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Capítulo um - Memórias

Fumaça.

Havia muita fumaça.

MIGUEL recobrou a consciência e tentou se manter em pé, mas isso parecia ser uma missão impossível, o barco balançava de um lado para o outro e sua cabeça latejava fortemente.

Levou a mão à cabeça e sentiu algo viscoso, quando olhou, percebeu que era sangue, por isso, ficou confuso por alguns instantes. Ele havia caído?

 Não lembrava direito, focou os olhos na mancha de sangue no chão do barco e, então, relembrou tudo o que aconteceu minutos atrás, a discussão, a briga e, por fim, as pancadas na cabeça.

O coração de Miguel se contraiu, enquanto, em sua mente, ele só conseguia se perguntar: como Lucas pôde? Como ele pôde se virar contra ele? Ele era seu melhor amigo, não era?

Fechou os olhos tentando se recordar de cada palavra.

— Então, Miguel, o que fará agora? — Lucas gritou andando pelo convés principal agitado, apontando uma arma para Miguel.

— Qual é, cara? Abaixa isso aí, não tem graça — disse Miguel, não querendo acreditar na atitude de seu melhor amigo. Por um momento, pensou que aquilo se tratava de uma brincadeira, levantou as mãos em rendição, mas não demorou muito para Miguel se dar conta de que Lucas estava realmente falando sério... Planejaram uma saída de barco para dar uma volta na ilha e agora Lucas estava ali na sua frente, completamente mudado.

— Não é mesmo para ter graça, Miguel, eu estou falando sério... Estou cansado! — reclamou Lucas, com o rosto tão frio como um cubo de gelo. Seus olhos estavam tão gélidos que Miguel não conseguia reconhecê-lo, não parecia ser mais seu amigo, seu melhor amigo, aquele que ele considerou um irmão a vida inteira.

— Cansado do quê? — a voz de Miguel quase não saiu, ele estava chocado demais, não conseguia digerir ainda o fato de que o amigo estava apontando uma arma em sua direção.

 — Você tem tudo... TUDO! Como você pode ter tanta sorte na vida assim? Enquanto eu... eu... — ele dizia, ao mesmo tempo que estava sério, estava também desnorteado.

— Lucas, por favor...

— Cala a maldita boca! — Lucas gritou ainda mais alto, chegando mais perto de Miguel, que se ajoelhou, levando as mãos à cabeça. Agora, estava mais do que claro para Miguel que o amigo não estava brincando. — Não me venha implorar por piedade... Você tem os melhores pais, é rico, tem a mulher que eu sempre quis, e agora o melhor emprego, enquanto eu... eu... eu não tenho nada! — berrava Lucas inconformado, ele estava tão irritado que não podia se controlar.

E enquanto proferia palavras de puro ódio para seu amigo de infância, Lucas pensava na sua falta de sorte, enquanto Miguel conseguia ter mais sorte do que qualquer outra pessoa que ele já conhecera em toda a vida.

E por conta disso, o coração de Lucas se enchia de sentimentos ruins que nenhuma pessoa deveria ter. O ódio, um dos sentimentos mais perigosos da humanidade. É através dele que tomávamos duras e amargas decisões, como essa que Lucas estava prestes a fazer.

Miguel não entendia o porquê daquilo, Lucas era seu amigo desde sempre, ouvir aquilo o machucava, não sabia que Lucas invejava tanto de suas conquistas. Pensava que o amigo ficava feliz, assim como ele ficava com cada notícia boa que o amigo dava a ele.

Uma lágrima rolou pelo seu rosto, Miguel fechou os olhos e pensou em Malú, em como a amava e sentiu uma dor profunda se instalar em seu coração, ele não iria poder viver com ela; o amor que sentia estava prestes a ser morto por seu melhor amigo, uma das pessoas que ele mais confiou em toda a sua vida.

E por um momento, tudo foi ficando mais claro na cabeça de Miguel, já conseguia entender todo plano: com certeza, Lucas iria matá-lo para, em seguida, tentar conquistar Malú.

—Eu sinto muito, Lucas, eu não achava que você se sentisse assim, você nunca me demonstrou isso...

— Ah, poupe-me, Miguel! Como não sabia? — disse Lucas ainda gritando com Miguel, que se mantinha calmo, mesmo com medo. — Ah, claro... você não conseguia enxergar nada além do seu próprio nariz, como sempre muito egocêntrico, estava muito ocupado com o emprego perfeito, e a vida perfeita... — acrescentou, num tom de deboche.

