha posição, decidida a resistir, apesar da falta de ar que queimava meus pulmões e da dor do ferimento no tórax. Finalmente, após uma última tentativa, a onça cessou a sua luta. Pude sentir seu corpo relaxar sob a pressão imposta, marcando o término da nossa batalha.Com dificuldade para respirar e esgotada, pressionei meu peito para conter o fluxo de sangue. Retirei-me da poça d'água e observei-a em seus últimos movimentos. A pantera negra revelou-se como Kamala Kataris, transformando-se de volta à sua forma humana diante dos meus olhos. A pele manteve a escuridão de sua forma felina, agora desfalecida. Nós, os Gatos Pardos, descendentes de uma linhagem ancestral, temos sete vidas, cada uma marcada por um aumento gradativo de poder. Kamala estava em sua quinta, a fase das onças. Ao morrer agora, ela ascenderá à sexta, assumindo a forma de um tigre, ainda mais poderosa que antes.
Com urgência, comecei a escavar uma sepultura no chão úmido e barrento. Alcancei a terceira camada do solo com rapidez e precisão, como uma puma. Ali, enterrei Kamala profundamente, utilizando apenas duas das minhas patas, cobrindo-a com terra e pedras para ocultar quaisquer traços e prevenir qualquer possibilidade de farejo.
De acordo com a tradição de nossa espécie, a morte é definitiva quando o corpo é enterrado sem a realização de um ritual de ressurreição. Este ritual deve ser realizado dentro das primeiras vinte e quatro horas após o momento da morte. Caso contrário, ainda existe a possibilidade de alcançar o próximo nível felino.
O encontro com um integrante dos Kataris sempre revisitou tensões históricas com os Copperan, lembra-me a dor aguda da ferida aberta em meu corpo, que se intensificava mediante o esforço que acabava de fazer. Percebendo meu corpo cambalear, prestes a cair, virei-me e iniciei uma corrida em uma direção que me distanciasse do local onde abandonei o herdeiro.
Eu avancei com a determinação de uma mãe puma, consciente que dormiria na mata e não acordaria mais. Cada passo ressoava na terra úmida, cada gota de chuva se mesclava ao suor em meu rosto. Não se tratava apenas de escapar ou proteger meu filho, mas de aproveitar meus últimos momentos de vida. Enquanto percorria o terreno, sentia o vento cortando meu pelo, reavivando a liberdade da minha infância selvagem, quando responsabilidades ou profecias não existiam. Recordei como era ser apenas uma pequena filhotinha, inocente e descomprometida, alheia aos conflitos e batalhas da nossa espécie.
Eu corri até que a exaustão pesasse em minhas pernas, até que o sangue jorrando da minha ferida se tornasse uma ardente lembrança da minha iminente mortalidade. Cada inspiração se tornava um desafio. Cada músculo empenhado em manter o ritmo frenético que me impulsionava adiante se contraía gerando dor. Finalmente, minha força se esgotava. Na quietude que surgia, experimentei uma paz passageira, ciente de que entre o rugir do trovão e a fúria da tempestade, eu corri.
A imponente estrutura vibrava com euforia; uma cúpula colorida, repleta de vida e luzes cintilantes. No centro do picadeiro, o apresentador, um homem de energia contagiosa, anunciava entusiasmado a minha chegada. Eu podia ouvir a plateia, tomada por uma tempestade de emoção, explodindo em aplausos e exclamações, ansiosa pela próxima atração. Dentro de mim, a sensação de nervosismo crescia como um arranha-céu. O trapézio, a poucos passos de mim, era mais do que um mero equipamento de circo; era o meu refúgio.Cada salto e pirueta não apenas marcava o limite entre a glória e a queda. Um simples erro poderia ser fatal. Os músculos das minhas mãos tremiam, mas eu tentava dominá-los com a respiração, procurando acalmar o coração acelerado à medida que a cortina do picadeiro se abria para o meu grandioso ato. A verdadeira força não estava nos músculos que segurariam o trapézio, mas na mente que se entregaria aos movimentos aéreos livres realizados pelo meu corpo.Mas o que ocorre quando a s
Me matar?Por quê ali, naquele instante? Não é o nosso primeiro encontro. Ele teve a oportunidade de me matar muito antes, lá, no internato. Por quê só agora?Enquanto a maioria dos jovens se divertia no pátio jogando basquete, eu preferia me exercitar nas arquibancadas, executando movimentos circulares com meu corpo. Esses alongamentos me permitiam explorar a tensão muscular, aliviando as dores dos ferimentos que sofria.Quando um movimento na quadra distanciou o percurso da bola de basquete a atingir minhas costas, Ashton mandou que eu a jogasse de volta, mas eu o ignorei.— O filhotinho de leão é medroso, não é? — Ele se aproximava, rindo com os outros, zombando do meu pingente, como sempre faziam. — Ou será que ele é só um gatinho?Eles começaram a me encurralar. Além de Ashon e Malthem, três jovens de um dormitório diferente colaboravam, me impulsionando de um lado para outro. Naquele momento, eu era a bola de basquete deles.— Se continuarem a me empurrar, terão que limpar a bos
Tabitha, ainda envolvendo seu corpo com as serpentes, se sentia desconfortável e temia pela segurança das cobras. Contudo, sua confusão não superava a da plateia, que iniciava um caos na arquibancada. O sussurro de pânico se intensificava em vozes de desespero.Os espectadores na arquibancada iniciavam uma confusão, buscando apressadamente a saída por todas as direções. As crianças, tomadas pelo pânico, choravam assustadas. Alguns tropeçavam e caíam, ferindo-se nas escadas da arquibancada. Eles deveriam estar surdos. Eu havia alertado que estavam seguros dentro do picadeiro, e agora, paradoxalmente, tentavam escapar na direção do perigo.— Tem uma onça ou n&atil
