Zya finalmente chegara naquele maldito fim de mundo. Talvez ali teria sossego e, quem sabe, até recomeçasse a vida, mudasse de nome e iniciasse uma criação de plantas carnívoras, coisa que ele amava.
Ele andava pela rua comprida e muito quente com o sol fritando-lhe a cabeça. Tinha em mãos um papel pequeno e já bastante amassado que continha um endereço de um lugar onde ele poderia alugar um quarto por um preço barato. Zya tinha uma quantia relativamente pouca de dinheiro que usaria para se manter até achar algo em que pudesse trabalhar – embora não achasse que conseguiria grande coisa naquela cidade em especial. Nas cidades vizinhas, Zya vira algumas fábricas e coisas do tipo. Um lugar daqueles sempre precisava de pessoas para trabalhar e aceitavam qualquer um, contanto que trabalhasse direito. Zya começava a ficar nervoso com o calor insuportável e o fato de não chegar nunca ao endereço anotado no papel. Ele levava a mala pendurada no ombro direito e tentava se controlar para não puxar as mangas da blusa, expondo a pele quase cinza. Sem achar o maldito endereço, entrou em uma sorveteria para tomar algo e descansar daquele sol. A sorveteria era bem acolhedora, composta de cores quentes. Havia um balcão comprido no fundo com alguns banquinhos giratórios vermelhos e, abaixo das janelas, mesas brancas e redondas com cadeiras dobráveis de madeira escura. O chão era como um enorme tabuleiro de xadrez branco e vermelho, lustroso. Os quatro lustres tinham o formato de taças compridas de sorvete viradas para baixo com um ventilador de teto entre eles. Zya tentava adivinhar se a ideia daquele lugar era ser vintage ou era apenas velho mesmo, porém bem cuidado. Quando entrou ali, um sino na porta indicou que alguém chegava e uma mulher loira de pele queimada pelo sol saiu de uma porta atrás do balcão, sorrindo para ele ao atendê-lo.Ela usava um vestido amarelo e de barra na altura das canelas com botões na parte superior, de mangas curtas e nenhum decote, abotoado até o pescoço. Por cima da gola ela usava um crucifixo dourado um tanto grande. Zya se perguntava como ela conseguia sobreviver àquele calor vestida daquele jeito. — Olá! — Disse ela, feliz.— Oi, eu estou procurando um lugar. Este aqui.Zya se aproximou do balcão e estendeu o papel para ela, que leu devagar mexendo a boca como se pronunciasse as palavras, sem som. Zya percebeu que ela deveria ser pouco alfabetizada pela extrema demora em ler o endereço. A mulher ergueu os cantos da boca em desgosto, devolvendo o papel à Zya. — Era a casa dos Conrad, um casal de idosos. Faleceram há um ano.Zya sentiu o calor incandescer o interior de seu corpo, fazendo-o suar frio. As mãos tremiam e ele teve de escondê-las atrás dele para que a mulher não as visse. Forçando um sorriso, ele sentou em um dos banquinhos giratórios. — E sabe se tem algum lugar aqui onde eu possa ficar? — Perguntou Zya entre dentes, ainda sorrindo forçadamente.— Olha, um lugar como o que os Conrad ofereciam não tem, mas eu tenho um celeiro lá na minha casa que tem um quarto no alto. Era para que alguém ficasse lá e olhasse os cavalos, mas eu já não tenho cavalos faz uns bons anos, então... E é bem limpo, não tem feno espalhado nem nada disso. Aquela mulher falava de um jeito bem simples, como se não fosse conhecedora de muitas palavras. Os olhos dela brilhavam inocentes, sem ver em Zya um marginal como faziam muitas pessoas quando cruzavam com ele; mudavam de calçada quando o viam vindo, seguravam as bolsas com mais vontade e guardavam celulares. Talvez Sunfalls não fosse um lugar tão ruim.— E quanto está pedindo? — Pedindo pelo quê?— Quanto quer para alugar o celeiro para mim? — Perguntou Zya, cruzando as mãos em cima do balcão. — Eu... Bom, posso cobrar pouquinho, afinal você não tem emprego ainda, tem?— Não, vim de muito longe. Cheguei faz meia hora, mais ou menos. — Oh, sim. Então não pedirei muito. — Sorriu ela. — Está bem. E a senhora é...? — Sou a dona daqui, da sorveteria.— Eu quis dizer seu nome. — Esclareceu Zya, tentado a rir. — Ah, claro. Que resposta boba a minha. Sou Jenna Newton. Jenna estendeu a mão para Zya, que hesitou antes de apertá-la delicada e rapidamente. Ele recolheu a mão e escondeu-as debaixo do balcão novamente, fora da vista dela.