A manhã nasceu abafada, típica de um fim de primavera que se arrasta preguiçosamente até o verão. Luna saiu de casa com os cabelos presos num coque frouxo e uma mochila surrada pendendo de um ombro. O uniforme escolar — amassado, ajustado com pequenos remendos — parecia um lembrete silencioso de todas as vezes que ela precisou se virar sozinha.
Era seu último dia de aula. Um peso e um alívio. Ela caminhava pela calçada tentando manter o olhar baixo. O som das risadas de um grupo ao longe já bastava para fazer seu estômago se contrair. As valentonas — sempre em grupo, sempre maquiadas como se estivessem indo a um desfile — ainda estavam por ali. Luna evitou o corredor central e seguiu pelos fundos do prédio, atravessando a quadra de cimento rachado. Por fora, ninguém dizia nada. Por dentro, ela contava os segundos. Luna sabia que deveria estar empolgada. O mundo se abria em possibilidades, mas, pela primeira vez em muito tempo, ela sentia-se perdida. A faculdade parecia um horizonte embaçado. Psicologia? Moda? Gastronomia? Era como tentar escolher uma vida em meio a um mercado de sonhos não testados. Na hora do intervalo, permaneceu na biblioteca, onde o silêncio era um abrigo. Quando o sinal final tocou, ela não olhou para trás. Saiu da escola como quem fecha uma porta para sempre — sem lágrimas, mas com um tipo de luto calado. A primeira parada foi o mercado. Luna andava entre as gôndolas com um carrinho pequeno e olhos grandes. Pegou arroz, feijão, uma bandeja de frango, temperos que raramente podia comprar. Sorriu ao colocar legumes frescos na cesta, como se cada item fosse uma conquista. Um pouco de vinho barato, batatas para assar e até um chocolate que ela mesma se deu de presente. Aquela noite teria uma refeição de verdade. Um jantar quente. Um brinde à liberdade. Seus pais não ligavam há três meses. Não voltaram, não mandaram notícias. Talvez achassem que a filha havia desaparecido junto com as contas da casa. Mas Luna estava ali — viva, faminta, e pela primeira vez… decidida a cuidar de si mesma. ⸻ Na outra ponta da cidade, o salto de Sophia soava como um compasso certeiro nos corredores espelhados da empresa. O dia era denso em reuniões, gráficos, relatórios e sorrisos ensaiados. A sala de conferências estava lotada de executivos de olhares frios e vozes calculadas. Sophia comandava o ritmo com a precisão de um regente: olhos atentos, palavras cortantes, charme impecável. Jacqueline, sua fiel amiga e secretária, estava sempre por perto. Às 18h23, encostou-se na porta do escritório com um sorriso inclinado. — Senhorita Dominici… você precisa de uma bebida. Um bar, talvez. Um pouco de gente de verdade, sabe? Sophia ergueu os olhos do notebook, arqueando uma sobrancelha. — Gente de verdade costuma ser entediante. — Mas às vezes também sabem dançar bem — retrucou Jacqueline com uma piscadela. — Vamos. Só uma horinha. Prometo não te fazer socializar com advogados de meia-idade. ⸻ O bar era moderno, com luzes amareladas e trilha sonora indie. Havia algo de aconchegante no ambiente, como se todos ali tivessem deixado o peso do dia do lado de fora. Sophia se acomodou em uma mesa no canto, sorvendo um gin com tônica, os olhos observando o movimento. Foi quando ela viu Emile Stuart. Uma mulher de meia-idade, cabelos grisalhos bem cuidados, olhar firme, vestido escuro com cortes discretos. Ela se aproximou com um sorriso que era quase um desafio. — Posso? — perguntou, apontando para a cadeira vazia. — Claro — respondeu Sophia, surpresa com a ousadia. — Emile Stuart — estendeu a mão com elegância. — Trabalho com produção alimentar… comida saudável, mas sem hipocrisia. Sophia riu. — Gosto disso. Alimentos honestos. Eu sou Sophia. Tecnologia. Mas também sem hipocrisia, às vezes. — Ah… tecnologia. Vocês vivem no futuro, mas mal sabem escolher um bom vinho. — Eu não escolho vinhos. Eu domino os que escolhem por mim. Emile gargalhou. A conversa fluía como vinho derramado. Dançaram ao som de uma banda cover, riram de histórias do mercado, fofocaram sobre CEOs excêntricos. — Então, Sophia — disse Emile, encostando-se ao ouvido dela — você sempre é assim… difícil de decifrar? — Só quando quero. E você? — Eu sou direta. Gosto de saber o nome, o sabor… e o número da pessoa com quem quero sair de novo. Sophia hesitou por um segundo, depois digitou o número no celular da outra. — Use com moderação — sussurrou. — Não sei ser moderada. A madrugada caiu morna sobre o quarto alugado no motel discreto da Zona Oeste. O