Henrik ouvia Chris falar desde que chegaram da escola. Já passava das quatro da tarde e ele não parava, ainda falando do cara novo na cidade. Henrik estava melhor da insolação que o acometera após horas jogando lacrosse debaixo de um sol cruel. Seu rosto já estava menos vermelho, pois ficou o dia todo passando cremes à base de aloe vera.
Chris estava sentado à sua frente na bancada da cozinha com uma incrível cara de louco. Henrik desviou os olhos dele e observou seu reflexo na tela apagada de seu celular; cansado, vermelho e dolorido, com bolsas abaixo dos olhos vermelhos. Os cabelos claros como os de Louisa estavam secos e feios por causa do maldito sol e sua boca cheia estava queimada.
— Olha, cara, que paranoia toda é essa? É só um garoto novo na cidade, nada demais. Ele não vai tirar a Lou de você. — Disse Henrik, cansado.
— Você não está entendendo. Ele disse que matou um cara!
— E você acreditou? Ele foi sarcástico com você, Chris. Se toca.
— Que seja, mas ele ficava lançando uns olhares pra Lou.
— Chega. Fique calmo, ou eu terei um AVC se tiver que te aguentar por mais uma hora que seja. Eu não vi o tal Zya, afinal não saio daqui nem no sol de final de tarde, então vou esperar ele aparecer por aí para tirar minhas conclusões. E você parece o resto da cidade, julgando pela aparência só por que o cara usa maquiagem nos olhos.
— Dá um ar muito tenebroso a ele, sem falar da pele cinza que tem. Ele disse que na cidade dele era tipo chuva toda hora, então dá para imaginar porque ele tem aquela cor. — Disse Chris, servindo-se de mais uma porção de lasanha. — E um olho é de cada cor.
— Quero só ver o que meu pai dirá quando vir isso. Se bem que é só o tal Zya Gaesh ficar na dele que está tudo bem.
— Esse cara ainda vai trazer problema para todo mundo aqui em Sunfalls. — Resmungou Chris de boca cheia.
— Ah, se você diz. Só não me mete em perrengue não, Chris. Ainda mais com um... — Henrik se interrompeu, pensando em alguma palavra que não soasse tão ofensiva.
— Forasteiro ex detento. — Completou Chris, destilando veneno.
— Forasteiro... Coitado, está até apelidando-o e não faz nem um dia inteiro que o Zya está aqui. — Disse Henrik, bufando.
Louisa entrou na cozinha, pegando apenas a parte em que Henrik citava Zya. Ela usava um vestido de cor salmão com sutis babados na saia. As alças tinham pequeninas borboletas, tão pequenas que só se podiam ver de perto. Ela sentou junto de Chris, entrelaçando seus dedos nos dele.
— Do que estavam falando? — Perguntou ela.
— Estávamos falando do seu amiguinho. — Respondeu Chris.
— Esse seu ciúme é muito idiota. Como se eu fosse largar você e me jogar nos braços de um desconhecido com cara de malvadão.
— É que o Chris sabe que é feio demais e, com um bonitão da cidade aqui em Sunfalls, ele se sente ameaçado.
Henrik alfinetou Chris, sorrindo. Adorava irritar o amigo, pois ele perdia a calma facilmente.
— Vai se ferrar, Newton.
— Henrik, você não quer levar um prato de comida para o Zya? Ele não saiu de lá o dia todo e talvez nem tenha comido. — Pediu Lou.
— Hmm, deixe-me pensar. O que vou ganhar em troca?
— Eu não vou enfiar o dedo nessa sua pele queimada se você for.
Henrik estremeceu e se levantou, preparando rapidamente um grande e belo prato de comida. Louisa ria, vendo-o tão desesperado com medo de que ela tocasse a pele vermelha dele, pois Henrik sabia que ela o faria.
— Você é louca, Lou.
— Obrigada, irmãozinho.
Henrik vestiu uma camiseta, franzindo o rosto com a agonia do tecido em cima da pele. Alisou o cabelo curto para que não ficasse tão bagunçado, pegou o prato de comida com uma tampa de vidro em cima, talheres e saiu para a tarde já sem sol. Henrik andou apressado para o celeiro, via uma das portas estava aberta e ele entrou. Subiu as escadas com cuidado para que seus braços não raspassem na madeira ou para que não deixasse o prato cair. O celeiro estava escuro, mas as luzes do quarto estavam acesas. Henrik bateu à porta uma só vez e uma voz grave disse para entrar.
Quando ele entrou, viu Zya parado aos pés da cama terminando de se vestir. Seus dreads longos estavam presos em um enorme coque atrás da cabeça e Henrik achou estranho o fato de ele usar maquiagem preta nos olhos; ainda mais quando acabou de sair do banho e não a borrou. Zya encarava Henrik, que o encarava de volta comicamente. Zya percebeu nele o mesmo olhar de Louisa sobre sua aparência, pois provavelmente não viu gente diferente em Sunfalls em toda sua vida.