O aroma da chuva fresca que acompanhava o pingente com a figura de um leão; seguido pelas sardas no rosto de Felícia que apareciam quando ela, de forma tímida, inclinava a cabeça ao me ver; as pancadas e golpes que recebi na região das costelas dos garotos do orfanato; Leoni me observando com seus olhos de cor laranja no pátio; o momento em que Elliott me introduziu ao fascinante mundo do circo; as covinhas que ficavam ocultas pelos cabelos encaracolados de Alys na universidade; o sabor único do bolo de Maya que provocou vômito em todos naquele dia; a vez que permiti que a píton se enrolasse em meu pescoço; os treinos intensivos que Hero exigia no trapézio; o dia em que encarei a plateia pela primeira vez. Dizem que, ao morrer, sua vida passa diante de seus olhos como um filme. Foi o que aconteceu.Caminhava pelas vias sombrias, fugindo daquele pesadelo. Possivelmente, estava lidando com uma crise de exaustão, o famoso burnout. Corria ocasionalmente olhando para trás
Ouvi o movimento daquelas criaturas gelatinosas deslizando sobre minha pele, misturando os grãos de terra sobre meu corpo. A forma que se moviam chegava a gerar pequenas descargas elétricas ao tocar as extremidades de minha pele. Causavam desconforto, como espinhos penetrando minha derme. Senti a ponta dos meus dedos se contorcer lentamente. Primeiro, veio a audição; depois, o tato. No entanto, não havia nada para os meus olhos enxergarem quando a visão se fez presente. O pior não foi a sensação angustiante da total escuridão. Foi a incapacidade de respirar quando o olfato se ativou. Em um ato de desespero, meu corpo se levantou, espalhando terra por todos os lados.— Ele está vivo. — Leoni se agachou diante do meu túmulo, com Felicia de pé ao seu lado.Os pelos em meus braços, pernas e rosto começaram a crescer ao ritmo pulsante do meu coração, assim como as garras saltando de meus dedos. Meus olhos, antes cegos pela escuridão, agora brilhavam com um tom cintilante. Um vazio consumia
A força do meu antebraço pressionando a jugular do homem de cabelos ruivos interferia na sua respiração, mas ele permanecia resistente, mesmo com a passagem de ar por suas narinas se tornando mais restrita. Sua percepção visual parecia se intensificar à medida que o meu fôlego se tornava mais arfante, e o brilho em seus olhos voltava a assumir uma tonalidade alaranjada. Gradualmente, senti as pulsações das minhas veias diminuindo e a minha respiração voltando ao normal, momento em que o libertei do confinamento contra a parede.— Você precisa aprender a se controlar, garoto. — Ele empurrou meu peitoral com as palmas das mãos abertas. — E nunca mais mexa na minha coleção. — Disse, recolhendo a jaqueta que havia derrubado da arara.Havia algo singular na maneira como Leoni me olhava. Não se tratava apenas de um instinto de proteção familiar. Parecia que eu o fazia recordar alguém, que ele não via há um longo período. Uma reminiscência vívida, esquecida, mas ainda assim carinhosa ao mesm
O circo estava impecavelmente limpo. Qualquer resquício de sangue havia sido meticulosamente removido, embora ainda fosse visível os vestígios da batalha ocorrida nos bastidores. As cordas que antes prendiam meus colegas permaneciam no mesmo lugar, e a fechadura da porta continuava quebrada. Apesar disso, o local apresentava-se limpo.— Você está bem. — Maya se aproximou de mim para me dar um abraço.— Ai! — A pressão nas minhas costas causou dor.— Desculpe. — Seu irmão Petit, parado atrás, apenas esboçava um sorriso sem demonstrar muita simpatia por mim. — Estou contente em te ver.— O que aconteceu?— Elliott está aqui. — O palhaço afirmou. — As coisas não estão boas no camarim, eu acho.— Por quê? — Indaguei, desconfiado.— Hero não parecia contente quando entrou. — Maya afirmou.— Queria ser uma mosquinha para espiar a conversa lá dentro. — Ele afirmou, enquanto sua irmã lhe dava um tapa repreensível no ombro.— Você não consegue segurar a língua, não é? — Maya resmungou.De fato
Caminhava cuidadosamente, esforçando-me para não fazer muito barulho. Ansiava que meus passos fossem silenciosos como se pisassem em algodões, mas quanto mais tentava ser discreto, mais desajeitado me tornava. Acabei tropeçando, causando a queda de alguns livros, e atraindo olhares para mim. Através de um gesto com as mãos, pedi desculpas, mas ninguém ali pareceu aceitar, voltaram a virar suas caras para os livros sem falar qualquer coisa. Assim, agachei-me para recolher os exemplares do chão.— Não é tão bom com o silêncio, não é? — Alys perguntou, aparecendo de supetão e auxiliando-me.— Eu venho do circo, cê sabe. — Parece que o meu sorriso bobo conseguiu convencê-la da minha desculpa.— Vem para a parte da poesia. — Ela me puxava para o lugar mais reservado. — Ninguém fica aqui.— Por quê?— 2024, Cato. — Ela justifica, apontando para as cadeiras vazias e os livros empilhados nas prateleiras. — Ou estão lendo online, ou estão na ala de fantasia lendo sobre vampiros e lobisomens.A