quarto tinha lençóis limpos e cheiro de álcool com hortelã. Entre beijos, risos e copos de gim, as roupas foram largadas no chão como se não importassem mais. Sophia não lembrava a última vez que se entregara sem pensar. O corpo de Emile era firme, suas mãos seguras. E havia algo libertador na ausência de futuro ali. Apenas dois corpos, duas vontades. Nada mais. ⸻ Mas quando a luz do sol começou a filtrar pelas frestas da cortina, Sophia já estava de pé. Vestiu-se com a precisão de uma executiva em missão. Deixou um copo de água ao lado da cama e saiu em silêncio, sem deixar bilhete, sem olhar para trás. No carro, os olhos vermelhos de sono refletiam no espelho retrovisor. A maquiagem borrada ainda marcava sua força — e sua fuga. Ligou o rádio. Não queria pensar. Não queria sentir. Só queria chegar em casa antes que a realidade a alcançasse. E do outro lado da cidade, Luna temperava o frango com alho fresco, ouvindo música baixa, dançando sozinha pela cozinha apertada, feliz como há muito não se sentia.Fazia três dias desde a última live. Luna ainda sentia a eletricidade daquela noite correr por sua pele, como se cada centímetro de seu corpo tivesse memorizado os olhares invisíveis que a observavam pela câmera. Mas depois daquilo, ela precisou de silêncio — um respiro. O jantar completo foi como um rito de passagem. Assou o frango com carinho, saboreou cada garfada como se fosse um banquete, brindou consigo mesma com o vinho barato. Pela primeira vez em muito tempo, sentiu-se adulta. Sentiu-se viva. Mas agora, o vazio digital começava a doer. Seu perfil estava lotado de mensagens, curtidas e uma chuva de novas inscrições. Entre todas, um nome brilhava com frequência: LadyInSilk. Não mandava palavras, só reações, doações generosas, curtidas rápidas. Silêncio carregado de expectativa. E algo mais. Algo que Luna começava a reconhecer… desejo de posse. Na manhã do terceiro dia, acordou decidida. Entrou num site de bolsas estudantis e, após muita pesquisa e uma madrugada insone, fez
A respiração de Sophia pesava. Os olhos não piscavam. O corpo, agora espraiado pelo sofá, era só calor, arrepio e impulso. O som da live enchia o ambiente com sussurros e gemidos cristalinos — cada um penetrando fundo, tocando lugares que ela mantinha trancados sob a couraça de sua vida corporativa. As luzes do apartamento estavam baixas, o gelo do gin derretia devagar. Sophia afastou a saia do vestido, deixou a bebida sobre a mesinha de centro e escorregou os dedos por debaixo da calcinha preta de seda. Sentiu a pele úmida, quente, receptiva. Na tela, Luna ofegava, os lábios entreabertos, o dildo ainda pulsando entre as pernas, agora mais devagar, como se saboreasse a própria rendição. A câmera tremia um pouco — talvez pelas mãos instáveis da garota, talvez pela intensidade do momento. — Gostaram de me ver assim, hein…? — Luna sorriu, meio sem fôlego. — Nunca tinha sentido isso antes… foi diferente. Sophia mordeu o lábio. Estava prestes a atravessar aquela linha tênue entre espe
O sol da manhã cortava as nuvens como uma lâmina dourada, e o ar fresco carregava uma promessa que Luna quase não soube nomear: liberdade.Vestia jeans escuro, tênis branco limpo e uma camiseta simples com estampa retrô. Cabelos soltos, leves, com aroma de lavanda. Sua mochila — velha, mas firme — balançava no ombro a cada passo, carregando um caderno novo, uma caneta favorita e o coração, meio aflito, meio esperançoso.Era o primeiro dia na faculdade.A Faculdade de Tecnologia parecia um mundo à parte. Os corredores eram amplos, luminosos, com estudantes de todos os tipos — uns sérios demais, outros descolados, outros invisíveis como ela fora por tanto tempo. Mas ali… ninguém a encarava com desprezo. Ninguém a empurrava ou sussurrava ofensas ao seu passar.Ela respirou fundo.No pátio, sentou-se num banco de concreto e fingiu checar o celular, enquanto observava tudo ao redor. Foi quando uma garota de cabelo curto, moletom largo e óculos grandes parou ao lado dela com um sorriso aber