— Sim?
— D-desculpe é que... Você usa maquiagem. — Gaguejou Henrik, parado em frente à porta, do lado de dentro.
— É maquiagem definitiva, sabe. — Explicou Zya.
— Não, não sei. Definitiva, tipo...?
— Tipo tatuagem.
— Você tatuou os olhos? — Perguntou Henrik, chocado.
— Os olhos e outras coisas que não irei te mostrar. — Disse Zya, divertido. — Você é...?
Zya terminava de vestir uma blusa vermelha de mangas compridas, mas não a vestira rápido o bastante: Henrik olhava intrigado para as cicatrizes de queimaduras severas que ele tinha nas palmas das mãos e antebraços. Parecia que a pele cinzenta dele fora derretida, retirada e colada com esmero de volta ao corpo. Zya reparou os olhares e tratou de se cobrir rapidamente. Henrik desviou os olhos para o rosto dele e sorriu, erguendo o prato que trouxera.
— Eu sou Henrik. Trouxe um pouco de lasanha para você. Lou mandou, pois ela acha que você não comeu nada hoje. A propósito, sou o irmão mais velho dela.
Zya olhou com vontade para o prato, inclinando a cabeça para o lado.
— É muita gentileza, Henrik.
Henrik colocou o prato na mesa e os talheres ao lado, se afastando alguns passos. Sua primeira impressão de Zya fora que ele era um cara quieto e estranho, com aquela tal maquiagem definitiva e as cicatrizes de queimaduras. Henrik pegou-se pensando no que as havia causado.
— Ah, custava nada ser legal um pouquinho. — Respondeu Henrik, colocando as palavras em uma ordem “caipira”.
— Vejo que está com queimaduras de sol.
Zya falava baixo, sem mudar a expressão. Sentou-se à mesa e tirou a tampa do prato, agradecendo aos deuses por aquela comida que lhe parecia ótima.
— Eu jogo lacrosse na escola e fiquei tempo demais nesse sol escaldante daqui de Sunfalls.
— Interessante. — Comentou Zya com a boca cheia, indicado a cadeira à sua frente para que Henrik sentasse. — Fala um pouco daqui, por favor.
— Falar daqui? Bom, não tem nada aqui, como você deve ter visto. Só milharais, campos de girassóis e um cemitério.
— Não tem ninguém diferente aqui? Do tipo que faz coisas estranhas?
Zya tentava tirar de Henrik alguma informação que pudesse ser útil sobre alguém que pudesse ser como ele, ter dons diferentes e difíceis de esconder.
— Tipo um doido? Tem a Samira, ela é meio fervorosa demais, sabe. Às vezes ela sai por aí gritando versículos da Bíblia e dizendo coisas horríveis sobre o inferno.
— O inferno não é tão ruim assim. — Sussurrou Zya, agradecido por Henrik não ter ouvido.
— E ela cuida do filho e do sobrinho. O filho dela é o Genesis, e o sobrinho, Aiden. Eles são caladões e tem umas desavenças com o Chris.
— Não imagino porque eles teriam desavenças com o doce Chris.
Henrik riu diante à ironia de Zya. De fato, Chris não era fácil.
— O povo daqui olha feio para o Chris e para o pai dele. Eles são hostilizados aqui. O pai dele, o Marco, é metalúrgico e tem o corpo coberto de tatuagem, o que faz as pessoas de Sunfalls acharem que ele é um marginal, e o fato de o Chris ter pintado o cabelo e colocado brincos faz com que pensem o mesmo dele. Ele é difícil de lidar, mas não é por nada. Nem leve para o lado pessoal. — Tagarelava Henrik, feliz.
— Não levo. Caso contrário, eu não teria chegado nem na metade do caminho sem ter dado uns belos tapas nele. — Brincou Zya, mas com o olhar sério.
— Ele e eu já saímos no tapa feio, mas aí ficamos mais amigos depois disso.
Zya se pegou pensando em Aksu, seu único amigo verdadeiro. Sentia falta dele, até mesmo das vezes em que saíam no soco por motivos idiotas.
— A senhora Jenna me cedeu o celeiro, mas não sei nada sobre vocês, os Newton.
— Bom, meu pai é pastor da igreja aqui, o nome dele é Saul. Minha mãe você já conhece, é dona da sorveteria. Minha irmã é a Lou, que você também já conhece. E só. Qual é a sua idade, se me permite perguntar?
— Tenho vinte e três anos recém-completos. E você?
— Tenho dezesseis e alguns meses. A Lou tem quinze e o Chris, a mesma idade que eu.