— Eu sou Zya Gaesh. — Que nome diferente. Você vem de outro país? Zya abriu a boca para responder quando escutou o sino da porta tocar. Ele olhou por sobre o ombro e viu entrar um menino de cabelos azuis e brincos nas orelhas, seguido por uma menina pequenina de longos cabelos claros e expressivos olhos azuis. Ela sorria para o menino, esticando os lábios cheios e rosados. O rosto dela tinha ângulos delicados e a pele era quase tão branca quanto à de Zya, que ainda a encarava. A aparência dela o doía profundamente, cutucando coisas em seu passado. — Lou! Venha aqui conhecer nosso novo inquilino do celeiro. — Chamou Jenna, balançando uma das mãos no ar, ansiosa. A menina apagou o sorriso e abriu mais ainda os olhos, encarando Zya com interesse. Provavelmente ela estava reparando nos cabelos dele ou nos olhos escurecidos com maquiagem definitiva preta. Zya sentia o peso do olhar dela, pulando de detalhe em detalhe nele, que listou mentalmente o que as pessoas mais comentavam; cabelos com dreads pretos de lã, pele semi cinza e roupas escuras demais, incluindo o estranho hábito de usar uma blusa de mangas compridas em uma cidade que parecia ficar próxima à um dos portões do inferno tamanho era o calor ali. Seu rosto tinha linhas duras e ângulos rígidos, sobrancelhas naturalmente arqueadas, muito pretas e bem desenhadas emolduravam olhos heterocromáticos, um prateado e outro verde limão. Eles tinham o formato dos olhos de um gato e seu cenho estava ligeiramente franzido. A menina – Lou – se aproximou e sentou dois bancos de distante dele, sorrindo para Jenna. — Zya, esta é a Louisa, minha filha. Ela pode levar você para ver o celeiro. Hoje eu fecharei a sorveteria mais tarde. — Se não for incômodo, eu agradeço. — Respondeu Zya. Louisa ainda olhava com fascínio para Zya, tão intensamente que ele se pegou inclinando-se para ela muito devagar. Zya endireitou-se e desviou seus olhos para o balcão.— Ela é muito parecida com você, Jenna. — Obrigada. Você é muito gentil, Zya. — Respondeu Jenna, docemente. Zya pedira uma pequena taça de sorvete de menta e uma garrafinha de água. A todo momento ele sentia Louisa encarando-o com o menino dos cabelos azuis ao lado dela. Talvez fossem um casal, pelo modo como se comportavam um com o outro. Zya a ouvira chamá-lo de Chris, o que o poupou de perguntar. Afinal, não iria perguntar nada a ele. Zya não o conhecia, mas já não gostou dele logo de cara. Não sabia o motivo; algo o dizia que o tal Chris iria ser um peso para ele no futuro. — E então, Zya, você parece ser muito novo. Vai se matricular na escola? — Indagou Jenna.— Não, não estudo mais. — Respondeu ele, focado em seu sorvete verde de menta. — Ah, entendi. E seus pais?— Não tenho pais, Jenna. Sou sozinho. Zya ergueu a cabeça e sorriu para ela, sem realmente querer sorrir. Odiava que perguntassem sobre sua vida e sabia que naquela cidade isso poderia vir a acontecer com frequência. — Sinto muito... — Não precisa sentir. Eu não sinto, pois não os conheci. — Então como você viveu até agora? Zya se surpreendeu com a pergunta de Louisa, pois ela não falara com ele desde que entrou ali. Olhando-a pelo canto dos olhos, Zya os semicerrou. — Não é educado ficar fazendo esse tipo de perguntas para quem acabou de chegar, Lou. — Repreendeu-a Jenna. Zya agradeceu aos céus pela intervenção de Jenna, do contrário teria de responder algo que pudesse parecer rude. — Não tem problema. É só que meu passado é pessoal demais, só isso. — Desculpe, eu não quis ser enxerida. — Disse Lou, desculpando-se.— Está tudo bem. — Respondeu Zya.Chris os encarava, certamente enciumado. E Zya controlou-se para não se deliciar com aquele ciúme dele, afinal estava na cidade havia sequer uma hora e não poderia causar uma briga. Mas certamente Louisa era demasiado bonita para Chris, que não tinha nada a oferecer além de um cabelo colorido. Chris colocou o braço nos ombros de Louisa, dando a entender que ele deveria ficar longe. Zya sorriu levemente e desviou os olhos. Zya adorava uma boa briga por uma dama. — Caso queira, posso perguntar ao meu pai se tem alguma vaga de emprego na metalúrgica onde ele trabalha. — Disse Chris, evitando olhar Zya.