2. O Forasteiro

Zya finalmente chegara naquele maldito fim de mundo. Talvez ali teria sossego e, quem sabe, até recomeçasse a vida, mudasse de nome e iniciasse uma criação de plantas carnívoras, coisa que ele amava. 

Ele andava pela rua comprida e muito quente com o sol fritando-lhe a cabeça. Tinha em mãos um papel pequeno e já bastante amassado que continha um endereço de um lugar onde ele poderia alugar um quarto por um preço barato. Zya tinha uma quantia relativamente pouca de dinheiro que usaria para se manter até achar algo em que pudesse trabalhar – embora não achasse que conseguiria grande coisa naquela cidade em especial. Nas cidades vizinhas, Zya vira algumas fábricas e coisas do tipo. Um lugar daqueles sempre precisava de pessoas para trabalhar e aceitavam qualquer um, contanto que trabalhasse direito. 

Zya começava a ficar nervoso com o calor insuportável e o fato de não chegar nunca ao endereço anotado no papel. Ele levava a mala pendurada no ombro direito e tentava se controlar para não puxar as mangas da blusa, expondo a pele quase cinza. Sem achar o maldito endereço, entrou em uma sorveteria para tomar algo e descansar daquele sol. 

A sorveteria era bem acolhedora, composta de cores quentes. Havia um balcão comprido no fundo com alguns banquinhos giratórios vermelhos e, abaixo das janelas, mesas brancas e redondas com cadeiras dobráveis de madeira escura. O chão era como um enorme tabuleiro de xadrez branco e vermelho, lustroso. Os quatro lustres tinham o formato de taças compridas de sorvete viradas para baixo com um ventilador de teto entre eles. Zya tentava adivinhar se a ideia daquele lugar era ser vintage ou era apenas velho mesmo, porém bem cuidado. Quando entrou ali, um sino na porta indicou que alguém chegava e uma mulher loira de pele queimada pelo sol saiu de uma porta atrás do balcão, sorrindo para ele ao atendê-lo.

Ela usava um vestido amarelo e de barra na altura das canelas com botões na parte superior, de mangas curtas e nenhum decote, abotoado até o pescoço. Por cima da gola ela usava um crucifixo dourado um tanto grande. Zya se perguntava como ela conseguia sobreviver àquele calor vestida daquele jeito. 

— Olá! — Disse ela, feliz.

— Oi, eu estou procurando um lugar. Este aqui.

Zya se aproximou do balcão e estendeu o papel para ela, que leu devagar mexendo a boca como se pronunciasse as palavras, sem som. Zya percebeu que ela deveria ser pouco alfabetizada pela extrema demora em ler o endereço. A mulher ergueu os cantos da boca em desgosto, devolvendo o papel à Zya. 

— Era a casa dos Conrad, um casal de idosos. Faleceram há um ano.

Zya sentiu o calor incandescer o interior de seu corpo, fazendo-o suar frio. As mãos tremiam e ele teve de escondê-las atrás dele para que a mulher não as visse. Forçando um sorriso, ele sentou em um dos banquinhos giratórios. 

— E sabe se tem algum lugar aqui onde eu possa ficar? — Perguntou Zya entre dentes, ainda sorrindo forçadamente.

— Olha, um lugar como o que os Conrad ofereciam não tem, mas eu tenho um celeiro lá na minha casa que tem um quarto no alto. Era para que alguém ficasse lá e olhasse os cavalos, mas eu já não tenho cavalos faz uns bons anos, então... E é bem limpo, não tem feno espalhado nem nada disso. 

Aquela mulher falava de um jeito bem simples, como se não fosse conhecedora de muitas palavras. Os olhos dela brilhavam inocentes, sem ver em Zya um marginal como faziam muitas pessoas quando cruzavam com ele; mudavam de calçada quando o viam vindo, seguravam as bolsas com mais vontade e guardavam celulares. 

Talvez Sunfalls não fosse um lugar tão ruim.

— E quanto está pedindo? 

— Pedindo pelo quê?

— Quanto quer para alugar o celeiro para mim? — Perguntou Zya, cruzando as mãos em cima do balcão. 

— Eu... Bom, posso cobrar pouquinho, afinal você não tem emprego ainda, tem?

— Não, vim de muito longe. Cheguei faz meia hora, mais ou menos. 

— Oh, sim. Então não pedirei muito. — Sorriu ela. 

— Está bem. E a senhora é...? 

— Sou a dona daqui, da sorveteria.

— Eu quis dizer seu nome. — Esclareceu Zya, tentado a rir. 

— Ah, claro. Que resposta boba a minha. Sou Jenna Newton. 

Jenna estendeu a mão para Zya, que hesitou antes de apertá-la delicada e rapidamente. Ele recolheu a mão e escondeu-as debaixo do balcão novamente, fora da vista dela.

— Eu sou Zya Gaesh. 

— Que nome diferente. Você vem de outro país? 

Zya abriu a boca para responder quando escutou o sino da porta tocar. Ele olhou por sobre o ombro e viu entrar um menino de cabelos azuis e brincos nas orelhas, seguido por uma menina pequenina de longos cabelos claros e expressivos olhos azuis. Ela sorria para o menino, esticando os lábios cheios e rosados. O rosto dela tinha ângulos delicados e a pele era quase tão branca quanto à de Zya, que ainda a encarava. A aparência dela o doía profundamente, cutucando coisas em seu passado. 

