O aroma da chuva fresca que acompanhava o pingente com a figura de um leão; seguido pelas sardas no rosto de Felícia que apareciam quando ela, de forma tímida, inclinava a cabeça ao me ver; as pancadas e golpes que recebi na região das costelas dos garotos do orfanato; Leoni me observando com seus olhos de cor laranja no pátio; o momento em que Elliott me introduziu ao fascinante mundo do circo; as covinhas que ficavam ocultas pelos cabelos encaracolados de Alys na universidade; o sabor único do bolo de Maya que provocou vômito em todos naquele dia; a vez que permiti que a píton se enrolasse em meu pescoço; os treinos intensivos que Hero exigia no trapézio; o dia em que encarei a plateia pela primeira vez. Dizem que, ao morrer, sua vida passa diante de seus olhos como um filme. Foi o que aconteceu.
Caminhava pelas vias sombrias, fugindo daquele pesadelo. Possivelmente, estava lidando com uma crise de exaustão, o famoso burnout. Corria ocasionalmente olhando para trás
Ouvi o movimento daquelas criaturas gelatinosas deslizando sobre minha pele, misturando os grãos de terra sobre meu corpo. A forma que se moviam chegava a gerar pequenas descargas elétricas ao tocar as extremidades de minha pele. Causavam desconforto, como espinhos penetrando minha derme. Senti a ponta dos meus dedos se contorcer lentamente. Primeiro, veio a audição; depois, o tato. No entanto, não havia nada para os meus olhos enxergarem quando a visão se fez presente. O pior não foi a sensação angustiante da total escuridão. Foi a incapacidade de respirar quando o olfato se ativou. Em um ato de desespero, meu corpo se levantou, espalhando terra por todos os lados.— Ele está vivo. — Leoni se agachou diante do meu túmulo, com Felicia de pé ao seu lado.Os pelos em meus braços, pernas e rosto começaram a crescer ao ritmo pulsante do meu coração, assim como as garras saltando de meus dedos. Meus olhos, antes cegos pela escuridão, agora brilhavam com um tom cintilante. Um vazio consumia
A força do meu antebraço pressionando a jugular do homem de cabelos ruivos interferia na sua respiração, mas ele permanecia resistente, mesmo com a passagem de ar por suas narinas se tornando mais restrita. Sua percepção visual parecia se intensificar à medida que o meu fôlego se tornava mais arfante, e o brilho em seus olhos voltava a assumir uma tonalidade alaranjada. Gradualmente, senti as pulsações das minhas veias diminuindo e a minha respiração voltando ao normal, momento em que o libertei do confinamento contra a parede.— Você precisa aprender a se controlar, garoto. — Ele empurrou meu peitoral com as palmas das mãos abertas. — E nunca mais mexa na minha coleção. — Disse, recolhendo a jaqueta que havia derrubado da arara.Havia algo singular na maneira como Leoni me olhava. Não se tratava apenas de um instinto de proteção familiar. Parecia que eu o fazia recordar alguém, que ele não via há um longo período. Uma reminiscência vívida, esquecida, mas ainda assim carinhosa ao mesm
O circo estava impecavelmente limpo. Qualquer resquício de sangue havia sido meticulosamente removido, embora ainda fosse visível os vestígios da batalha ocorrida nos bastidores. As cordas que antes prendiam meus colegas permaneciam no mesmo lugar, e a fechadura da porta continuava quebrada. Apesar disso, o local apresentava-se limpo.— Você está bem. — Maya se aproximou de mim para me dar um abraço.— Ai! — A pressão nas minhas costas causou dor.— Desculpe. — Seu irmão Petit, parado atrás, apenas esboçava um sorriso sem demonstrar muita simpatia por mim. — Estou contente em te ver.— O que aconteceu?— Elliott está aqui. — O palhaço afirmou. — As coisas não estão boas no camarim, eu acho.— Por quê? — Indaguei, desconfiado.— Hero não parecia contente quando entrou. — Maya afirmou.— Queria ser uma mosquinha para espiar a conversa lá dentro. — Ele afirmou, enquanto sua irmã lhe dava um tapa repreensível no ombro.— Você não consegue segurar a língua, não é? — Maya resmungou.De fato
Caminhava cuidadosamente, esforçando-me para não fazer muito barulho. Ansiava que meus passos fossem silenciosos como se pisassem em algodões, mas quanto mais tentava ser discreto, mais desajeitado me tornava. Acabei tropeçando, causando a queda de alguns livros, e atraindo olhares para mim. Através de um gesto com as mãos, pedi desculpas, mas ninguém ali pareceu aceitar, voltaram a virar suas caras para os livros sem falar qualquer coisa. Assim, agachei-me para recolher os exemplares do chão.— Não é tão bom com o silêncio, não é? — Alys perguntou, aparecendo de supetão e auxiliando-me.— Eu venho do circo, cê sabe. — Parece que o meu sorriso bobo conseguiu convencê-la da minha desculpa.— Vem para a parte da poesia. — Ela me puxava para o lugar mais reservado. — Ninguém fica aqui.— Por quê?— 2024, Cato. — Ela justifica, apontando para as cadeiras vazias e os livros empilhados nas prateleiras. — Ou estão lendo online, ou estão na ala de fantasia lendo sobre vampiros e lobisomens.A
