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Capítulo dois - Sentimentos que ficam

É impossível existir sem te abraçar

No meu corpo, tu reinavas

Fechava os olhos e então te via chegar

Mas tu não estavas.

Dias atuais.

MALÚ acordou naquela manhã com os pensamentos em Miguel, por mais que o tempo passasse, ela não conseguia esquecê-lo. Ela nunca se conformou com a partida dele, algo dentro dela lhe dizia que a história deles ainda não tinha terminado, mas como podia confiar nesse pressentimento quando, na verdade, ele havia morrido? Talvez, isso acontecesse pelo fato deles nunca terem achado o corpo de Miguel, mesmo achando os restos do barco.

Era difícil para ela, pois a saudade castigava seu coração todos os dias. Viveu feliz uma boa parte de sua vida, mas, de repente, a felicidade foi arrancada dela com brutalidade.

Suspirou ao recordar do sonho que teve com o amado. Estavam em uma praia, e nela tinha uma lagoa linda, onde as raízes se entrelaçavam e os pássaros tomavam banho. Os olhos de Malú se encheram d’agua, lembrar-se de Miguel sempre foi doído, ainda mais num sonho que ela julgava real demais.

Andou na ponta dos pés pelo corredor da casa, abriu a porta e olhou um pacotinho pequeno embrulhado no meio das cobertas.

O menino estava esparramado na cama, deitado de barriga para baixo, pendia a cabeça para a direita. Malú sorriu, seu garotinho era parecido com o pai, não só fisicamente, mas também no jeito. Aproximou-se do menino, deu um beijo em sua cabeça e passou a mão nas suas costas.

— Não, mamãe, me deixe dormir mais, por favor! — o garoto falou virando a cabeça.

— Não dá, meu amor, já é hora de acordar, tem aula hoje!

— Eu acho que estou com febre, mamãe, não posso ir para aula.

Malú sorriu, ajeitou-se na cama do filho que logo veio para o seu colo, dando um beijo estalado na face da mãe. O menino a olhou no fundo dos olhos e sorriu banguela. Maicon tinha quase oito anos, cabelos negros e olhos azuis extremamente gentis, como os de Miguel. Malú abraçou forte o filho ao lembrar-se novamente de seu amado, seus olhos se encheram de lágrimas.

— Mamãe, está me sufocando! — falou o menino.

— Desculpe, filho, é que eu não resisto em te apertar. — Malú fez algumas cócegas em Maicon que gargalhava.

— Para, mamãe, para! — Ele foi se levantou e correu para o banheiro para tomar banho.

Malú sorriu, arrumou a cama do filho, jogou algumas roupas no cesto de roupas sujas e foi para a cozinha preparar o café. Fez um suco de laranja com acerola para Maicon e café para ela, e ainda algumas torradas com ovos mexidos. O menino desceu as escadas saltitantes e, feliz, sentou-se à mesa e começou o seu dejejum.

— Maicon, como anda o português, tem estudado, filho? — Malu olhava séria para ele.

— Ih, mãe, o português está de mal comigo, desculpe, eu sei que fui mal no teste, mas é que ele não entra na minha cabeça — disse, balançando a cabeça em negativa.

— Tudo bem, querido, temos que tentar melhorar, o que acha de eu pagar um professor particular para você? — Ela olhou séria, esperando por uma resposta positiva do filho.

— Ah, não, mãe! Isso não, vão rir de mim! — Deixou o garfo ao lado do prato, pois já tinha terminado seu desjejum.

— Se manter segredo, eu não conto! — ela disse, sorrindo para o filho.

— Posso pensar? — rebateu o garoto.

— Seria bom para você, filho, é...

Malú foi interrompida com Lucas entrando na cozinha dela e deixando sua maleta na bancada. Maicon olhou para ele e revirou os olhos.

— Como você entrou aqui, Lucas? — Maicon apontou o dedo acusador para ele.

— Bom dia, Maicon, deixaram a porta aberta. — falou, colocando a mão na cabeça do garoto.

— Não tem nada de bom! Mãe, o que ele faz aqui?

— Não sei, ele vai me contar agora! Enquanto isso, vai escovar os dentes antes de sair. — Malú chamou a atenção do filho.

— Ok.

Malú deu um beijo na testa do filho que saiu correndo pelo corredor e sumiu casa adentro.

Malú ficou tensa com Lucas à sua frente, ele sorria para ela docemente, e não aguentando aquele olhar sobre si, ela se levantou, recolheu depressa a louça e levou-a para pia. Não demorou muito para que ela sentisse uma mão leve pousar em sua cintura e uma respiração quente em seu pescoço.

— Bom dia, Malú! — Lucas disse ao pé do ouvido dela.

