Me matar?
Por quê ali, naquele instante? Não é o nosso primeiro encontro. Ele teve a oportunidade de me matar muito antes, lá, no internato. Por quê só agora?
Enquanto a maioria dos jovens se divertia no pátio jogando basquete, eu preferia me exercitar nas arquibancadas, executando movimentos circulares com meu corpo. Esses alongamentos me permitiam explorar a tensão muscular, aliviando as dores dos ferimentos que sofria.
Quando um movimento na quadra distanciou o percurso da bola de basquete a atingir minhas costas, Ashton mandou que eu a jogasse de volta, mas eu o ignorei.
— O filhotinho de leão é medroso, não é? — Ele se aproximava, rindo com os outros, zombando do meu pingente, como sempre faziam. — Ou será que ele é só um gatinho?
Eles começaram a me encurralar. Além de Ashon e Malthem, três jovens de um dormitório diferente colaboravam, me impulsionando de um lado para outro. Naquele momento, eu era a bola de basquete deles.
— Se continuarem a me empurrar, terão que limpar a bosta de vocês sozinhos! — Declarei, parando no centro e encarando-os.
O cansaço de ser tratado como um saco de pancadas ou a reprimenda que Felicia me deu na noite anterior poderiam ser a causa de minha atitude repentina. No entanto, eles não se intimidaram; ao contrário, persistiram.
— Você não só irá limpar a nossa bosta, Copperan. — Malthem se aproximou em tom ameaçador. — Como iremos fazê-lo limpar com os dentes.
Eles começaram a rir.
— O leãozinho vai sujar toda a juba. — Ashton não perdeu a piada.
— Ou eu use a escova de vocês para limpar. — Continuei a provocação tendo os olhos arregalados para mim.
Eram cinco contra um. Parecia ser mais um dia em que eu apanharia, mas eu não permaneceria calado. Não desta vez.
— O que você disse? — Malthem se aproximou, tendo seus longos cabelos loiros obstruindo minha visão enquanto me agarrava pela blusa. — Ai! — Ele exclamou de dor quando uma bola de basquete atingiu sua cabeça, soltando-me e se virando para identificar o agressor.
— Ei, você! Por que não enfrenta alguém do seu próprio tamanho? — uma voz firme soou, ainda invisível aos meus olhos, visto que a visão frontal estava obstruída pelos cinco jovens robustos.
Assim que começaram a se afastar, observei o homem de cabelos e barba ruivos, dotado de um corpo atlético e uma expressão de fúria em seu rosto.
— Eu fiz uma pergunta: por que vocês não mexem com alguém do seu tamanho?
O homem era desconhecido. Ele nem sequer vestia o uniforme de funcionários que trabalhavam ali, mas sua presença era suficiente para intimidar Malthem, Ashton e seus amigos. Apesar de serem fortes, eles não se comparavam à imponência do homem ruivo, que parecia esculpido em pedra.
— Que-que-quem é vo-vo-você? — Gaguejou um dos rapazes, nervoso.
— Alguém com quem vocês definitivamente não gostariam conhecer. — Ele se aproximou do grupo de cinco, encarando-os firme. — Se persistirem em importunar o garoto, não será apenas uma bola de basquete que os atingirá.
Eles o olhavam, havia temor em seus rostos. Um temor que eu nunca tinha visto antes.
— Hein? — O homem insistia. — Circulando, circulando. Antes que eu queira entrar na brincadeira. — Ordenava.
Eles concordaram, afastando-se sem pronunciar uma única palavra, visivelmente incomodados em serem reprimidos na minha frente.
Finalmente consegui observar o homem com atenção. De fato, ele não trabalhava no local, nem mesmo como segurança. Sua calça jeans rasgada e a jaqueta de couro preta não combinavam com qualquer uniforme do internato. Ele mais parecia um rebelde sem causa daqueles filmes dos anos 50.
— Posso me defender sozinho. — Disse, virando-me de costas para o homem e retomando os meus alongamentos.
— Evite se envolver em problemas, garoto. — Ele me aconselhou com um tom enigmático. — Não estarei sempre disponível para protegê-lo.
Ao me virar para ele, percebi que seu pingente, semelhante ao meu, tinha uma cor diferente.
— Te conheço? — Perguntei, com meu olhar fixo em seu colar. Ele notou, mas optou por permanecer em silêncio.
Ele deu as costas e começou a se afastar, movendo-se lentamente. Até seus passos exalavam arrogância.
— Ei! — Eu esbraveava.
O que presenciei a seguir só poderia ter sido fruto da minha curiosidade. Ele escalou o muro de pedras do internato com a agilidade de um felino, saltando para o outro lado de maneira tão rápida e desaparecendo como um fluxo de água.