— Seria ótimo. Não tenho como retribuir a vocês por isso. — Zya, as pessoas daqui são... como posso dizer, são um pouco fechadas para visitantes. Não será todo mundo que o tratará com gentileza. — Disse Jenna, com uma expressão de pesar no rosto.— Eu já esperava por isso. Mas só de você ter sido educada e me cedido o celeiro, já sou grato. Não preciso que a cidade inteira seja como você, Jenna. Obrigado pela ajuda, mesmo.Zya tirou a carteira do bolso da calça, fazendo menção de pagar Jenna. Ela ergueu as mãos, agitando-as no ar.— Não precisa pagar! Por conta da casa hoje. — Disse ela, sorridente. Ele permaneceu com a carteira em mãos por alguns segundos, antes de guardá-la lentamente, um pouco sem graça. — Lou, leve-o para olhar o celeiro e ver se é de seu agrado. — Pediu Jenna a Louisa.Louisa andava ao lado de Chris, entrelaçando sua pequena mão na dele enquanto Zya andava um pouco atrás. A todo o momento, Zya via Lou olhando-o de soslaio, intrigada. Ele sentia o sol rascante fervendo a cidade e sabia que mais tarde iria se arrepender de ter andado tanto debaixo do sol.Era estranho não ver quase ninguém nas ruas e ele se deu conta de que ainda era cedo, pouco mais de onze horas da manhã e todos estavam na escola ou trabalho, sem contar que a cidade já não deveria ter muitos habitantes.Os três andavam calados e Zya podia sentir a tensão neles. Jenna tinha razão; fechados demais para forasteiros, até mesmo eles dois que deveriam ter uma idade próxima à de Zya e que ele pensou serem mais receptivos.— O que costumam fazer aqui? — Perguntou Zya, tentando puxar conversa.— Bom, não tem nada para fazer em Sunfalls, na verdade. Mas fazemos o que podemos para não morrer de tédio. — Respondeu Louisa, sorrindo.A voz dela le
Henrik ouvia Chris falar desde que chegaram da escola. Já passava das quatro da tarde e ele não parava, ainda falando do cara novo na cidade. Henrik estava melhor da insolação que o acometera após horas jogando lacrosse debaixo de um sol cruel. Seu rosto já estava menos vermelho, pois ficou o dia todo passando cremes à base de aloe vera.Chris estava sentado à sua frente na bancada da cozinha com uma incrível cara de louco. Henrik desviou os olhos dele e observou seu reflexo na tela apagada de seu celular; cansado, vermelho e dolorido, com bolsas abaixo dos olhos vermelhos. Os cabelos claros como os de Louisa estavam secos e feios por causa do maldito sol e sua boca cheia estava queimada.— Olha, cara, que paranoia toda é essa? É só um garoto novo na cidade, nada demais. Ele não vai tirar a Lou de você. — Disse Henrik, cansado.— Você não está entendendo. Ele disse que matou um cara!— E você acreditou? Ele foi sarcástico com você, Chris. Se
Genesis estava ajoelhado em frente ao altar cristão no quarto de sua mãe havia horas, já sem saber o que estava rezando. Seus joelhos estavam dormentes e os olhos pesavam. Era noite, quase hora do jantar e Aiden, ao seu lado, ainda tinha os olhos fechados. Genesis olhou seu reflexo no espelho atrás da grande cruz de madeira; olheiras terríveis, olhos vermelhos de sono – pois não dormia fazia dias por conta da “maratona da fé” imposta por sua mãe, Samira – cabelos pretos bagunçados e feições carrancudas de cansaço. Ele baixou a cabeça e olhou de rabo de olho para o primo, percebendo que ele não estava rezando, mas dormindo. Genesis riu baixinho, pois Aiden sempre dava um jeito de ser o idiota da casa.Ou talvez o mais esperto.Ele ouviu Samira subindo as escadas, cantarolando. Genesis cutucou Aiden, que não acordava.— Aiden! — Sussurrou Genesis.Samira girou a maçaneta devagar quando Genesis deu uma cotovelada bruta em Aiden, que acord
Chris levava Louisa para sua casa após as aulas, passando da uma hora da tarde. De mãos entrelaçadas, eles andavam pela rua onde Chris morava. Aquele fora o último dia de aula e então estavam oficialmente de férias. Lou saltitava ao lado dele, usando o vestido que ele dera de presente para ela havia alguns meses. O vestido era preto de alças finas, com rendas na saia. Era simples e não tinha muitos adornos, mas Lou o adorou tanto que Chris sentiu que aquele fora o melhor presente que poderia ter dado a ela. Louisa gostava de usá-lo com seu par de all star vermelhos, pois o contraste de cores do vestido e dos tênis era lindo aos olhos dela. Seus cabelos estavam presos em uma trança frouxa posta por sobre o ombro direito.— Meu pai não irá gostar nada de saber que estou indo para a sua casa, sozinha com você. — Comentou Lou, sorrindo um pouco.— Não vou roubar sua virtude nem nada do tipo, só estou te levando lá para ter um tempo com você. De preferência sem o Henrik