—É claro que não, na verdade, devo não ter percebido por ser um completo imbecil, um ingênuo que achava que você se alegrava com as minhas conquistas, que era meu amigo, meu irmão, eu sinto muito pelo seu egoísmo! — Miguel disse com lágrimas nos olhos.

— Eu não sou egoísta! — gritou tão alto que fez sua garganta doer.

— Como não? Se você acabou de me falar que tem inveja de tudo que eu tenho! Me aponta uma arma para me matar, e não se sente egoísta? Você vai me matar para quê!? Para me roubar? Para tentar ficar com a Malú? Ou quer a minha vaga no hospital? ME DIGA O QUE DIABOS VOCÊ QUER?! — gritou Miguel já impaciente.

— Você não entende nada! — disse, fingindo desdém, mas seus olhos estavam marejados. Por um momento, Miguel até desconfiou que as mãos de Lucas tremeram.

— Não, eu não entendo mesmo. Não entendo seu ódio por mim, nunca te fiz nada, sempre tentei ser um bom amigo, te ajudar em tudo que você precisasse.

Lucas ficou calado por alguns instantes, apenas o olhando com um brilho estranho nos olhos, parecia já imaginar como seria sua vida sem Miguel por perto para perturbá-lo, logo, começou fazer planos mentalmente.

— Sabe o que quero? — Ele riu de uma maneira assustadora, que fez Miguel sentir um frio na espinha. — Eu quero matar tudo o que você representa, quero apagar você de minha vida e da vida de Malú, quero destruir você, e quando eu conseguir isso, eu vou conquistá-la, vou me casar com ela, ter filhos com ela e você, nem lembrança será! — Lucas destravou a arma e apontou novamente para Miguel.

Miguel sentiu raiva pela primeira vez em sua vida, ele queria poder não ter ido àquela viagem, queria poder nunca ter conhecido Lucas, aquele menino retraído e tímido do colégio, que se tornou o seu melhor amigo há mais de vinte anos. Lucas era um rapaz bonito, olho verdes e cabelos negros, possuía um nariz fino que combinava com seu rosto, a boca rosada e um corpo bem feito; isso que estava na frente de Miguel era tudo, menos seu melhor amigo. O rosto de Lucas estava distorcido, sua boca tremia num tique nervoso e seus olhos estavam vermelhos devido ao choro.

Porém, aquela raiva fez o sangue dele ferver, não conseguia ainda acreditar nessa traição, sentia uma forte dor em seu peito, ao mesmo tempo, a raiva que o fez reagir; quando deu por si, já estava se levantando e partindo para cima de Lucas, acertando um soco em seu nariz.

Lucas cambaleou e largou a arma que disparou sozinha, em seguida, levou a mão ao nariz; quando se deu por si e o que havia acontecido, partiu para cima do amigo entre socos e chutes. Lucas sentiu cheiro de queimado e rolou pelo convés principal, ficando por cima de Miguel.

— Você não vai escapar dessa! — disse Lucas pegando a cabeça de Miguel entre as mãos e batendo diversas vezes contra o piso do barco luxuoso.

Miguel perdeu a consciência na terceira batida e Lucas só parou quando viu o sangue do ex-amigo.

Lucas se levantou, olhou o antigo amigo mais uma vez, pegou sua arma, sua mochila e um bote salva-vidas, posteriormente, jogou-o no mar, e remou até ficar bem longe dali, sem desgrudar os olhos do barco, que ardia em chamas.

Os olhos de Lucas encaravam as chamas com uma certa loucura, enquanto esboçava um sorriso estranho no rosto. Ele havia finalmente se livrado de Miguel. Satisfeito, ele começou a remar para longe, deixando Miguel para morrer sozinho e queimado.

Lucas mal podia esperar para chegar até a costa e correr para os braços de Malú, a única mulher que amou a vida inteira e que foi roubada pelo seu ex-melhor amigo.

Miguel acordou com frio.

Seu coração batia rápido, ele se sentou e começou a respirar com dificuldade; lágrimas começaram a descer pelo seu rosto ao se recordar do sonho que teve. Seria sonho ou lembranças? Logo, entendeu que havia sido isso que aconteceu com ele.

Ele havia caído numa cilada. Aquele maldito dia em que ele confiou em seu melhor amigo, que acabou dando uma rasteira nele. “Não podia ser”, negava para si mesmo. Ele puxou os cabelos, remoendo dentro de si tudo o que aconteceu.