Os sentimentos que nutro por Alys começaram a florescer recentemente. Desde o nosso primeiro encontro na Universidade de Beaston, temos fortalecido nossa conexão. Tenho a sensação de que as outras meninas não gostam muito da companhia dela. Nunca a observei compartilhando conversas com outras garotas durante os intervalos. Foi por essas semelhanças que nos aproximamos. Dois lobos solitários, perdidos em uma universidade um tanto caótica.Acredito que, naquela época, como recém-chegada, ter tantas pessoas era uma novidade para a garota, e a adaptação levou algum tempo. Hoje em dia, a vejo com algumas meninas ocasionalmente na quadra, mas sua verdadeira paixão parece residir nos livros. Ela está sempre com algum exemplar em mãos e, provavelmente, carrega outro na bolsa também.No entanto, Alys não foi a primeira pessoa por quem desenvolvi sentimentos. Ainda no orfanato, havia um rapaz de quem eu gostava muito. Embora tivéssemos a mesma idade, a separação de quartos e setores, se tornou
Leoni retirou mais uma garrafa de vodca do seu refrigerador. Quantas ele poderia possuir? E como conseguia comprar tantas? No entanto, esses detalhes não eram importantes. Eu o observei abrir a tampa com os dentes, girando-a até cuspi-la, enquanto eu permanecia parado, com os braços cruzados, aguardando uma resposta.— Você precisa tomar cuidado com esta garota. — Ele afirmou, ao sentar-se.— Cuidado? — Franzi a sobrancelha, me aproximando. — Por quê? — Insisti.Ele não me ofereceu uma resposta. Permaneceu concentrado em consumir a bebida alcoólica, o que começava a me provocar estresse. O comportamento ríspido de Leoni às vezes me deixava irritado.— Responda! — Gritei.Ele suspirou profundamente enquanto eu me ajeitava na cama, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.— Se você não aprender a se controlar, Cato, a Lua não te ajudará. — Ele expressou-se de maneira enigmática.Sentado ao seu lado, sentia uma pressão intensa sobre meus ombros, como uma bigorna forçando meu corpo para
Minha discussão com Alys foi esclarecedora, causando certa melancolia ao reconhecer que meu tio não compartilhou toda a verdade comigo. Ele ocultou algumas informações, mas retrospectivamente, acredito que não teria feito diferença conhecer a sua conexão com os Ravenclaw. Afinal, como ele poderia prever que eles também me perseguiriam?Alys me fascina, penso enquanto me acomodo na sala de aula, abrindo minha mochila para anotar as informações que o professor começa a escrever no quadro. Com o caderno aberto, registro sem prestar muita atenção ao significado das palavras, vendo-as apenas como códigos a serem transcritos. Será que a menina de cabelos encaracolados teria me enganado, ou ela desconhecia minha linhagem ancestral? Agora, não posso mais confiar nela. Apenas Felicia demonstrou ser digna da minha confiança. Por enquanto.O professor inicia sua explicação sobre como proceder em situações de acidentes e fraturas, uma informação crucial para nós, futuros educadores físicos. No en
Acelero meu ritmo ao máximo em direção à floresta. Este lugar, afastado de tudo que experimento em Beaston, proporciona-me uma certa tranquilidade à medida que aumento o compasso do meu andar; e o aroma herbáceo invade as minhas narinas. Não faço pausas para descansar. Manter-me em movimento permite-me mergulhar completamente na minha essência recém-descoberta. Eu corro até meu coração bater intensamente, minhas pernas doerem e meus pensamentos desaparecerem.Desde a falsidade de Leoni e Felicia, já se passaram dois dias desde o meu desaparecimento. Não tive a audácia de ir ao Circo presenciar o dano que havia causado na perna de Tabitha. Mesmo não sendo o responsável pelo incidente, sinto-me assim, uma vez que as panteras estavam buscando a mim. Ela apenas tentou se defender.— A Lua Cheia é amanhã, Cato. — Leoni me surpreende ao aparecer entre os arbustos. — Achou que se esconderia por quanto tempo?Observo que ele se aproxima segurando generosos pedaços de carne em cada mão, cujo s