O e-mail chegou no fim da tarde de terça-feira, com o título simples: “Prévias das fotos — por Aaron”. Eu já havia encerrado as tarefas do dia, mas ainda estava em minha mesa, finalizando algumas anotações. Quando vi o nome dele na notificação, meu coração bateu um pouco mais rápido — não por emoção romântica, mas por aquele nervosismo quase infantil de me ver através dos olhos de outra pessoa.Cliquei com cautela, os dedos hesitantes no touchpad. As fotos carregaram devagar, uma a uma, revelando versões de mim que eu não conhecia. Nada muito editado. A luz suave, a postura natural, o cabelo preso de forma despretensiosa, o sorriso quase contido. Havia verdade naquelas imagens. Uma presença que eu própria não sabia carregar no espelho.Logo abaixo da galeria, uma mensagem simples:> Oi, Marina. Aí estão algumas das prévias. A direção criativa adorou, e o Oliver pediu para te parabenizar de novo. Mas, pessoalmente, queria dizer: você tem algo raro. Não estou falando só da estética — qu
Na manhã seguinte, despertei antes do despertador. Yves ainda dormia, a respiração calma enchendo o quarto com uma paz frágil. O sol entrava em listras pela persiana mal fechada, e a cidade começava a respirar do lado de fora. Mas dentro de mim, algo se movia com mais intensidade do que o habitual.Caminhei até o banheiro e acendi a luz. Ainda sonolenta, abaixei-me para lavar o rosto. Quando ergui o olhar, meus olhos me encararam de volta no espelho — os próprios, mas... não exatamente.Havia algo diferente naquele reflexo. Não era o rosto, nem o cabelo, nem os traços — todos familiares. Mas o jeito como aquela imagem se sustentava. Como se alguém estivesse ali, prestes a rir de um segredo.Pisquei, como se isso pudesse dissipar a sensação. Não dissipou.— Você de novo... — sussurrei para o espelho, quase em tom de brincadeira, mas sentindo uma pontada real de desconforto.Não era a primeira vez. Havia semanas em que eu sentia essa presença — uma espécie de versão alternativa de mim m
As manhãs se tornaram mais suaves. Já não acordava sobressaltada, embora ainda houvesse cansaço em meus olhos. Yves, com seus quase quatro meses, acordava antes das sete, balbuciando sons como se conversasse com o quarto. Eu gostava desses minutos: o mundo ainda calmo, a respiração do bebê aquecendo o dia.Preparava a mamadeira com uma das mãos, enquanto a outra já equilibrava o celular entre mensagens não respondidas e contas programadas. O silêncio de Milles começava a pesar mais do que eu admitia. Antes, ele mandava vídeos curtos de onde estava, perguntas rápidas sobre o bebê, pequenos elogios. Agora, as mensagens eram mais espaçadas. E, quando vinham, pareciam automáticas.Naquela manhã, havia enviado uma foto de Yves vestido com um macacão novo, presente de Vanessa. Ele sorria, bochechas redondas e os olhos quase fechando de tanto rir.[07:18] Marina: “Bom dia. Olha como o Yves tá lindo hoje!”Milles não respondeu.Não comentei com ninguém. Nem com Vanessa, nem com Aaron — que vi
O sino da porta tocou com seu som familiar assim que entrei na confeitaria. A fachada azul-clara, as cortinas rendadas, o cheiro de café e açúcar queimado me abraçaram como uma lembrança boa que insiste em voltar. Aquela doceria tinha o dom de me acolher mesmo quando o mundo parecia afiado demais lá fora.Liam ergueu os olhos do balcão, fingindo um cansaço teatral ao me ver. Seus olhos cintilaram com o tipo de humor afiado que eu já esperava.— A mulher do pudim voltou. Vai querer a mesa de sempre ou vai inovar hoje?— Tô me sentindo ousada… então, a mesa de sempre — respondi com um sorriso contido.— A ousadia me surpreende, senhorita.Sentei no meu canto favorito, perto da janela, e deixei a cidade do lado de fora seguir seu ritmo. Aquela mesinha de madeira, com sua cadeira antiga e a toalha rendada um pouco torta, era meu esconderijo não declarado. Um lugar onde eu podia respirar sem ser puxada por urgências.Abri o caderno com algumas anotações soltas, mas não consegui focar de im