Zya ficava pensando como Henrik gostava tanto de falar, pois o fazia pelos cotovelos. Talvez fosse algum hábito de Sunfalls.
— De onde você vem, Zya? — Perguntou Henrik.
— De um lugar chamado Ghonargon. Fica longe daqui.
— Eu nunca ouvi falar desse lugar. Mas se você veio de lá é porque existe, então como era lá?
— Cinza, escuro, chuvoso e perigoso. Bem diferente de Sunfalls.
— Isso explica muita coisa.
— Como? — Indagou Zya, terminando de comer.
— Sua cor, seu jeito esquisitão e coisa e tal.
— Obrigado pela parte que me toca. Só me diga que não irão me apedrejar aqui e está tudo bem.
— Se você for levar uma pedrada, com certeza será da Samira. Ou do Chris também.
— Mal cheguei aqui e já fiz um inimigo, que ótimo.
— Ele vai se cansar de você logo menos, relaxa. — Disse Henrik, pegando o prato vazio. — Vou voltar para casa agora, mas você pode ir lá se precisar de alguma coisa.
— Pouco provável que eu vá. — Respondeu Zya, direto.
— Imaginei isso. Então, boa noite, forasteiro!
Zya assentiu e sorriu enquanto Henrik saia; um carinha deveras estranho e tagarela.
Genesis estava ajoelhado em frente ao altar cristão no quarto de sua mãe havia horas, já sem saber o que estava rezando. Seus joelhos estavam dormentes e os olhos pesavam. Era noite, quase hora do jantar e Aiden, ao seu lado, ainda tinha os olhos fechados. Genesis olhou seu reflexo no espelho atrás da grande cruz de madeira; olheiras terríveis, olhos vermelhos de sono – pois não dormia fazia dias por conta da “maratona da fé” imposta por sua mãe, Samira – cabelos pretos bagunçados e feições carrancudas de cansaço. Ele baixou a cabeça e olhou de rabo de olho para o primo, percebendo que ele não estava rezando, mas dormindo. Genesis riu baixinho, pois Aiden sempre dava um jeito de ser o idiota da casa.Ou talvez o mais esperto.Ele ouviu Samira subindo as escadas, cantarolando. Genesis cutucou Aiden, que não acordava.— Aiden! — Sussurrou Genesis.Samira girou a maçaneta devagar quando Genesis deu uma cotovelada bruta em Aiden, que acord
Chris levava Louisa para sua casa após as aulas, passando da uma hora da tarde. De mãos entrelaçadas, eles andavam pela rua onde Chris morava. Aquele fora o último dia de aula e então estavam oficialmente de férias. Lou saltitava ao lado dele, usando o vestido que ele dera de presente para ela havia alguns meses. O vestido era preto de alças finas, com rendas na saia. Era simples e não tinha muitos adornos, mas Lou o adorou tanto que Chris sentiu que aquele fora o melhor presente que poderia ter dado a ela. Louisa gostava de usá-lo com seu par de all star vermelhos, pois o contraste de cores do vestido e dos tênis era lindo aos olhos dela. Seus cabelos estavam presos em uma trança frouxa posta por sobre o ombro direito.— Meu pai não irá gostar nada de saber que estou indo para a sua casa, sozinha com você. — Comentou Lou, sorrindo um pouco.— Não vou roubar sua virtude nem nada do tipo, só estou te levando lá para ter um tempo com você. De preferência sem o Henrik
Zya caminhava sem pressa pela cidade, procurando conhecê-la. Já era noite e ele voltava para o celeiro, cansado. A noite estava fresca e não havia ninguém por perto, então Zya arriscou tirar a blusa de mangas compridas, vestindo apenas a regata preta que usava por baixo dela. Zya soltou os dreadlocks, deixando-os estendidos ao longo das costas e jogados de lado, de modo que um lado de sua cabeça ficasse livre deles, com uma parte raspada à mostra onde uma sombra de cabelos pretos aparecia. Zya se cobrou mentalmente sobre comprar uma lâmina de barbear no dia seguinte para dar fim ao cabelo que começava a crescer.Caminhando tranquilamente pela cidade, que deveria ter mais ou menos umas dez ruas, Zya descobrira que só as principais eram asfaltadas; todas as outras eram de terra, inclusive a rua de seu novo endereço.Ele repassava mentalmente os planos para sua nova vida naquela cidade enquanto andava: no dia seguinte, iria ao lugar onde o pai do Chris trabalhav