A semana passou como um feitiço silencioso, envolta em rotina nova, pequenos rituais de descoberta e uma brisa de liberdade que Luna jamais experimentara. As manhãs começavam com café preto, pão tostado e um sorriso discreto. Ela acordava cedo, penteava os cabelos com cuidado, prendia os fios com uma tiara de tecido lilás e escolhia suas roupas com uma atenção quase reverente. Saias jeans, camisetas com estampa de animes, um moletom oversized que comprara no centro com o troco da última live. Com o dinheiro que juntara, pagou as contas atrasadas da casa, comprou uma mochila nova de couro sintético azul-marinho, um par de tênis confortáveis e decorou seu quarto com pequenas luzes de LED e uma cortina lilás que ondulava suavemente na janela. Mandou trançar seus cabelos numa trança embutida com mechas coloridas discretas — um toque de identidade que finalmente ousava assumir. A faculdade já não era um mistério. Agora, era território conhecido. Andava com Julia, Davi e Paula pelos corr
A segunda-feira chegou com céu limpo, brisa morna e o cheiro da cantina já invadindo o pátio da Faculdade de Tecnologia. Luna sentia-se viva. Não apenas respirando — mas existindo com propósito.Os livros, o notebook, o café com Julia antes das aulas, o grupinho de WhatsApp onde compartilhavam memes de programação, piadas internas e prints de bugs absurdos — tudo fazia parte de uma rotina que finalmente não machucava.Na aula de Lógica de Programação, sentaram-se juntos na terceira fileira.— Se esse professor repetir “variável global” mais uma vez, eu juro que vou colocar esse conceito no meu testamento — disse Paula, revirando os olhos.— Tá com sono? — provocou Davi. — Se quiser eu te empresto meu ombro. Só não garanto que não ronco.Julia riu.— Ronco com gemido, né? Eu vi aquele vídeo teu de karaokê na semana passada…— Aquele era estilo, meu bem. Não sabe reconhecer um artista.Luna ria junto. Cada risada era como se arrancasse dela uma camada antiga de dor, revelando uma nova p
A luz roxa invadia o quarto, filtrada pelas cortinas novas. No espelho, Luna se observava em silêncio, tentando ajustar a peruca azul clara trançada nas laterais, caindo pelos ombros. Vestia um short curto rasgado, o top justo que mal cobria os seios e luvas sem dedos com o mesmo tom metálico da personagem. Jinx. A garota imprevisível, insana, perigosa. Um contraste exato com quem Luna realmente era. Mas ali, naquela sala transformada em palco íntimo, Luna não era mais a caloura tímida da faculdade. Era uma força livre, devassa, e — naquela noite — jogaria seu próprio jogo. Ela ajeitou o vibrador no canto da cama, os lubrificantes, o controle e seus brinquedos coloridos de silicone em uma bandeja. Um deles era novo — um modelo com sensores de intensidade e jatos automáticos que prometia mais do que prazer. Prometia espetáculo. Na tela de pré-live, já havia dezenas aguardando. Corações subindo. Nomes conhecidos. E aquele nome… sempre lá. Disfarçado sob um pseudônimo, mas que ela já
O sol da manhã brilhava alto, atravessando o céu limpo enquanto Luna descia do ônibus, o coração pulsando em empolgação. Na mochila nova — roxa com detalhes em preto — ela levava apenas o essencial: estojo, caderno de anotações, celular com a tela quebrada e o brilho de quem, pela primeira vez, sentia-se parte de algo. O campus da faculdade de tecnologia fervilhava de vozes, de movimento, de juventude vibrante. Grupos se formavam no pátio principal. Cartazes coloridos anunciavam o evento do dia: uma das maiores empresas do país faria uma palestra ali, apresentando ideias inovadoras e abrindo possibilidades de estágios e contratação. — Luna! — gritou Isadora, sua amiga de turma, loira cacheada, sempre sorridente. — Achei que você ia se atrasar de novo! — Hoje eu tomei banho com o cronômetro — respondeu Luna, rindo. Ao lado de Isadora, estavam Bruno e Kelvin, dois estudantes de programação que rapidamente se tornaram parte do seu círculo. Luna sentia-se confortável entre eles — ouv
As paredes do campus ainda pulsavam com a energia da palestra da Sophia Montenegro. Desde o fim da apresentação, grupos de alunos circulavam pelos corredores debatendo ideias, rabiscando conceitos nos cadernos, com olhos brilhantes e vozes agitadas. Um concurso real. Uma chance de serem notados. Luna andava pelo pátio central, ainda com o caderno apertado contra o peito. As palavras de Sophia ecoavam na mente como um feitiço: “Coragem. Gente como vocês.” Ela sentia que algo tinha mudado dentro dela. Aquela sensação de exclusão que carregara durante todo o ensino médio parecia estar se dissolvendo. Pela primeira vez, ela fazia parte de algo que poderia crescer, florescer, virar futuro. — Luna! — chamou Isadora, correndo em sua direção. — Já temos grupo! — Já? — Sim! Você, eu, Bruno, Kelvin e a Letícia, lembra dela? A menina do curso de design. Ela manja muito de prototipagem visual. — Nossa… isso é sério mesmo — disse Luna, meio surpresa. — Claro que é! Você viu a Sophia lá na