1 - Respeitável Público

A imponente estrutura vibrava com euforia; uma cúpula colorida, repleta de vida e luzes cintilantes. No centro do picadeiro, o apresentador, um homem de energia contagiosa, anunciava entusiasmado a minha chegada. Eu podia ouvir a plateia, tomada por uma tempestade de emoção, explodindo em aplausos e exclamações, ansiosa pela próxima atração. Dentro de mim, a sensação de nervosismo crescia como um arranha-céu. O trapézio, a poucos passos de mim, era mais do que um mero equipamento de circo; era o meu refúgio.

Cada salto e pirueta não apenas marcava o limite entre a glória e a queda. Um simples erro poderia ser fatal. Os músculos das minhas mãos tremiam, mas eu tentava dominá-los com a respiração, procurando acalmar o coração acelerado à medida que a cortina do picadeiro se abria para o meu grandioso ato. A verdadeira força não estava nos músculos que segurariam o trapézio, mas na mente que se entregaria aos movimentos aéreos livres realizados pelo meu corpo.

Mas o que ocorre quando a sua mente está repleta de pensamentos?

Fiz uma curva à direita. A madrugada teria sido silenciosa, não fosse pelo meu constante agitar na cama. Virei-me para cima novamente. Enquanto estava ali, o vento trouxe o aroma da grama recém-cortada, que se infiltrava pela janela aberta. Rolei para a esquerda mais uma vez. Fechei os olhos na tentativa de adormecer, quando uma visão brilhante surgiu. Atrás da minha íris, o reflexo de um felino brilhava; um gato com olhos tão laranja quanto um campo de trigo. Novamente, me revirei na cama, voltando o olhar para o teto, mas me senti aprisionado, dominado por uma sensação de impotência. Gritei, tendo minha voz ecoando no vácuo, enquanto o olhar felino se aproximava, parecendo disposto a devorar minha alma.

Despertei rapidamente, transpirando e ofegante, com o coração pulsando forte em meu peito. O quarto estava escuro, iluminado apenas pela tênue luz do luar que se infiltrava pela cortina parcialmente aberta. Não havia passado muito tempo. Ao meu redor, os outros dois ocupantes do dormitório se despertavam de um sono embriagado, murmurando numa língua que eu não compreendia. O ambiente estava tenso e silencioso, rompido apenas pelo som das respirações pesadas.

— O que houve? — Indaguei, com dificuldade para pronunciar.

Malthem, um dos rapazes, mais alto e encorpado se aproxima de mim, cambaleando tonto até a minha cama, pegando-me pelo braço feito marionete e prensando meu corpo à parede com um movimento brusco.

— Sonhe quieto da próxima vez. — Ameaçou baforando o cheiro de álcool em minhas narinas.

Eu não respondi, apenas acenei, sentindo o frio da parede contra minhas costas. Fui liberado e o observei retornar à cama de forma desajeitada, desabando de imediato sobre o colchão. Presumivelmente, ele não se lembraria daquele episódio na manhã seguinte. Ashton, o outro roommate, não teve energia suficiente para descer do beliche, simplesmente voltou a dormir. Suspeito que eles passaram a noite em uma das festas clandestinas que aconteciam no internato.

Permaneci parado por um instante, esforçando-me para regular minha respiração, enquanto o aroma de suor e álcool permeava meu corpo. Retornei à cama, tentando não emitir um som, mas o colchão rígido protestou com um rangido sob meu peso. Felizmente, o ronco do outro lado era mais alto. Com delicadeza, afastei o travesseiro e alcancei um colar escondido sobre o cabeceira, seu pingente em forma de leão balançava suavemente.

Examinei o pingente, recordando-me do sonho. Não se tratava do mesmo felino; contudo, o olhar era idêntico. Um calafrio atravessou minha espinha dorsal, o medo ainda se fazia presente. Com os olhos fechados, segurava o objeto firmemente, lutando para afastar os pensamentos invasivos na procura por um pouco de descanso. As memórias invadiam minha mente.