Agora ele estava aqui, diante de mim, ameaçando-me de morte.
— Eu me lembro de você! — Bravejei.
Antes que pudéssemos pronunciar uma única palavra, um rugido poderoso ressoou. Uma criatura selvagem estava se aproximando.
Observei a aparição do animal. Como poderia haver uma onça nas proximidades do circo? O animal rugia de forma selvagem e incessante. Não se tratava apenas de um rugido de fome, mas havia uma ameaça por trás. Parecia saber a quem procurava. Por algum motivo, seu olhar se direcionava para mim. Agora, não só o homem que desejava me matar era uma ameaça, mas também estava sendo caçado por uma fera.
— Ela veio por você. — Ele me alertou, apontando o óbvio. — Fuja agora!
O indivíduo era tão selvagem que planejava me eliminar com suas próprias mãos? A besta não poderia realizar o trabalho em seu lugar? Precisava ser ELE?
Mesmo assim, não fugi. Permaneci oculto atrás de algumas latas de lixo, observando a batalha que começava.
— Cale-se! — Ordenava o homem. — Cale-se! — Insistia.
Tolo. Era melhor que eu fugisse. O homem estava tentando domar a pantera a mandando se calar. Ela certamente o mataria.
Presenciei a pantera movendo-se em direção a ele, saltando com vigor e fazendo-o rolar pelo solo rígido de concreto. O homem que surgira com a intenção de tirar minha vida, agora estava prestes a ter a sua própria ceifada pelo animal de pelagem negra. O uivo da pantera reverberava pelos becos, fundindo-se aos murmuros agonizantes do homem. Não tive opção, era fugir antes que me tornasse a próxima presa.
Retornei ao interior do circo, certificando-me de que todos os trincos fossem devidamente acionados para garantir a segurança durante a passagem. O espetáculo estava quase no fim e era crucial manter as pessoas dentro da tenda: a fera, após aniquilar o homem de cabelos avermelhados, poderia atacar qualquer um. O fulgor intenso das luzes do picadeiro formava um contraste acentuado com a escuridão lá fora, criando uma ilusão de segurança.
— Maya! — Chamei ofegante, enquanto corria em direção à jovem asiática. — Há uma pantera do lado de fora, devemos manter todos aqui dentro.
— Como assim? — Ela não compreendeu de imediato. — Cato, está tudo bem com você?
— Há uma pantera-negra do lado de fora, uma onça! — Exclamei, com o pânico crescendo em mim.
— Há uma onça do lado de fora! — Ao ouvir isso, o palhaço Petit começou a zombar de mim, enchendo o camarim de risadas. Ele se desmaqueava de maneira exagerada, desfazendo-se das cores chamativas, o que tornava a cena ainda mais bizarra.
— Não estou brincando, existe um felino do lado de fora que ameaça machucar toda a plateia! — Minha voz vacilava, contudo, eu estava certo do que tinha visto.
— O que disse, Cato? — Felicia se aproximou com curiosidade. — Um felino?
— Uma pantera. — Ela parecia duvidosa, porém inquieta.
— Cato não está bem, Feli — disse Petit, com um tom de desdém, tentando me ridicularizar. — Deve ser apenas um gatinho preto. — adicionou, imitando os meus trejeitos. — Ah, como é supersticioso!
— Vou verificar. — Felicia se afastou para a saída. — Entretanto, assegurem-se de bloquear todas as saídas. Se for verdade, não podemos arriscar a segurança das pessoas que pagaram para nos ver.
— Felicia! — Exclamei, mas a situação de emergência não a faria voltar. Minhas palavras pareciam vozear sem impacto, como se o pânico tivesse roubado a autoridade delas.
Petit e Maya se entreolharam.
— Vou buscar o Elliott. Por favor, entre em contato com a Guarda Municipal. — sugeriu Maya, tomando a iniciativa.
— Claro. — concordou Petit, com um tom irônico enquanto revirava os olhos.
Através da cortina do palco, pude encontrar Hero. Felizmente, ele não estava em cena naquele momento. Era a vez de sua irmã Tabitha, responsável pela última performance da noite. A mulher de cabelos loiros apresentava números envolvendo serpentes. Não costumávamos usar animais em nossos espetáculos, mas essas serpentes eram uma tradição da família Berlutti, os donos do circo. Tabitha tinha uma relação diferente com ela do que seu pai e seu irmão; as tratava como se fossem humanas. Durante a apresentação, Tabitha interagia com as cobras, alimentando-as com ratos e até se acomodando em seus ninhos. O ponto alto da apresentação era um número com uma cobra naja, em que Tabitha executava danças que eram incrivelmente imitadas pela serpente. Este era um momento que, de algum modo, sempre fascinava o público.
