É gostoso ler estórias de magias, de assombrações não medonhas. As horas passam gostosas, imerecidamente rápidas. Faz parte da infância, eu acho que de todo mundo. Ficávamos ouvindo estórias nos princípios da noite, encolhidos na sarjeta, a cabeça apoiada nos joelhos, os pés suspensos, com medo de que tocassem o chão e algo lá escondido nos puxasse para dentro do solo.
Que bom que era assim, e que pena que perdemos essa novidade, esse descobrir, essa inocência.
Então, de um simples contador de estórias, mais vinte e cinco desses pequenos contos para, nem que por um pequeno momento, nos vistamos novamente de espírito criança.
Akindará
Mikael Lenyer
O cheiro era resinoso como se escorrendo pelos meus dedos. Foi esse perfume que, falando com minha alma, me fez feliz novamente. - Foi ali, naquela casa, que a velha Norma morreu – falou apontando com os olhos para uma casa do outro lado da janela. Depressa retirou os olhos, num pedido mudo de desculpas. - Uma coitada! Sim, uma coitada! - cismou o velho voltando a olhar pensativo para a velha casa abandonada. - Sabe, ela era como a gente, nem boa nem má. De ruim mesmo acho que só aquela mania dela, aquele medo esquisito de ficar aleijada. Mas, afinal, quem não tem suas manias, não é mesmo? A luz das lamparinas bambolearam e as sombras escorreram teimosas pelas paredes, bruxuleando lúgubres. Os homens acenderam os cigarros de palha e se remexeram nos banquinhos velhos, que rangeram incomodados. O fogão de lenha ardia, e alguns se serviram do café quentinho. > Os filhos que ela tinha foram embora e deixaram ela sozinh
Asas que foram, ar que somos, revoltos no céu teimado azul e branco. A pena de Deus desce e escreve em nosso ser nosso destino. Asas que somos, ar que fomos, pesados, desejosos de não saber dos segredos escritos em nós. A floresta penumbrosa, espantosamente antiga em seu cheiro e em seus sons, parecia encará-lo de volta, num desafio debochado. O menino espremeu entre os dedos as abas da camisa e a examinou preocupado, a mente remoendo estórias que lhe contavam como se não fossem verdadeiras, mas que ele sentia que estavam todos enganados. Em silêncio, encarando a penumbra pesada além dos troncos que pareciam formar um imenso muro verde e movediço, perguntou-se se, algum dia, algum homem já calcara aquele solo, aquelas veredas, aquelas trilhas de animais. Preocupado fechou mais fortemente os olhos, temendo com ardor uma resposta negativa pois, se ela viesse, aquela seria uma terra proibida e ele, que era menor que muitos que vivera, nã
Não é estranho que essa luminosidade toda não encha o mundo de estrondos? Ele havia morrido há algum tempo. Todos olhavam o caixão, o homem deitado confortavelmente dentro. Ainda podiam ouvir seu pedido veemente de que queria ser enterrado dentro de um caixão e no pátio da igreja, e em nenhum outro lugar mais. Os mais chegados, pois os poucos que estavam lá eram dessa categoria, se entreolharam preocupados. Se o morto escapara de ser enterrado enrolado numa rede, mas sim num caixão último tipo com visor de vidro de onde poderia ficar olhando a terra e alguma raiz, o último pedido não fora aceito pela igreja, pois o homem só fora o coroinha. Dona Maria, a viúva, tinha os olhos baixos, preocupada mais do que os outros. Então chegou a hora de dar continuidade ao enterro, pois o velório fora cumprido. Os homens então tomaram a posição nas alças e, seguidos pelos choros e lamurias, gritos de que o malandro fora o melhor homem do mundo, saí
Ele estava com os olhos fixos, penetrantes, debruçando-se sobre minha alma, num exame atento, como um caçador que marcou a caça. - Eu estava esperando na encruzilhada onde me encontraram - falou o menino de aspecto lívido. - Fiz um acordo com o diabo, e ele me disse para esperar por vocês. Os meninos se entreolharam preocupados, receosos. Então eles haviam sido citados pelo diabo, e faziam parte de um plano dele. Depressa ajoelharam e rezaram, amedrontados com o que se insinuava. Afinal, ninguém gostava de saber que estava sendo utilizado pelo diabo. Quando se acalmaram iam perguntar para o garoto como ele era quando viram um ônibus muito velho vindo pela estrada. Chegaram para o acostamento, dando passagem livre para o ônibus. Estranharam quando viram a seta acender-se, o que parecia obrigar o ônibus a ir para o lado deles. Então o ônibus parou, deixando-os bem de frente para