Zya caminhava sem pressa pela cidade, procurando conhecê-la. Já era noite e ele voltava para o celeiro, cansado. A noite estava fresca e não havia ninguém por perto, então Zya arriscou tirar a blusa de mangas compridas, vestindo apenas a regata preta que usava por baixo dela. Zya soltou os dreadlocks, deixando-os estendidos ao longo das costas e jogados de lado, de modo que um lado de sua cabeça ficasse livre deles, com uma parte raspada à mostra onde uma sombra de cabelos pretos aparecia. Zya se cobrou mentalmente sobre comprar uma lâmina de barbear no dia seguinte para dar fim ao cabelo que começava a crescer.Caminhando tranquilamente pela cidade, que deveria ter mais ou menos umas dez ruas, Zya descobrira que só as principais eram asfaltadas; todas as outras eram de terra, inclusive a rua de seu novo endereço.Ele repassava mentalmente os planos para sua nova vida naquela cidade enquanto andava: no dia seguinte, iria ao lugar onde o pai do Chris trabalhav
Louisa mantinha a cabeça deitada na cama, ao lado de Chris. Estava sentada naquela cadeira desconfortável o dia inteiro, tendo se levantado apenas para ligar para sua mãe e contar o que aconteceu. Jenna dissera que esperaria Saul chegar em casa e então iriam vê-los, após avisar Marco.Chris não corria perigo, mas ainda não acordara. Louisa não podia contar a verdade nem por um decreto, e teve de inventar que Chris havia entrado em contato com um fio grosso cortado na estrada. Sem maiores detalhes, ela se fechou para a equipe médica, que cuidou de Chris o melhor que puderam com tão poucas informações. Ele estava sedado e tinha curativos por todo seu peito. Chris ressonava tranquilo, deliciosamente alheio à tudo. Louisa desejou poder estar sedada também.Sua cabeça explodia com tantas especulações, perguntas e tudo o mais relacionado ao que acontecera mais cedo. Como era possível que ela, Louisa Newton, a menina mais normal da cidade mais monótona da Terra, tiv
Saul preparava, na mesa da cozinha, o que falaria naquele domingo na igreja. Anotava algumas ideias em um bloco de papel fino com pautas pretas enquanto lia algumas passagens bíblicas. Saul ouvia Jenna assistir TV na sala, alguma novela melosa a qual ele não tinha o mínimo interesse. Ele não conseguia se concentrar no que estava fazendo, pois tinha a cabeça cheia de outras coisas, como Louisa e a quase morte de seu namorado, o inquilino novo e Samira. Erguendo os olhos para o relógio da cozinha, Saul viu que era tarde, mas sabia que àquela hora alguns garotos treinavam lacrosse na escola, pois de noite o clima ficava mais fresco, facilitando o jogo.Fechou a Bíblia e descansou a caneta em cima do bloco de papel, levantando-se da cadeira. Apagou a luz ao sair da cozinha e parou aos pés da escada, observando Jenna sentada ao sofá sorrindo sozinha para a televisão, totalmente entretida na tal novela. Os cabelos claros dela estavam presos em um coque simples e desleixado e e
Fazia quase cinco dias inteiros desde que Zya chegara a Sunfalls. Muitas coisas haviam acontecido naquele pequeno tempo, como Zya ter conseguido um emprego na mesma fábrica de Marco, onde trabalharia com o tratamento e produção de metais. Não era um trabalho muito bom, e ele não ganharia muito bem, mas já era algum progresso. Zya não tinha a menor experiência com metais, mas era isso ou não sabia o que mais poderia fazer. Quase não tinham oportunidades em Sunfalls, e metade da população de lá ia às cidades vizinhas trabalhar.No dia anterior, Zya fora ao mercado para abastecer sua pequena casa. Comprou comida, itens de higiene e de limpeza. Já havia arrumado suas coisas no guarda-roupa e não tinha mais afazeres, decidindo cozinhar um pouco. Faria algo simples, como espaguete e batatas fritas. Pôs-se a fritá-las enquanto a massa e o molho cozinhavam. Após alguns minutos, tudo estava pronto e Zya sentou-se à pequena mesa para comer.Distraído, dava garfadas pequenas