— Hero. Precisamos fechar os portões. — Falei com o coração pulsando. — Tem uma onça nos arredores do circo.
— Ah, Cato! — Ele explodiu, liberando a frustração pelo meu erro no trapézio. — Já entendi, seu objetivo é manter o público aqui para tentar realizar seu número novamente, não é?
— Você precisa me ouvir, He...
— Cato, você cometeu um erro. Isso acontece! — Ele disse, me depreciando. — Sempre existe a oportunidade de melhorar. Basta treinar mais! — Seu desprezo era quase tangível, como se minhas palavras fossem meramente uma desculpa.
Percebi que a apresentação de Tabitha estava terminando, com algumas pessoas já se levantando de seus assentos. Era hora de tomar uma atitude.
— Hero, há uma sujeira na sua cartola — disse eu, fazendo-o olhar para cima. Rapidamente, peguei seu microfone que estava no paletó e corri entre as cortinas em direção à plateia.
— Senhores, por favor, permaneçam no picadeiro. Existe uma onça rondando as proximidades do circo. Para garantir sua segurança, é imprescindível que permaneçam no picadeiro. — Anunciava com rapidez, sendo prontamente alcançado por Hero.
A minha atitude impensada, mas correta, foi o suficiente para causar um alvoroço.
Tabitha, ainda envolvendo seu corpo com as serpentes, se sentia desconfortável e temia pela segurança das cobras. Contudo, sua confusão não superava a da plateia, que iniciava um caos na arquibancada. O sussurro de pânico se intensificava em vozes de desespero.Os espectadores na arquibancada iniciavam uma confusão, buscando apressadamente a saída por todas as direções. As crianças, tomadas pelo pânico, choravam assustadas. Alguns tropeçavam e caíam, ferindo-se nas escadas da arquibancada. Eles deveriam estar surdos. Eu havia alertado que estavam seguros dentro do picadeiro, e agora, paradoxalmente, tentavam escapar na direção do perigo.— Tem uma onça ou n&atil
O aroma da chuva fresca que acompanhava o pingente com a figura de um leão; seguido pelas sardas no rosto de Felícia que apareciam quando ela, de forma tímida, inclinava a cabeça ao me ver; as pancadas e golpes que recebi na região das costelas dos garotos do orfanato; Leoni me observando com seus olhos de cor laranja no pátio; o momento em que Elliott me introduziu ao fascinante mundo do circo; as covinhas que ficavam ocultas pelos cabelos encaracolados de Alys na universidade; o sabor único do bolo de Maya que provocou vômito em todos naquele dia; a vez que permiti que a píton se enrolasse em meu pescoço; os treinos intensivos que Hero exigia no trapézio; o dia em que encarei a plateia pela primeira vez. Dizem que, ao morrer, sua vida passa diante de seus olhos como um filme. Foi o que aconteceu.Caminhava pelas vias sombrias, fugindo daquele pesadelo. Possivelmente, estava lidando com uma crise de exaustão, o famoso burnout. Corria ocasionalmente olhando para trás
Ouvi o movimento daquelas criaturas gelatinosas deslizando sobre minha pele, misturando os grãos de terra sobre meu corpo. A forma que se moviam chegava a gerar pequenas descargas elétricas ao tocar as extremidades de minha pele. Causavam desconforto, como espinhos penetrando minha derme. Senti a ponta dos meus dedos se contorcer lentamente. Primeiro, veio a audição; depois, o tato. No entanto, não havia nada para os meus olhos enxergarem quando a visão se fez presente. O pior não foi a sensação angustiante da total escuridão. Foi a incapacidade de respirar quando o olfato se ativou. Em um ato de desespero, meu corpo se levantou, espalhando terra por todos os lados.— Ele está vivo. — Leoni se agachou diante do meu túmulo, com Felicia de pé ao seu lado.Os pelos em meus braços, pernas e rosto começaram a crescer ao ritmo pulsante do meu coração, assim como as garras saltando de meus dedos. Meus olhos, antes cegos pela escuridão, agora brilhavam com um tom cintilante. Um vazio consumia
A força do meu antebraço pressionando a jugular do homem de cabelos ruivos interferia na sua respiração, mas ele permanecia resistente, mesmo com a passagem de ar por suas narinas se tornando mais restrita. Sua percepção visual parecia se intensificar à medida que o meu fôlego se tornava mais arfante, e o brilho em seus olhos voltava a assumir uma tonalidade alaranjada. Gradualmente, senti as pulsações das minhas veias diminuindo e a minha respiração voltando ao normal, momento em que o libertei do confinamento contra a parede.— Você precisa aprender a se controlar, garoto. — Ele empurrou meu peitoral com as palmas das mãos abertas. — E nunca mais mexa na minha coleção. — Disse, recolhendo a jaqueta que havia derrubado da arara.Havia algo singular na maneira como Leoni me olhava. Não se tratava apenas de um instinto de proteção familiar. Parecia que eu o fazia recordar alguém, que ele não via há um longo período. Uma reminiscência vívida, esquecida, mas ainda assim carinhosa ao mesm
