O sino da porta tocou com seu som familiar assim que entrei na confeitaria. A fachada azul-clara, as cortinas rendadas, o cheiro de café e açúcar queimado me abraçaram como uma lembrança boa que insiste em voltar. Aquela doceria tinha o dom de me acolher mesmo quando o mundo parecia afiado demais lá fora.Liam ergueu os olhos do balcão, fingindo um cansaço teatral ao me ver. Seus olhos cintilaram com o tipo de humor afiado que eu já esperava.— A mulher do pudim voltou. Vai querer a mesa de sempre ou vai inovar hoje?— Tô me sentindo ousada… então, a mesa de sempre — respondi com um sorriso contido.— A ousadia me surpreende, senhorita.Sentei no meu canto favorito, perto da janela, e deixei a cidade do lado de fora seguir seu ritmo. Aquela mesinha de madeira, com sua cadeira antiga e a toalha rendada um pouco torta, era meu esconderijo não declarado. Um lugar onde eu podia respirar sem ser puxada por urgências.Abri o caderno com algumas anotações soltas, mas não consegui focar de im
Era para ser apenas mais uma tarde comum. Trabalho, café, mensagens ignoradas. Mas quando Aaron mandou a notificação com o endereço do estúdio e a frase "Temos uma nova sessão, se você quiser, claro", meu corpo reagiu antes da minha mente decidir. Quis. Não por vaidade. Não por dinheiro. Mas por algo que eu ainda não sabia nomear. Alguma coisa em mim precisava daquelas luzes, da lente, daquele silêncio de estúdios onde se diz tanto sem uma palavra sequer. Antes de sair, passei a rotina para Vanessa como quem entrega um pedaço do coração. — Ele tomou a última mamadeira às três. Provavelmente vai querer outra antes das seis. Se ele resmungar, dá aquele paninho azul — indiquei com o dedo. — E se você achar que ele tá cansado demais, pode colocar aquela playlist do sono. Funciona noventa por cento das vezes. Vanessa sorriu com a calma de quem já sabe o que faz. — Vai dar tudo certo. Pode ir, Marina. Meu corpo ainda hesitou na porta, mas meus pés obedeceram. O mundo lá fora me espera
Os saltos tocam o chão como promessas. Rítmicos. Precisos. Cada passo é uma assinatura. Aqui, ninguém me chama de Marina. Aqui, eu sou Sara — e todos sabem quem eu sou, mesmo que nunca tenham ouvido meu nome. O "Vermelho" pulsa como uma extensão do meu corpo. As luzes baixas refletem no piso de madeira encerado, os espelhos nas laterais deformam o tempo. O cheiro de bebida forte e perfume importado cria uma névoa densa. E eu a respiro como quem respira liberdade. A hostess não pergunta nada. Apenas abre espaço. Os homens desviam os olhos, as mulheres me olham com curiosidade e receio. Eu não me encaixo. Eu comando. É assim que gosto. É assim que deve ser. Minha mesa no canto me espera como uma lembrança que não se apaga. A garrafa de vinho já decantada. A taça na temperatura certa. O batom vermelho já marcando a borda do vidro antes mesmo do primeiro gole. Hoje eu vim diferente. Não vim por fuga. Vim por escolha. Por fome. A música vibra nas paredes — um jazz eletrônico, obsceno
A tarde começou sem grandes promessas. O dia se arrastava entre e-mails automáticos e planilhas sem fim, e eu já contava os minutos para o fim do expediente desde as duas da tarde. Rafael passou pela minha mesa e deixou um chocolate em cima da minha agenda com um bilhete: "Pra te impedir de surtar até as 18h". Sorri sozinha. Era bom ser vista, mesmo nos detalhes pequenos. Mas o que eu queria mesmo era um tempo comigo. E, talvez, com uma fatia de torta e um café bem feito. Foi assim que, no final do dia, me vi mais uma vez empurrando a porta da confeitaria. O sino tilintou com seu som familiar, e Liam ergueu os olhos como se já soubesse. — Vai querer o de sempre ou se reinventou hoje? — Surpreendentemente, quero... o de sempre mesmo. — Ri. Ele assentiu com um sorriso e seguiu para o balcão. Me sentei na mesa perto da janela, onde a luz do fim da tarde entrava em listras suaves, dourando o tampo de madeira antiga. Eu gostava daquela mesa. Gostava do ritual. O pudim, o capuccino co