Louisa mantinha a cabeça deitada na cama, ao lado de Chris. Estava sentada naquela cadeira desconfortável o dia inteiro, tendo se levantado apenas para ligar para sua mãe e contar o que aconteceu. Jenna dissera que esperaria Saul chegar em casa e então iriam vê-los, após avisar Marco.Chris não corria perigo, mas ainda não acordara. Louisa não podia contar a verdade nem por um decreto, e teve de inventar que Chris havia entrado em contato com um fio grosso cortado na estrada. Sem maiores detalhes, ela se fechou para a equipe médica, que cuidou de Chris o melhor que puderam com tão poucas informações. Ele estava sedado e tinha curativos por todo seu peito. Chris ressonava tranquilo, deliciosamente alheio à tudo. Louisa desejou poder estar sedada também.Sua cabeça explodia com tantas especulações, perguntas e tudo o mais relacionado ao que acontecera mais cedo. Como era possível que ela, Louisa Newton, a menina mais normal da cidade mais monótona da Terra, tiv
Saul preparava, na mesa da cozinha, o que falaria naquele domingo na igreja. Anotava algumas ideias em um bloco de papel fino com pautas pretas enquanto lia algumas passagens bíblicas. Saul ouvia Jenna assistir TV na sala, alguma novela melosa a qual ele não tinha o mínimo interesse. Ele não conseguia se concentrar no que estava fazendo, pois tinha a cabeça cheia de outras coisas, como Louisa e a quase morte de seu namorado, o inquilino novo e Samira. Erguendo os olhos para o relógio da cozinha, Saul viu que era tarde, mas sabia que àquela hora alguns garotos treinavam lacrosse na escola, pois de noite o clima ficava mais fresco, facilitando o jogo.Fechou a Bíblia e descansou a caneta em cima do bloco de papel, levantando-se da cadeira. Apagou a luz ao sair da cozinha e parou aos pés da escada, observando Jenna sentada ao sofá sorrindo sozinha para a televisão, totalmente entretida na tal novela. Os cabelos claros dela estavam presos em um coque simples e desleixado e e
Fazia quase cinco dias inteiros desde que Zya chegara a Sunfalls. Muitas coisas haviam acontecido naquele pequeno tempo, como Zya ter conseguido um emprego na mesma fábrica de Marco, onde trabalharia com o tratamento e produção de metais. Não era um trabalho muito bom, e ele não ganharia muito bem, mas já era algum progresso. Zya não tinha a menor experiência com metais, mas era isso ou não sabia o que mais poderia fazer. Quase não tinham oportunidades em Sunfalls, e metade da população de lá ia às cidades vizinhas trabalhar.No dia anterior, Zya fora ao mercado para abastecer sua pequena casa. Comprou comida, itens de higiene e de limpeza. Já havia arrumado suas coisas no guarda-roupa e não tinha mais afazeres, decidindo cozinhar um pouco. Faria algo simples, como espaguete e batatas fritas. Pôs-se a fritá-las enquanto a massa e o molho cozinhavam. Após alguns minutos, tudo estava pronto e Zya sentou-se à pequena mesa para comer.Distraído, dava garfadas pequenas
Ambos estavam no final da rua, andando a passos rápidos. Passaram pela avenida principal de Sunfalls, em frente à sorveteria de Jenna, que deveria estar nos fundos dela almoçando – pois não estava no balcão. A rua era longa, mas logo estavam na próxima. Sunfalls tinha poucas ruas, e era composta por terras extensas e vazias, ocupadas por milharais ou fazendas. Era possível percorrer todas em cerca de uma hora, andando em velocidade moderada. Louisa pululava ao seu lado, feliz e calada, aproveitando a companhia quieta de Zya.— E o que você fazia lá em Ghonargon? — Indagou Lou.— Muita coisa. Defina o que quer saber exatamente. — Sorriu ele.— Ah, trabalho, diversão...— Ainda assim, assuntos um pouco vagos. Eu trabalhava com algo que você não vai querer saber e me divertia com coisas que você não iria querer ouvir sobre.— Nossa, Zya. Duvido que você tenha feito coisas tão chocantes assim. — Respondeu ela, rindo alto.Zya lembrou-se de
— Bom, eu jogo lacrosse no time da escola, tenho dezessete anos, gosto de comer muitas coisas.— Muitas coisas tipo tudo. — Complementou Louisa.— Não é verdade. Aquela coisa estranha que você faz, por exemplo, eu não consigo engolir nem ferrando.— O quê? — Perguntou ela, confusa.— Aquela espécie de hambúrguer de tofu, sei lá o que é aquilo. E geralmente você queima a frigideira quando faz.Louisa encarou Henrik, com os lábios entreabertos. Não achava que cozinhasse tão mal como ele estava dizendo.— Aquilo é panqueca... — Respondeu Lou, baixinho.Repentinamente, Zya gargalhou alto, pensando na tal panqueca disfarçada de hambúrguer de tofu. Tudo bem que ele não era nenhum Chef de cozinha, mas sabia se virar muito bem. Louisa cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha dourada.— Você diz isso porque nunca comeu comida de reformatório, Henrik. — Comentou Zya, rindo.— Então você já esteve