O circo estava impecavelmente limpo. Qualquer resquício de sangue havia sido meticulosamente removido, embora ainda fosse visível os vestígios da batalha ocorrida nos bastidores. As cordas que antes prendiam meus colegas permaneciam no mesmo lugar, e a fechadura da porta continuava quebrada. Apesar disso, o local apresentava-se limpo.— Você está bem. — Maya se aproximou de mim para me dar um abraço.— Ai! — A pressão nas minhas costas causou dor.— Desculpe. — Seu irmão Petit, parado atrás, apenas esboçava um sorriso sem demonstrar muita simpatia por mim. — Estou contente em te ver.— O que aconteceu?— Elliott está aqui. — O palhaço afirmou. — As coisas não estão boas no camarim, eu acho.— Por quê? — Indaguei, desconfiado.— Hero não parecia contente quando entrou. — Maya afirmou.— Queria ser uma mosquinha para espiar a conversa lá dentro. — Ele afirmou, enquanto sua irmã lhe dava um tapa repreensível no ombro.— Você não consegue segurar a língua, não é? — Maya resmungou.De fato
Caminhava cuidadosamente, esforçando-me para não fazer muito barulho. Ansiava que meus passos fossem silenciosos como se pisassem em algodões, mas quanto mais tentava ser discreto, mais desajeitado me tornava. Acabei tropeçando, causando a queda de alguns livros, e atraindo olhares para mim. Através de um gesto com as mãos, pedi desculpas, mas ninguém ali pareceu aceitar, voltaram a virar suas caras para os livros sem falar qualquer coisa. Assim, agachei-me para recolher os exemplares do chão.— Não é tão bom com o silêncio, não é? — Alys perguntou, aparecendo de supetão e auxiliando-me.— Eu venho do circo, cê sabe. — Parece que o meu sorriso bobo conseguiu convencê-la da minha desculpa.— Vem para a parte da poesia. — Ela me puxava para o lugar mais reservado. — Ninguém fica aqui.— Por quê?— 2024, Cato. — Ela justifica, apontando para as cadeiras vazias e os livros empilhados nas prateleiras. — Ou estão lendo online, ou estão na ala de fantasia lendo sobre vampiros e lobisomens.A
Os sentimentos que nutro por Alys começaram a florescer recentemente. Desde o nosso primeiro encontro na Universidade de Beaston, temos fortalecido nossa conexão. Tenho a sensação de que as outras meninas não gostam muito da companhia dela. Nunca a observei compartilhando conversas com outras garotas durante os intervalos. Foi por essas semelhanças que nos aproximamos. Dois lobos solitários, perdidos em uma universidade um tanto caótica.Acredito que, naquela época, como recém-chegada, ter tantas pessoas era uma novidade para a garota, e a adaptação levou algum tempo. Hoje em dia, a vejo com algumas meninas ocasionalmente na quadra, mas sua verdadeira paixão parece residir nos livros. Ela está sempre com algum exemplar em mãos e, provavelmente, carrega outro na bolsa também.No entanto, Alys não foi a primeira pessoa por quem desenvolvi sentimentos. Ainda no orfanato, havia um rapaz de quem eu gostava muito. Embora tivéssemos a mesma idade, a separação de quartos e setores, se tornou
Leoni retirou mais uma garrafa de vodca do seu refrigerador. Quantas ele poderia possuir? E como conseguia comprar tantas? No entanto, esses detalhes não eram importantes. Eu o observei abrir a tampa com os dentes, girando-a até cuspi-la, enquanto eu permanecia parado, com os braços cruzados, aguardando uma resposta.— Você precisa tomar cuidado com esta garota. — Ele afirmou, ao sentar-se.— Cuidado? — Franzi a sobrancelha, me aproximando. — Por quê? — Insisti.Ele não me ofereceu uma resposta. Permaneceu concentrado em consumir a bebida alcoólica, o que começava a me provocar estresse. O comportamento ríspido de Leoni às vezes me deixava irritado.— Responda! — Gritei.Ele suspirou profundamente enquanto eu me ajeitava na cama, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.— Se você não aprender a se controlar, Cato, a Lua não te ajudará. — Ele expressou-se de maneira enigmática.Sentado ao seu lado, sentia uma pressão intensa sobre meus ombros, como uma bigorna forçando meu corpo para