Ele não podia acreditar... Não acreditava que seu melhor amigo, quase irmão, houvesse planejado uma armadilha dessas.

Quanto tempo estaria ali? A julgar pela sua aparência, parecia mais do que alguns meses. Um choro compulsivo se apossou dele, seus ombros sacudiam com violência, ele berrou num grito estridente que arrepiaria qualquer um que pudesse ouvir.

Levantou-se num salto, andou de um lado para o outro, colocando as mãos na cabeça, isso o angustiava e desanimava, ele não conseguia fugir, tentou muitas vezes. As ondas da arrebentação eram fortes e perigosas, nenhuma jangada as ultrapassava. Lembrou-se que em um acesso de loucura, tentou se matar, jogando-se de cima do penhasco que existia ali, mas tudo que conseguiu foi um bocado de ferimentos e algumas costelas quebradas.

Mas por que Lucas fez isso?, pensou Miguel. Mesmo relembrando os motivos dele, Miguel ainda não se conformava, ficava se perguntando a mesma coisa: o porquê Lucas fez aquilo com ele.

Não queria aceitar que seu amigo o havia traído assim. Será que não fora amigo suficiente? Onde será que ele errou na amizade com Lucas?

Lucas, um menino tão meigo e tímido, era incapaz de tamanha atrocidade. Ele conviveu metade de sua infância e parte da vida adulta com ele, em qual momento Lucas se tornou alguém tão invejoso assim?

Miguel achava que Lucas tinha uma boa vida, não tinha razões para ter inveja dele, tudo bem, Lucas não teve bons pais, não teve muito amor, mas tentar matá-lo era demais.

Miguel foi obrigado a deixar tudo e todos para trás, teve sua vida ceifada pelas mãos do melhor amigo, teve seu amor interrompido, sonhos que nunca puderam se realizar... Ele suspirou ao pensar em Malú, a mulher com que ele sonhava todas as noites era, na verdade, alguém que ele muito amava. De fato, era falta dela que o deixava mais triste, ele não se importava com mais nada além dela.

As perguntas sobre o que tinha acontecido rondavam a sua mente. Será que ela havia se casado com Lucas? Tiveram filhos? Uma vida feliz?

Pior que ela nem devia imaginar o que Lucas fez com ele...

Miguel esperava que não, não por Malú, ele queria realmente que ela estivesse feliz, mas esperava que Lucas nunca conseguisse encontrar paz e o amor que ele tanto ansiava.

Miguel colocou mais alguns pedaços de madeira na fogueira e lembrou-se de como foi difícil acendê-la da primeira vez; ele tinha as marcas ainda nas palmas das mãos, ele as olhou e pensou que a cicatriz ficaria para sempre ali, como um adendo para ele nunca mais na vida confiar em ninguém.

— Eu juro que se um dia, se eu sair desse lugar, eu vou atrás de você, Lucas. Eu vou fazer você pagar por tudo que me fez sofrer. Isso não ficará assim...

Miguel encarava a fogueira, os olhos azuis do rapaz tinham um brilho diferente. A vingança é algo perigoso, ela destrói qualquer um, até Miguel.

Rio de Janeiro.

Sete anos, nove meses e vinte e dois dias atrás.

O telefone tocava sem parar, Malú correu para atendê-lo, ela estava abrindo a porta do apartamento quando ele começou a tocar.

— Espere, espere! — dizia para o telefone que já tocava há muito tempo.

Apressada, entrou como um furacão em casa, colocou sua bolsa e as compras em cima do sofá de qualquer jeito e atendeu ao telefone no último toque e sorriu satisfeita por ter conseguido.

— Alô? — falou rápido antes que a pessoa desistisse e desligasse.

— Malú? — a voz soava abafada do outro lado da linha.

— Lucas?! — O sorriso da moça se alargou. — Oi, tudo bem? Como está a viagem? Cadê o Miguel? Quero falar com ele. —  Ela estava feliz em ouvir a voz do amigo, e já estava louca de saudades de ouvir a voz de seu amor.

— Malú... — Lucas soluçava, fingindo.

— Lucas, está me escutando? — disse um pouco mais alto.

— Sim...

— Está tudo bem? Por que está chorando, cadê o Miguel? — Malú começou a tremer só de ouvir aquele tom de voz de Lucas, sentiu-se nervosa, tensa, angustiada, pressentindo que algo havia acontecido.

— Lucas, o que houve? — exigiu saber.

— Sofremos um naufrágio, Malú... O Miguel, ele... ele...