— Bom dia, Lucas, pode me soltar, por favor? — Ele deu dois passos para trás e ela se virou. — Não entre na minha casa sem pedir permissão, mesmo que a porta esteja escancarada.

— Quando vai nos dar uma oportunidade? — perguntou, erguendo uma sobrancelha, ignorando totalmente o que ela pediu.

— Já te disse, não estou pronta ainda. — Reuniu todas as forças para não xingá-lo e expulsá-lo de sua casa.

— Quanto mais tempo levará, meu amor? — Ele deu dois passos em direção a Malú, estavam frente a frente, com os olhares intensos um sobre o outro.

— Não sei. Não me chame de amor, não sou seu amor. — Ela disse por fim. Lucas soltou um suspiro.

— Mas eu te amo, vou te amar para sempre.

— Não me ame! Ame outra pessoa, pois de mim não ganhará amor, somente amargura.

— Pois, eu ainda vou te ensinar a me amar.

— Não! Você nunca vai me ensinar isso, já disse isso um milhão de vezes, por que insiste? — Malú olhava no fundo dos olhos de Lucas.

— Você vai, tenho certeza disso! — Lucas se aproximou ainda mais de Malú e roubou-lhe um selinho. Ela, de imediato, afastou a cabeça com o contato e olhou-o assustada, porém, quando ia reclamar, escutou Maicon no andar de baixo cantando uma de suas músicas preferidas. Logo, saiu do domínio de Lucas.

— Vamos? — Maicon disse estranhando a aproximação da mãe com Lucas.

— Vem cá, meu amor. — Ele se aproximou de Malú que se ajoelhou para ficar na mesma altura do filho e arrumou a gola da camisa dele.

Maicon abraçou a mãe com força. Ele a amava mais que tudo, achava ela linda e divertida, mesmo sentindo que, às vezes, ela se entristecia facilmente.

— Vamos, mãe? — ele pediu.

— Sim, vamos, querido... Só vou pegar as chaves do carro.

— Tudo bem, espero a senhora na sala. — Ela deu um beijo na bochecha do garoto.

—Não ganho um beijo também? — perguntou Lucas, cheio de expectativa.

—Lucas, coloque-se em seu lugar! Nunca dei liberdade para essas suas atitudes. Espero que isso não se repita mais!

— Mas eu...

— Você nada, já estou de saída para levar o Maicon na escola e, por favor, não repita isso, não entre na minha casa sem pedir antes. Eu não dou essa liberdade nem para meus pais! — disse convicta.

— Tudo bem, apareço a noite.

— Não venha, nem hoje e nem nunca!  Não quero você aqui! Não entendeu ainda? Lucas, por favor, vá embora!

— Por quê? — perguntou decepcionado.

— Porque eu quero! — Ela estava autoritária.

Ele assentiu e saiu, Malú fechou a porta e dessa vez a trancou, não achava que tinha que trancar a porta, ela tinha ido somente até o carro colocar as coisas dela e de Maicon no carro, só foi deixar um minuto aberta para Lucas aparecer.

Às vezes, Malú se odiava por ter ele tão perto de si. Odiava fingir que tudo estava bem, quando, na realidade, não estava. Balançou a cabeça em negação, pegou as chaves do carro e, em seguida, saiu. Ela precisava trabalhar para espairecer a cabeça.

— Mãe, por que Lucas entra assim na nossa casa? Não gosto dele. — Maicon perguntou entrando no carro e colocando o cinto.

— Por que, filho? Ele é legal, uma boa pessoa... — disse, embora ela não gostasse do Lucas, não queria que Maicon tão pequeno conhecesse esse sentimento.

— Não, mãe, ele não é, já percebeu como ele olha pra gente?

— Como, querido? — perguntou curiosa.

— Com ódio.

Quanto mais Malú tentava não pensar no passado, mas ele vinha a sua mente. Eram tantas coisas que a deixavam sobrecarregada, os sentimentos ultimamente transbordavam dentro de si, estava mais sensível do que nunca, qualquer coisa era motivo para pensar em Miguel. Não que ela não pensasse nele todos os dias, ela sempre pensava, mas antes era apenas durante a noite, agora, durante o dia, vira e mexe lá estava ela pensando no amado e amaldiçoando o dia daquela viagem.

Passou com o crachá e foi direto para sua sala, sentou-se em sua mesa, colocou a cabeça entre as mãos e suspirou tristemente.

— Bom dia, Malú, tudo bem? — perguntou o senhor de meia-idade, colocando um copo de café na frente dela.

— Bom dia, Falcão, tudo sim! — Malú disse levantando a cabeça e pegando o copo de café, sorveu um gole e encostou-se em sua cadeira.

— Não parece, o que houve? — perguntou preocupado.

— Lucas... — resmungou.

— O que ele fez dessa vez?