Certamente, essa não era a vida que eu desejava. O odor pungente do desinfetante se mesclava ao cheiro de mofo, agredindo minhas narinas de forma mais intensa que o hálito do meu companheiro de quarto. Pulsando, meus braços calejavam com a tarefa constante de esfregar a escova no piso, e o esgotamento pesava como uma âncora em meus ombros. Aquele chão gélido fazia meus joelhos tremerem. As lágrimas, em meus olhos, desciam como a água turva que pingava no interior do balde.

A dor intensa nos músculos impedia que eu adormecesse. Observava os meus colegas de quarto descansando tranquilamente. Eles, nem sequer, se preocupavam em contribuir com as tarefas domésticas. Sendo mais fortes, sobrecarregavam-me com a tarefa exaustiva, ameaçando me bater caso eu recusasse cumprir sua parte. Dominado pelo medo, eu acatava. No entanto, agora eles estavam vulneráveis, dando-me a chance de vingança. Mas o que eu poderia fazer?

— Cato. — Sussurrava a voz por trás da porta. — Cato...

Despertei daquela falsa sensação de sono, porém sem receio de fazer barulho, levantei, pois já havia constatado que meus roommates não despertariam.

— O que você está fazendo aqui, Feli? — Com o olhar inquisitivo, busquei a presença de alguém no corredor.

— Ninguém percebeu. — Ela respondeu com seu sorriso sagaz.

O internato é estruturado em alas masculina e feminina, onde a interação entre ambos é proibida. Contudo, essa regra é geralmente quebrada, principalmente em dias festivos, como o daquela noite. Felicia, no entanto, não era do tipo que apreciava ficar acordada até tarde bebendo. Na verdade, ela preferia se concentrar nos estudos, mas por alguma razão, ela estava ali, batendo na minha porta.

— Eu estava preocupada, notei que você não apareceu na festa. — Ela me observou de cima a baixo, com seus olhos cinzentos.

— Estive ocupado com as tarefas. — Respondi, tentando evitar seu abraço. — Ah! — Inspirei ao sentir o seu toque, afastando-me.

— Cato? — Ela se distancia, percebendo a dor que provoca ao tocar as minhas costas.

— Estou muito cansado, Felicia.

— Tire a camisa, Cato. — Ela ordenou.

— Somos quase como irmãos, Felicia. Não acho que seria apropriado eu me despir em sua presença, muito menos transar. — Eu disse, em tom de brincadeira.

— Não se faça de bobo. Tire a sua camisa agora! — Sua voz firme era tão intensa que fazia sua clavícula se destacar, evidenciando a seriedade de suas palavras.

— Não vou, Felicia. Está frio. — Insisti na mentira.

Ela agiu rapidamente, arriscando-se a remover minha blusa, mas eu resisti, tentando impedi-la. No entanto, isso não foi suficiente para ocultar uma das cicatrizes em meu peito.

— Eles continuam a te bater, Cato. — Ela solta minha blusa e cruza os beiços, pessimista. — Até quando você vai deixar?

Eu não consigo dar-lhe uma resposta e apenas abaixo a cabeça.

— Preciso ir, Cato. No entanto, isso não vai ficar impune. Se você não fará nada, eu vou. Eles terão o que merecem. — Ela deposita um beijo suave em minha bochecha e, de maneira furtiva, percorre o corredor para não ser percebida.

— Cato? — A voz suave de Maya afasta as memórias. — Você não vai entrar?

O picadeiro, me lembro.

— O que aconteceu? — Pergunto, ainda tentando voltar a realidade.

— É a sua vez. Hero está enrolando o público há cinco minutos. Eu entendo que esta é a sua primeira apresentação, pois, também senti o mesmo na minha. — Ela apalpava meus ombros com carinho, tentando aliviar a tensão. — Mas só respire. Você treinou para isso. — Ela me aconselha, dando alguns tapinhas posteriormente.

Avanço em direção ao palco, não temendo a multidão que aclama meu nome, mas desviando do olhar crítico de Hero, que se retira com um sorriso aliviado. O trapézio desce um pouco abaixo da altura dos meus pulsos, mas antes, busco um olhar entre o público.

Todos parecem iguais.