— Lou! Venha aqui conhecer nosso novo inquilino do celeiro. — Chamou Jenna, balançando uma das mãos no ar, ansiosa. 

A menina apagou o sorriso e abriu mais ainda os olhos, encarando Zya com interesse. Provavelmente ela estava reparando nos cabelos dele ou nos olhos escurecidos com maquiagem definitiva preta. Zya sentia o peso do olhar dela, pulando de detalhe em detalhe nele, que listou mentalmente o que as pessoas mais comentavam; cabelos com dreads pretos de lã, pele semi cinza e roupas escuras demais, incluindo o estranho hábito de usar uma blusa de mangas compridas em uma cidade que parecia ficar próxima à um dos portões do inferno tamanho era o calor ali. Seu rosto tinha linhas duras e ângulos rígidos, sobrancelhas naturalmente arqueadas, muito pretas e bem desenhadas emolduravam olhos heterocromáticos, um prateado e outro verde limão. Eles tinham o formato dos olhos de um gato e seu cenho estava ligeiramente franzido. 

A menina – Lou – se aproximou e sentou dois bancos de distante dele, sorrindo para Jenna. 

— Zya, esta é a Louisa, minha filha. Ela pode levar você para ver o celeiro. Hoje eu fecharei a sorveteria mais tarde. 

— Se não for incômodo, eu agradeço. — Respondeu Zya. 

Louisa ainda olhava com fascínio para Zya, tão intensamente que ele se pegou inclinando-se para ela muito devagar. Zya endireitou-se e desviou seus olhos para o balcão.

— Ela é muito parecida com você, Jenna. 

— Obrigada. Você é muito gentil, Zya. — Respondeu Jenna, docemente. 

Zya pedira uma pequena taça de sorvete de menta e uma garrafinha de água. A todo momento ele sentia Louisa encarando-o com o menino dos cabelos azuis ao lado dela. Talvez fossem um casal, pelo modo como se comportavam um com o outro. Zya a ouvira chamá-lo de Chris, o que o poupou de perguntar. 

Afinal, não iria perguntar nada a ele. 

Zya não o conhecia, mas já não gostou dele logo de cara. Não sabia o motivo; algo o dizia que o tal Chris iria ser um peso para ele no futuro. 

— E então, Zya, você parece ser muito novo. Vai se matricular na escola? — Indagou Jenna.

— Não, não estudo mais. — Respondeu ele, focado em seu sorvete verde de menta. 

— Ah, entendi. E seus pais?

— Não tenho pais, Jenna. Sou sozinho. 

Zya ergueu a cabeça e sorriu para ela, sem realmente querer sorrir. Odiava que perguntassem sobre sua vida e sabia que naquela cidade isso poderia vir a acontecer com frequência. 

— Sinto muito... 

— Não precisa sentir. Eu não sinto, pois não os conheci. 

— Então como você viveu até agora? 

Zya se surpreendeu com a pergunta de Louisa, pois ela não falara com ele desde que entrou ali. Olhando-a pelo canto dos olhos, Zya os semicerrou. 

— Não é educado ficar fazendo esse tipo de perguntas para quem acabou de chegar, Lou. — Repreendeu-a Jenna. 

Zya agradeceu aos céus pela intervenção de Jenna, do contrário teria de responder algo que pudesse parecer rude. 

— Não tem problema. É só que meu passado é pessoal demais, só isso. 

— Desculpe, eu não quis ser enxerida. — Disse Lou, desculpando-se.

— Está tudo bem. — Respondeu Zya.

Chris os encarava, certamente enciumado. E Zya controlou-se para não se deliciar com aquele ciúme dele, afinal estava na cidade havia sequer uma hora e não poderia causar uma briga. Mas certamente Louisa era demasiado bonita para Chris, que não tinha nada a oferecer além de um cabelo colorido. Chris colocou o braço nos ombros de Louisa, dando a entender que ele deveria ficar longe. Zya sorriu levemente e desviou os olhos. 

Zya adorava uma boa briga por uma dama. 

— Caso queira, posso perguntar ao meu pai se tem alguma vaga de emprego na metalúrgica onde ele trabalha. — Disse Chris, evitando olhar Zya.

— Seria ótimo. Não tenho como retribuir a vocês por isso. 

— Zya, as pessoas daqui são... como posso dizer, são um pouco fechadas para visitantes. Não será todo mundo que o tratará com gentileza. — Disse Jenna, com uma expressão de pesar no rosto.

— Eu já esperava por isso. Mas só de você ter sido educada e me cedido o celeiro, já sou grato. Não preciso que a cidade inteira seja como você, Jenna. Obrigado pela ajuda, mesmo.

Zya tirou a carteira do bolso da calça, fazendo menção de pagar Jenna. Ela ergueu as mãos, agitando-as no ar.

— Não precisa pagar! Por conta da casa hoje. — Disse ela, sorridente. 

Ele permaneceu com a carteira em mãos por alguns segundos, antes de guardá-la lentamente, um pouco sem graça. 

— Lou, leve-o para olhar o celeiro e ver se é de seu agrado. — Pediu Jenna a Louisa. 

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