— Entrou na minha casa sem pedir permissão e ainda por cima me beijou. — disse num tom baixo.

— Espera aí? Como assim te beijou? — falou interessado na história, sentando-se na cadeira em frente da mesa de Malú.

— Me deu um selinho. — disse quase que sem fala, ela estava envergonhada com aquilo.

— Um selinho e você ficou assim? — comentou Falcão.

— Você sabe, Falcão, como eu o repudio, foi nojento! — disse por fim.

— Já disse para você mandar ele embora de sua vida. Como ele entrou na sua casa? Como pode ter tanta repulsa e aceitá-lo em sua vida?

— Deixei a porta aberta, fui colocar a mochila do Maicon no carro, não achei necessário fechá-la.

— Vai mesmo deixar seu filho à mercê de uma pessoa como ele? Que tipo de mãe você é? — questionou Falcão num tom calmo e contido. Malú estava tensa na cadeira com o rumo da conversa.

— Ei! Eu sou uma boa mãe! — falou chateada.

— Pois não me parece, deixa seu filho que nem oito anos tem perto de um cara como ele, é lamentável...

— Não diga assim...

— Eu só digo verdades.

— Mas não leva em conta, fiquei tendo apenas uma vida social com ele, ele não faz parte da minha vida. Sou próxima a ele somente para poder investigá-lo.

— Só para investigá-lo? Tem certeza?  O que sente pelo Lucas? — Falcão tomou um gole de café e ajeitou-se na cadeira. — Veja bem, se tudo que suspeitamos for realmente verdade, ele é um perigo para você e Maicon, não se engane. Até quando vai fazer isso? Acorde, Malú! Não é somente a sua vida que está em risco, quer realmente pôr a do seu filho também? Ele não viveu nada, e já teve uma perda lamentável.

— Ele não irá fazer mal ao meu filho, ele não seria capaz...

— Não seria? — ele a interrompeu. — Tem certeza disso? Não se esqueça de Miguel... Se realmente foi um acidente, por que ele não te trouxe o corpo? Já disse isso para você, eu suspeito disso, não confio nele, o acidente não foi um acidente... Se distancie dele, você não precisa ter ele perto, já temos indícios das coisas erradas que ele faz, logo teremos provas concretas.

Malú se sentiu tensa, e seus olhos lagrimejaram.

— Desculpe, Falcão, agradeço o café, mas está na hora de você ir.

— Não o mantenha perto de você e do seu filho, tenho por ti um grande apreço, você é como se fosse minha filha, te alerto isso por ser seu amigo e da sua família, você já sofreu demais. Lembre-se, Malú, um psicopata se esconde atrás de faces. Reflita, peço apenas isso.

Ele não esperou uma resposta de Malú, somente saiu da sala, deixando-a sozinha para pensar sobre tudo.

Malú tomou outro gole do seu café, e pensou bem nas palavras de Falcão, porém ela sabia o que fazia, sabia que Lucas era apaixonado por ela e que, em todos esses anos, tentou conquistá-la, sem muito sucesso, pois o seu coração já tinha dono, assim como a sua alma.

Levantou-se, foi até seu armário e pegou uma pasta. Começou a folheá-la, seus olhos percorriam todas as informações, todas as fotos e, mais do que nunca, ela tinha a certeza de que precisava desvendar tudo, pois somente assim ela conseguiria ter paz, já que a felicidade dela havia morrido junto com Miguel. Com a pasta em mãos, tirou tudo que havia dentro dela e depositou em sua mesa.

Os olhos de Malú encaravam todas as páginas do relatório, ela prestava atenção em cada palavra que lia. Era impossível em sua visão ninguém ter descoberto nada.

Pegou a foto do iate de Lucas que se chamava “Charlie” em homenagem a sua irmã mais nova. Percorreu os olhos em cada detalhe, embora o iate estivesse muito castigado por ter ficado à deriva por muito tempo, ela ainda reconhecia os detalhes luxuosos.

Passou os dedos pela foto e foi, então, que ela observou um pequeno furo na lateral, pegou uma lupa e, com o coração aos pulos, constatou que o buraco que via na fotografia era um buraco de bala, parecia ser calibre 38. Rapidamente, ela voltou a ler os relatórios, não era possível que o iate tenha passado por toda aquela perícia e eles não terem reconhecido um buraco de um provável projétil. Juntou os papéis e foi até a sala de Falcão, o velho amigo poderia ajudá-la a entender aquilo.

Ela deu três batidas e não esperou um convite, entrou e apontou a foto para ele, entregando-lhe a lupa.  Sem entender, Falcão pegou a foto e observou-a atentamente, quando viu o que Malú queria-lhe mostrar.

— Isso é...