Era um dia claro sobre o monte do alemão, aquele em que voltei para a minha terra, cansado da lida com a vida. E havia os que vinham ao meu encontro, aos quais ensinei o que só sabia por saber. E havia muitos deles, mais desenvolvidos e mais poderosos que eu. Fiquei feliz por eles. A velhice me alcançou e, no leito onde morria, me recompus, chorando pelo que havia e pelo que não havia feito. Num estouro de bolha de sabão chegou a hora de ir. A chuva vinha anunciada pelo vento frio que varava a mata, assobiando ligeiro. Jeremias olhou para a sua mulher, desmaiada sob o pesado pau de esteio da casa, que caíra sobre ela. Apesar de todo seu esforço para levantar o pau não conseguiu, o que o deixou incomodado; afinal, sempre erguia pesos bem maiores que aquele. Devia estar com uma ponta travada, pensou. Olhou para baixo de uma parede caída e viu um pé, e ficou cismando que deveria ser de um homem. Pela sua mente passou que não havia ningué
Cuidar e acarinhar a vida, paixão desdobrada da alma. A consciência da vida é só uma pequena parte da magia. O homem andava tranquilo e pensativo, as mãos unidas às costas. Ao seu lado iam sua esposa e um dos filhos do dono da fazenda. Conversavam sobre o tempo e outras coisas banais, até que o homem parou junto a um crânio. Ainda pensativo mexeu nele com o pé, e expressou sua surpresa por um osso tão grande quanto a cabeça de uma vaca ser tão leve. Enquanto falava virou o crânio para baixo e viu três dentes, os de trás, moles, bambos. Foi então que o filho do dono, chamado Fabio, pediu para ele colocasse a cabeça de novo para cima, que ele ia lhe mostrar algo. E mostrou um buraco no alto da cabeça de bordas irregulares voltadas para dentro, que demonstrava ter sido provocado por um impacto que estilhaçara o crânio. - Ele foi morto a marretadas - contou. O homem percebeu que havia uma dor, um mal-estar
A verdadeira magia é acreditarmos que ela não existe. João Zimbrózio, ou Ozimbro, como era chamado, sempre foi um rapaz pensativo, corajoso e amigável. Ele gostava de sair de manhã, nos sábados e domingos, e subir a montanha do alemão, de face para o vale onde sua cidade se aninhava, aconchegante. Após atravessar a linha de trem tomava um aclive sombreado que ia subindo uma vertente coleante, onde fora cavado, há muitos e muitos anos, uma vala divisória pelos escravos dos senhores. Naquele dia o céu estava azul e a temperatura estava deliciosa, daquele frio maravilhoso num dos primeiros dias de primavera. O ar estava cheiroso e límpido. Quando chegou lá em cima, no cume da montanha, Ozimbro olhou com carinho sua cidade, pequena como um brinquedo. Respirou fundo, agradecido por viver naquela cidade, naquela família. Satisfeito voltou-se para a floresta onde se sentia bem. A velha trilha que sempre seguia estava à sua frente. Se
Seus olhos... Talvez nunca tenha visto um assim. Quanta dívida acumulei com sua alma? Foi um alvoroço naquela noite, um rebuliço. Afinal, todos comentavam à boca pequena. Por várias pessoas passou um vento rasteiro acompanhado de um assobio que chegava até a doer nos ouvidos. Ninguém entendeu nada, até que o Seu Nhô contou que viu, no largo do rosário, onde vários escravos foram enforcados e torturados até a morte, um porco esquisito correndo, seguido por uma ventania que sibilava. E esse porco tinha só uma pata na frente e só uma outra atrás. Ele achou esquisito, ainda mais quando ele voltou a cabeça para o seu lado e deu para ele ver que seus olhos eram como dois pedaços de brasas vivas. Correu para ver. Assim que ele chegou mais perto o porco sumiu num vento que assoviava. Ele foi ver na fogueira apagada que ele estava fuçando, e viu que ele tinha comido todos os carvões e até mesmo os tições que ainda tinham alguma