CONTRA A VONTADE

Não é estranho que essa luminosidade toda não encha o mundo de estrondos?

Ele havia morrido há algum tempo. Todos olhavam o caixão, o homem deitado confortavelmente dentro. Ainda podiam ouvir seu pedido veemente de que queria ser enterrado dentro de um caixão e no pátio da igreja, e em nenhum outro lugar mais. Os mais chegados, pois os poucos que estavam lá eram dessa categoria, se entreolharam preocupados. Se o morto escapara de ser enterrado enrolado numa rede, mas sim num caixão último tipo com visor de vidro de onde poderia ficar olhando a terra e alguma raiz, o último pedido não fora aceito pela igreja, pois o homem só fora o coroinha. Dona Maria, a viúva, tinha os olhos baixos, preocupada mais do que os outros. Então chegou a hora de dar continuidade ao enterro, pois o velório fora cumprido. Os homens então tomaram a posição nas alças e, seguidos pelos choros e lamurias, gritos de que o malandro fora o melhor homem do mundo, saíram da pequena capela e tomaram o rumo do cemitério municipal, localizado no topo de um minúsculo morro no centro do distrito.

Foi então que todos perceberam que os homens, seis nas alças, suavam cada vez mais, e a velocidade diminuía, com os pés parecendo se arrastar cada vez mais. Esforçados, os homens, incomodados, torciam-se para aguentar e empurrar o caixão pelas alças.

Reclamando e resmungando eles pararam e desceram o caixão no chão.

- Esse caixão está pesado demais, gente! - reclamou um deles, visivelmente cansado sob o olhar de estranheza do cortejo.

- É verdade... - bufou um amigo que olhava penalizado para as mãos. - Meus braços estão doloridos demais e estão me matando.

- Não é possível, não! - reclamou a Dona Maria. - Ele era tão magrinho,...

- Então é mandinga - sussurrou um outro, fazendo rapidamente o sinal da cruz, afastando-se um passo do caixão, para o qual olhou com temor.

- Vamos ver isso! - atreveu-se um dos acompanhantes, chamando outros cinco que logo tomaram suas posições ao lado do caixão.

Por mais que se esforçassem, o caixão elevava-se somente alguns centímetros do chão. E se esforçaram tanto que passaram a temer que as alças, tal a força aplicada, acabassem se soltando da madeira.

Seu Firmino, um sujeito muito amigo do falecido, após ter olhado demorado para o caixão e para o rosto do falecido por trás do vidro, pediu que todos se virassem para o outro lado e levantassem o caixão, como se fossem retornar para a igreja.

Surpresos, os homens confirmaram que o caixão estava muito leve.

Assim elucidada a questão do peso, tentaram afastar-se da igreja de ré. Era só pararem e tentarem dar um passo para trás para o caixão parecer pesar centenas de quilos, ameaçando escapar das mãos dos homens.

Por mais que se esforçassem, nas várias horas sob os cochichos preocupados das mulheres e do ajuntamento de pessoas que iam se aglomerando, todo esforço era em vão.

O padre também chegou. Ao saber do que acontecia, depressa rezou e jogou um monte de água benta em cima do caixão. Quase praguejando, viu que nem isso adiantava. Ameaçou excomungar, e também não adiantou. O coveiro também chegou ao lado do caixão e ameaçou o homem, do outro lado do vidrinho, de enterrar ele de qualquer jeito no buraco, se não fosse logo. Com raiva ameaçou até mesmo enterrar ele de bruços.

Nada!

Sob o olhar da pequena multidão, cada um se aproximava e tentava convencer o morto a se deixar levar.

Nada surtia efeito.

Foi nesse momento, quando os homens estavam desconsolados por só terem conseguido avançar em direção ao cemitério poucos metros, que passava um peão a cavalo.

O peão freou o cavalo, tirou o chapéu e o pôs de encontro ao coração, tomando uma postura respeitosa. Curioso observou então os homens suados e cansados, as mulheres preocupadas, o cortejo que se resignava a ficar parado, o caixão pousado no meio da rua de terra batida.

Apeando, achegou-se a um dos homens. Após ser colocado a par do que acontecia, balançou a cabeça em sinal de que compreendera.

- Ora, seus moços. Se me dão licença para dizer, só precisam pegar um cipó de marmelo e bater no caixão. Ele logo vai deixar de querer puxar o corpo para outro lado. Uma surra vai resolver esse problema.

Os homens fizeram uma reunião com a dona do corpo, Dona Maria, que consultou as comadres. Após muitos confirmarem que já tinham ouvido algo semelhante, decidiram que não custava nada tentar, pois que já estavam de saco cheio de tanto lutar contra o defunto.

Então, três homens tomaram em suas mãos chicotes de marmelo que haviam arranjado no mato e desataram a bater com eles no caixão do morto. Quando cansavam, outros assumiam o lugar. E foi uma felicidade geral, com todo mundo querendo bater no caixão. Até o padre, para preocupação do peão que dera a ideia, parecia querer bater no morto.

A Dona Maria ficou preocupada quando viu que todos faziam fila para tomar os chicotes para açoitar o morto e pareciam ter se esquecido que precisavam leva-lo para o cemitério, para ser enterrado. Mais preocupada ficou ao perceber que também estava com vontade de participar da surra.

- Gente, gente,... Não vamos enterrar o falecido?

De súbito os homens pararam os reios já um tanto em frangalhos no ar e olharam como que saídos de um sonho para os outros.

Como se nada tivesse acontecido, tomaram novamente as alças.

Um único empuxo e sorriram satisfeitos, tomando velozmente a direção do cemitério sob o olhar divertido do peão, que esporeou o cavalo e se perdeu na curva.

Quase correndo para aproveitar que o caixão estava agora mais leve que uma pluma, temendo que o falecido embuchasse de raiva, chegaram no cemitério e o depositaram na beira da cova aberta.

As palavras do padre foram breves, afoitas até. Vira e mexe as pessoas olhavam para o defunto, receosos de que ele aprontasse alguma, para mostrar seu desagrado pela maneira com que fora forçado a aceitar algo que não era seu desejo.

É por este motivo que a encruzilhada que leva ao cemitério ficou sendo chamado de a encruzilhada do açoite. Por isso, não é de se estranhar resmungos de descontentamento e resmungos de dor que lá se ouvem em noites pesadas, como se algo tivesse sido deixado para trás, lá naquela encruzilhada.

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