Com os braços elevando-se em direção à barra de metal, o trapézio é gentilmente esticado. O corpo dança para frente e para trás, criando um ritmo de impulso. O tronco se enrola, contorcendo-se em uma dança aérea até que as pernas, em uma troca sutil, substituam os braços para se apoiarem na estrutura. Um segundo trapézio se aproxima, balançando pelo espaço, enquanto me encontro na posição de morcego. É nesse momento, de ponta-cabeça, que a vislumbro entre os milhares de rostos.

Seus cabelos curtos e encaracolados, tão negros quanto a noite, adquirem um tom opaco perto de seu sorriso radiante ao me ver no trapézio. Alys Ravenclaw acena para mim enquanto executo agilmente o salto de uma estrutura para outra. A jovem universitária compareceu, como havia prometido, exclusivamente para me assistir.

Executando um salto mortal para frente no ar, lancei-me em direção ao trapézio que surgia à minha direita. Posteriormente, dois outros trapézios se aproximaram, elevando o nível de perigo do ato. O salto mortal para trás exigiu um nível de habilidade mais delicado, já que cada ponta dos meus pés teria que encontrar equilíbrio em uma barra diferente, abertas. Meu coração pulsava no peito como um tambor em ritmo acelerado. Essa pulsação poderia ser atribuída à ansiedade, ou talvez à presença de Alys Ravenclaw. Ou, ainda, talvez fosse Alys Ravenclaw a fonte de meu nervosismo. Esta última opção parecia a mais provável.

Com um movimento rápido, a cabeça foi lançada para trás, impulsionando os membros inferiores, fazendo as pernas levitarem no espaço, semelhantes à rotação das hélices de um helicóptero. A perna direita se ajustou com precisão na estrutura do trapézio; porém, a esquerda falhou em encontrar sua posição. Um erro grave.

A plateia continuava a aplaudir, acreditando que a performance havia sido um sucesso. Na realidade, não tinha sido, mas ao menos eu não havia caído. Eu me encontrava pendurado por uma das minhas pernas, enquanto a outra forçava meu corpo para baixo, estendi-a para cima, alinhando meu corpo com o trapézio para concluir a apresentação, mantendo um sorriso forçado no rosto.

Balançava o corpo de um lado para o outro no trapézio, pois agora precisava improvisar. Assim, realizei movimentos básicos, saltando de um lado para o outro, sendo amparado pelas pernas, ao invés dos braços. Ainda na posição de morcego, saltava novamente em outra direção. Às vezes dava ma pirueta no ar durante a transição dos trapézios, mas nada daquilo me deixava feliz. A minha tentativa verdadeira já havia me frustrado o suficiente.

À medida que o trapézio descia, dei um salto ao notar que ele já se encontrava em uma altura consideravelmente perto do chão. Mas não me preocupei em levantar os braços ou inclinar o corpo para frente em agradecimento a plateia. Estava frustrado demais para isso. 

Contudo, observei Hero retornar ao picadeiro com um sorriso que compensava por nós dois. Com um semblante inexpressivo, segui em direção aos bastidores, e a cabeça baixa, consciente do meu fracasso.

— Cato! — As vozes piedosas de meus colegas chamavam por mim. Eu as ignorava, esbarrando nos ombros de cada indivíduo que cruzava meu caminho no corredor apertado que tínhamos entre os quartos do circo.

— Deixa ele, gente. — Disse alguém, evitando que me perseguissem.

Deslizei silenciosamente para a saída traseira do circo, antecipando uma fuga para a quietude solitária entre as caçambas de lixo. Meu pressuposto, no entanto, estava equivocado.

Diante de mim, lá estava ele. O homem de cabelos ruivos, que fluíam como fios de fogo, enquadrando um rosto dominado por uma barba volumosa. Ele estava imóvel, a poucos passos de distância, e seu olhar era um reflexo vívido dos meus pesadelos no orfanato.

A íris alaranjada que tanto brilhava para mim, remetia ao fulgor do sol. O que vi em meus sonhos não era apenas um pesadelo ou fruto da minha imaginação. Aquela visão, aqueles olhos, eram, inquestionavelmente, reais.

— Você... — Lembrei de sua aparência, observando-o levar a garrafa de vodca aos lábios. — Qual o seu nome?

— Eu sou Leoni. — Ele declarou ao tomar um gole. — Estou aqui para te matar.

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