— Sim, um buraco de bala. — falou, interrompendo-o. — Como você não viu isso quando fez a perícia no iate? — perguntou confusa.

— Quando cheguei lá já haviam feito a perícia... Sabe o que isso significa, Malú?

— Sim, eu sei. Que a nossa teoria de não ter sido um acidente está cada dia mais perto de ser verdade.

— Vamos pegá-lo, Malú, ele não ficara muito mais tempo livre.

Malú fungou e caiu num choro intenso.

O dia demorou a passar, Malú não saiu de sua sala, pois estava pesquisando mais a fundo todos os relatórios. No final do expediente, sua mente estava fervilhando, a cabeça doía assim como os ombros, estava tensa.

Arrumou a bagunça de sua mesa, colocou a pasta dentro dos arquivos e saiu dali. Durante o caminho para casa de sua mãe, Malú relembrou de como foi difícil para ela terminar os estudos para polícia federal. A morte do Miguel, a descoberta da gravidez, tudo junto a fez quase enlouquecer. No final, Falcão e sua família a apoiaram, foi daí e para seu filho que tirou forças para seguir em frente.

— Mamãe! — ela ouviu um grito estridente do seu filho correndo pelo jardim para abraçá-la.

— Oi, meu amor, tudo bem? Como foi seu dia? — falou, abraçando fortemente Maicon.

— Foi legal, fiz bolo de chocolate com a vovó.

— Sério?!

— Sim... Vem, vamos comer um pedaço.

Ela sorriu, Maicon era tão parecido com Miguel, até no jeito doce de tratá-la.

Naquela noite, Malú tinha os pensamentos longe. Aquela saudade sufocava seu peito, e a deixava constantemente triste.

Anos atrás

Malú tinha o olhar perdido, olheiras profundas e olhos vermelhos.

Naquela tarde, depois de quase um mês de busca, fizeram o enterro de Miguel. Caixão fechado e sem corpo para se despedirem, aquilo foi o pior de tudo. Por mais que ela tentasse acreditar que tinha acabado, ela não conseguia, não sem ver o corpo do amado inerte à sua frente.

A moça passou dias sem sair do quarto, afundou-se em uma grande depressão, nada e ninguém conseguiu fazer com que ela saísse daquele estado. Lucas tentou muitas vezes falar com ela, mas ela nem o deixava entrar, para ela, era inconcebível ele não ter conseguido resgatar o corpo, afinal, ele era grande e forte.

— Filha, vou até o mercado, quer algo? — Sua mãe entrou no quarto e abriu as cortinas.

— Não. — Malú disse seca e sem vontade.

— Levante, Malú, tome um banho, está fedendo! — falou autoritária.

— Me deixe em paz, eu não quero nada!

— Olha, eu cansei, eu sei que Miguel era importante para você, mas ele morreu, levante-se e cuide-se, Falcão veio aqui hoje, queria saber se pode confirmar a data de suas provas.

Malú não a respondeu, em vez disso, levantou-se, foi até o banheiro, fechou a porta com força e sentou-se na borda da banheira.

— Por que eles não me deixam em paz? Por quê? Será que eles não entendem que o Miguel é o grande amor da minha vida? E que sem ele eu não sou nada, que minha vida não tem sentido? Que em sem ele eu não tenho motivos para seguir em frente? — perguntou-se, abrindo a torneira da banheira. Se não a deixassem em paz ela daria um jeito para que ficasse. Ela se ajoelhou de frente para o armário do banheiro para procurar uma gilete, seria fácil para ela ficar em paz, era somente cortar os pulsos e...

De repente, ela parou, olhou o objeto à sua frente e deu um pulo. Em seguida, foi até o quarto, sua mãe estava sentada na beirada da cama, observando-a. Ela pegou um calendário e folheou.

— Não pode ser! — disse, estava incrédula. — Não, não pode ser!

— O que não pode ser, filha?

Malú pegou sua bolsa e saiu, ela andava rápido torcendo os dedos, estava nervosa e aflita. Entrou na farmácia, mal cumprimentou um dos meninos que sempre a atendia, pediu dois testes de gravidez e correu para a casa.

Mal chegou e sua mãe já foi dando um sermão, Malú entrou no banheiro fechou a porta, e fez todos os procedimentos pedidos no exame. Minutos depois, quando saiu do banheiro, tinha os olhos marejados e um sorriso nos lábios.

— O que foi, Malú? — sua mãe perguntou preocupada.

— Eu estou grávida! — disse sorridente, colocando as mãos no ventre.

Sua mãe a abraçou e juntas caíram num choro intenso. Malú poderia sentir daquele dia em diante um pouco mais de paz, ela não tinha o amado junto de si, mas tinha uma sementinha dele que ela amaria e cuidaria com todo amor e força do mundo.

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