— Não, nem ouse brincar assim comigo, passe para ele, anda! Isso não tem graça! — Malú sentiu uma pontada no coração, começou a chorar, respirava com dificuldade, não queria nem ouvir o que Lucas tinha para falar.

— Não consegui tirar ele a tempo do barco, tudo estava bem, mas, de repente, o fogo começou a tomar conta do barco, Miguel escorregou e bateu a cabeça... Tinha sangue, Malú, muito sangue, ele não acordava, então...

Lucas era bom ator, ele chorava e soluçava de verdade. Malú, do outro lado do telefone, estava parada, sem ação; a dor que sentia não poderia ser descrita, o telefone caiu de sua mão lentamente, ela se curvou e soltou um grito estridente, em seguida, desmaiou.

— Malú? Malú? — ele chamou, mas ela não o respondeu.

Ele ficou ainda na linha por algum tempo, quando resolveu desligar, sentiu-se triste e preocupado com ela, afinal, ela estava sofrendo, mas ele tinha que ter feito aquilo, somente assim ele conseguiria ficar com a mulher que amava; sem Miguel em seu caminho, ele logo conquistaria o amor de Malú e seriam felizes.

Com uma felicidade repentina estampada no rosto, Lucas enxugou suas lágrimas fingidas, levantou-se, foi até o frigobar, pegou uma garrafinha de uísque, colocou no copo e virou de uma vez na boca. Agora, era só uma questão de tempo para que ele e Malú se acertassem e fossem felizes de verdade.

— Em breve, meu amor, em breve...

Dias atuais.

O dia de Miguel foi cheio. Depois de arrumar a grande fogueira em cima do penhasco e as pedras de “S.O.S” na areia da praia, ele resolveu pescar, porém, foi um pouco difícil, os peixes pareciam fugir dele.

— Qual é, vamos lá, venham! — Miguel falava sozinho.

Passou boa parte da tarde tentando pescar algo, até finalmente um peixe cair em sua isca para ele poder se alimentar. Sua barriga a essa altura já estava roncando muito, ele se sentiu grato, assou o peixe e devorou-o em poucos segundos.

Em seguida, foi até a lagoa e pensou em Malú.

Ela adoraria esse lugar.

O resto da tarde passou depressa, e a noite chegava fria e ainda mais solitária.

Miguel se deitou em frente a sua cabana, estava cansado e fadigado, colocou as mãos atrás da cabeça, cruzou as pernas e olhou para as estrelas.

Eram tantas e tão brilhantes. Reconheceu algumas constelações, e isso fez com que se lembrasse do seu primeiro encontro com Malú, seu sorriso se alargou com a lembrança.

—É mesmo? — Ela sorria enquanto Miguel a olhava.

— Sim, é. — Estavam em cima do capô do carro deitados, haviam parado na praia e olhavam o céu sem nuvens, numa deliciosa noite de verão.

— E qual é aquela ali? — Ela apontou para outra constelação.

— É sagitário. — respondeu sem nem pensar.

— Como conhece tão bem as constelações? — Malú perguntou curiosa.

— Meu avô, ele adorava o céu, ele ensinou o meu pai e mais tarde, a mim.

— Que legal, acho o céu tão lindo, ainda mais a noite. — Ela mexia freneticamente em um ursinho que ele havia ganhado em um parque de diversões para ela. Aquela noite para Malú estava mais que perfeita, Miguel era muito atencioso e gentil com ela.

— Sim, realmente é muito bonito mesmo.

Miguel olhava para Malú ao dizer isso, ela desviou os olhos do céu e encarou-o, ela tinha um sorriso doce, olhos brilhantes e para Miguel, ela ficou ainda mais bonita do que já era.

Malú era alta, tinha 1,80, magra com curvas sinuosas, seus cabelos castanhos eram lisos, olhos também castanhos, nariz fino e arrebitado, boca carnuda, a qual Miguel mal podia esperar para beijar.

— Eu acho que seria perfeito se me beijasse agora... — Ela disse num tom baixo devido à vergonha que sentia em pedir um beijo.

Miguel não esperou que a moça pedisse duas vezes, ele se aproximou dela e tocou seus lábios com cuidado, um beijo singelo que foi ganhando força e logo perceberam que o que sentiam era amor.

— Eu acho que te amo. — Ela disse num sussurro, quando parou de beijá-lo.

— Eu também. — disse completamente apaixonado pela moça à sua frente.

Miguel voltou a beijar Malú e desde aquele dia nunca mais se desgrudaram, até o acidente.

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