Voltei à confeitaria dois dias depois. Não planejei. Só aconteceu. A cidade estava abafada, o trabalho havia sido uma sucessão de microcrises mal resolvidas, e Vanessa tinha conseguido fazer Yves dormir mais cedo. Eu precisava respirar. E por alguma razão que eu ainda fingia não entender, queria — ou precisava — estar naquele lugar de novo. O sino da porta soou quando entrei, como sempre, mas naquele dia parecia mais alto. Como se o espaço me notasse antes mesmo de eu falar qualquer coisa. Liam levantou os olhos do balcão e ergueu uma sobrancelha, desconfiado. — Terceira visita essa semana. Você tá bem? — Eu tô me viciando na sua carolina. — Respondi, me esforçando por um sorriso. — Sei. E o mundo é plano também, né? Dei de ombros, rindo baixo, e me dirigi para a mesa do canto. A de sempre. Me acomodei ali com o pudim, o café com canela e uma carolina caprichada, sentindo o calor da xícara como um amuleto nas mãos. Mas não era pelo doce. Eu estava esperando, e sabia disso. Esp
A noite estava estranhamente silenciosa. Yves havia dormido mais cedo do que o normal, após um banho morno e uma sequência de risadinhas que me deixaram com o coração leve. Vanessa já tinha ido embora, a louça estava lavada, o chão limpo — e mesmo assim, eu me sentia inquieta.Peguei o celular. Passei os dedos pelas notificações, todas sem importância. Nenhuma resposta de Milles. Nenhum recado novo.Abri a galeria de fotos por impulso, deslizando sem pressa até encontrar os vídeos antigos. Alguns eram de quando eu ainda estava na faculdade — gravações de aula, uma apresentação de anatomia, eu rindo desajeitada ao errar o nome de uma estrutura muscular.Pausei num vídeo em que Milles me filmava escondido, enquanto eu tentava colar post-its coloridos em um quadro branco com frases de incentivo.“Você acredita mesmo nessas frases prontas, Ma?”E eu, rindo:“Se eu não acreditar em alguma coisa, eu desmorono.”O vídeo acabou. E eu desmorone
A manhã começou mais lenta do que o habitual. O despertador tocou às sete, mas só consegui sair da cama quase meia hora depois. Yves resmungava no berço, chutando o paninho azul como se estivesse protestando contra o novo dia.— Eu também não tô com vontade de levantar, sabia? — murmurei, com a voz ainda rouca, enquanto o pegava no colo.Ele se acomodou no meu peito com aquele calorzinho de quem não cobra nada, mas exige tudo — e eu deixei. Ficamos ali por alguns minutos, enrolados sob a luz suave que entrava pela janela, respirando o mesmo ar.Depois de prepará-lo, arrumei o básico para a Vanessa e deixei um bilhete com as instruções do dia. Como sempre, ela chegou pontualmente, com o sorriso calmo e os passos silenciosos.— Ele dormiu bem? — ela perguntou, tirando a jaqueta.— Dormiu. Mas eu... não.Ela apenas assentiu, como quem entende sem exigir explicações.Eu precisava estar no estúdio antes das nove. Tinha sido c
Os vidros do ônibus refletiam a cidade de um jeito embaçado. Luzes amareladas misturadas com o céu nublado, carros se arrastando no trânsito como se estivessem presos no tempo. Encostei a cabeça na janela, sentindo o frescor do vidro contra a pele, e por um instante quase cochilei.Quase.Yves estava com Vanessa naquela tarde. Depois da sessão de fotos e do turbilhão da semana anterior, eu precisava de algumas horas sozinha. Não exatamente para descansar — eu já sabia que isso era luxo — mas para andar sem pressa, sem horários, sem fraldas na bolsa ou listas mentais de compras urgentes.Desci duas quadras antes do ponto de costume, só para mudar o caminho. As ruas estavam quietas, o tipo de silêncio urbano que parece sussurrar segredos pelas calçadas. Meus passos ressoavam baixos, e tudo parecia suspenso.Foi quando passei em frente à vitrine da “Galeria Armand”.Parei.Ali, pendurado sob uma luz direcionada, estava um colar idên