Era para ser apenas mais uma tarde comum. Trabalho, café, mensagens ignoradas. Mas quando Aaron mandou a notificação com o endereço do estúdio e a frase "Temos uma nova sessão, se você quiser, claro", meu corpo reagiu antes da minha mente decidir. Quis. Não por vaidade. Não por dinheiro. Mas por algo que eu ainda não sabia nomear. Alguma coisa em mim precisava daquelas luzes, da lente, daquele silêncio de estúdios onde se diz tanto sem uma palavra sequer. Antes de sair, passei a rotina para Vanessa como quem entrega um pedaço do coração. — Ele tomou a última mamadeira às três. Provavelmente vai querer outra antes das seis. Se ele resmungar, dá aquele paninho azul — indiquei com o dedo. — E se você achar que ele tá cansado demais, pode colocar aquela playlist do sono. Funciona noventa por cento das vezes. Vanessa sorriu com a calma de quem já sabe o que faz. — Vai dar tudo certo. Pode ir, Marina. Meu corpo ainda hesitou na porta, mas meus pés obedeceram. O mundo lá fora me espera
Os saltos tocam o chão como promessas. Rítmicos. Precisos. Cada passo é uma assinatura. Aqui, ninguém me chama de Marina. Aqui, eu sou Sara — e todos sabem quem eu sou, mesmo que nunca tenham ouvido meu nome. O "Vermelho" pulsa como uma extensão do meu corpo. As luzes baixas refletem no piso de madeira encerado, os espelhos nas laterais deformam o tempo. O cheiro de bebida forte e perfume importado cria uma névoa densa. E eu a respiro como quem respira liberdade. A hostess não pergunta nada. Apenas abre espaço. Os homens desviam os olhos, as mulheres me olham com curiosidade e receio. Eu não me encaixo. Eu comando. É assim que gosto. É assim que deve ser. Minha mesa no canto me espera como uma lembrança que não se apaga. A garrafa de vinho já decantada. A taça na temperatura certa. O batom vermelho já marcando a borda do vidro antes mesmo do primeiro gole. Hoje eu vim diferente. Não vim por fuga. Vim por escolha. Por fome. A música vibra nas paredes — um jazz eletrônico, obsceno
A tarde começou sem grandes promessas. O dia se arrastava entre e-mails automáticos e planilhas sem fim, e eu já contava os minutos para o fim do expediente desde as duas da tarde. Rafael passou pela minha mesa e deixou um chocolate em cima da minha agenda com um bilhete: "Pra te impedir de surtar até as 18h". Sorri sozinha. Era bom ser vista, mesmo nos detalhes pequenos. Mas o que eu queria mesmo era um tempo comigo. E, talvez, com uma fatia de torta e um café bem feito. Foi assim que, no final do dia, me vi mais uma vez empurrando a porta da confeitaria. O sino tilintou com seu som familiar, e Liam ergueu os olhos como se já soubesse. — Vai querer o de sempre ou se reinventou hoje? — Surpreendentemente, quero... o de sempre mesmo. — Ri. Ele assentiu com um sorriso e seguiu para o balcão. Me sentei na mesa perto da janela, onde a luz do fim da tarde entrava em listras suaves, dourando o tampo de madeira antiga. Eu gostava daquela mesa. Gostava do ritual. O pudim, o capuccino co
Voltei à confeitaria dois dias depois. Não planejei. Só aconteceu. A cidade estava abafada, o trabalho havia sido uma sucessão de microcrises mal resolvidas, e Vanessa tinha conseguido fazer Yves dormir mais cedo. Eu precisava respirar. E por alguma razão que eu ainda fingia não entender, queria — ou precisava — estar naquele lugar de novo. O sino da porta soou quando entrei, como sempre, mas naquele dia parecia mais alto. Como se o espaço me notasse antes mesmo de eu falar qualquer coisa. Liam levantou os olhos do balcão e ergueu uma sobrancelha, desconfiado. — Terceira visita essa semana. Você tá bem? — Eu tô me viciando na sua carolina. — Respondi, me esforçando por um sorriso. — Sei. E o mundo é plano também, né? Dei de ombros, rindo baixo, e me dirigi para a mesa do canto. A de sempre. Me acomodei ali com o pudim, o café com canela e uma carolina caprichada, sentindo o calor da xícara como um amuleto nas mãos. Mas não era pelo doce. Eu estava esperando, e sabia disso. Esp