Asas que foram, ar que somos, revoltos no céu teimado azul e branco. A pena de Deus desce e escreve em nosso ser nosso destino. Asas que somos, ar que fomos, pesados, desejosos de não saber dos segredos escritos em nós.
A floresta penumbrosa, espantosamente antiga em seu cheiro e em seus sons, parecia encará-lo de volta, num desafio debochado. O menino espremeu entre os dedos as abas da camisa e a examinou preocupado, a mente remoendo estórias que lhe contavam como se não fossem verdadeiras, mas que ele sentia que estavam todos enganados. Em silêncio, encarando a penumbra pesada além dos troncos que pareciam formar um imenso muro verde e movediço, perguntou-se se, algum dia, algum homem já calcara aquele solo, aquelas veredas, aquelas trilhas de animais. Preocupado fechou mais fortemente os olhos, temendo com ardor uma resposta negativa pois, se ela viesse, aquela seria uma terra proibida e ele, que era menor que muitos que vivera, não poderia estar ali. Olhou ressabiado para as ramagens escuras, para as árvores sisudas e compenetradas de cascas grumosas.
O menino hesitou mais uma vez, ao ouvir novamente as vozes distantes, parecendo estar dentro da mata, embrenhada nela. Suspirou fundo, tentando relembrar em que ponto daquela parede verde sem fim haviam entrado, seu pai e os amigos dele.
- Fique bem aqui. - lembrou seu pai mandando, brandindo com cuidado o machado de lamina branca de fio novo rebrilhando, olhando-o severamente.
Sem falar nada apenas balançou a cabeça em sinal de que cumpriria a ordem. Mas passara uma borboleta azul e gigantesca, e um pássaro muito colorido se assentara numa árvore seca um pouco além, em algum lugar a direita ou a esquerda do caminho, para os lados do regato.
Porém, quando se dera conta de que o sol estava começando a ficar muito alto, e que as vozes estavam quase sumidas, resolveu procurar o local onde seu pai disse que deveria esperá-lo.
Devagar, prestando atenção nas imagens que via surgir, lembrou que do lado direito do caminho havia uma árvore gigantesca, igual àquela que estava bem à sua frente. Agora, examinando com mais confiança o local, tinha certeza de que era por ali que eles tinham entrado, e por onde parecia que as vozes estavam desaparecendo, tanto que quase não podiam mais ser ouvidas.
Sem ter certeza de onde seu pai mandara que ficasse, resolveu que o mais seguro era ir atrás deles. Tomando coragem avançou com a terrível arma, um canivetinho com lamina de uns dois cm apertado em sua mão, apontado para o coração da floresta. Assoviando, tal como seu pai lhe ensinara, pisou o chão com cada vez mais suavidade para não despertar inimigos ocultos. Avançou enquanto seus lábios trocavam o assobio por uma reza silenciosa, chamando anjos para que não o deixasse esmorecer, se acovardar frente à vida.
Avançou...
Mas o avanço não se mostrava fácil: os cipós e ramagens e arbustos pareciam prender-se entre si, ligando-se, enroscando-se, entretecendo-se, agarrando-o, impedindo que ele tomasse o caminho livremente, como se desejassem que não se fosse, que ficasse com eles, como seu brinquedo. No entanto, percebeu, esse esforço era benéfico ao impedi-lo de ficar remoendo pensamentos tenebrosos.
Empenhou-se com mais afinco na luta contra a mata.
Lentamente foi progredindo, cada vez mais, seguindo uma voz que parecia ser formada por vento e sons de sussurros que chamavam seu nome. Foi então que o pânico ameaçou tomar seu coração, ao perceber que as vozes agora estavam escondidas em zumbidos de insetos e cantos de pássaros distantes. Um sorriso se alargou em seu rosto quando, na sua frente, surgiu uma trilha muito usada, que teve certeza que deveria tomar.
O caminho mostrou-se mais fácil.
Os braços comichavam e estavam lanhados. Sorriu em agradecimento, afastando os mosquitos que o importunavam.
Sem perceber chegou numa área mais desimpedida só feita de árvores, de suas folhas, de seus galhos e de suas raízes. As árvores estavam mais espaçadas e o mato era mais rasteiro; a visão podia estender-se mais livremente, como seus passos também.
Curioso, correu a vista pelo chão. Mas ele não conseguia descobrir o chão. Ele estava recoberto, até onde conseguia ver, por raízes grossas ao rés do chão, em sua maior parte e, em outras, por raízes sobre raízes.
E, senhor absoluto, havia um vento que parecia viver ali, aparentemente sussurrando coisas às árvores, dando-lhes notícias dos lugares distantes, talvez até mesmo procurando incitá-las contra ele, a pobre e indefesa vida que se perdera ali, desavisada e miserável.
O menino parou e prestou mais atenção no ar. Havia um silêncio pesado e diferente dentro daquela penumbra verde e cheirosa.
Pássaros e macacos faziam viva a floresta, como sons do vento e dos galhos e folhas, e coisas rastejando no chão, mas naquele ar não vivia qualquer voz de homem.
O menino sentou-se desconsolado numa grossa raiz de uma árvore gigantesca. Olhou para os lados, e foi aí que se deu conta de que nem mesmo sabia de onde tinha saído para a clareira. Ela era cercada por uma parede inexpugnável de verde movente. Não havia trilha, não havia qualquer picada. O desespero atingiu sua alma e ele sucumbiu. Gritou, gritou muito, durante muito tempo. A floresta agitou-se mais, parecendo agigantar-se ameaçadoramente sobre ele, reagindo ao seu desespero.
Envolvendo a cabeça entre os braços e os joelhos o menino chorou, temendo a noite que avançava.
Levantou-se e examinou com mais cuidado a sua volta, enxugando os olhos com as costas da mão. Sabia que estava sozinho e precisava tentar achar alguma solução para que essa verdade não o destruísse.
No chão procurou sinais de seus passos. À volta de toda a clareira caminhou, procurando, e não encontrou qualquer sinal, a não ser aquele de onde saíra da raiz da árvore para procurar uma saída.
Voltou para o interior da clareira, para a raiz.
Chorava novamente quando sentiu algo tocar seu ombro.
Rapidamente levantou a cabeça, e assustou-se quando deu com um homem de face plácida encarando-o de volta.
- Está perdido, meu menino? – ouviu-o perguntar.
A voz era clara e gentil, e ele se sentiu esperançoso e controlou sua felicidade. Não via de onde ele viera.
- Eu... eu não sei como sair daqui... - chorou. - Pode me ajudar?
- Aqui é meu lar, menino - disse o homem de rosto bondoso. - Não posso sair daqui.
O menino não discutiu. Sentiu, sem saber como, que aquela era uma verdade.
> Venha - pediu o homem. – Entre aqui dentro - apontou para grossas e inúmeras raízes levantadas do chão e muito entrelaçadas, formando como um grosso tubo. - Aqui poderá descansar em paz na noite, e nada o perturbará. E ali - apontou, - aquela árvore poderá lhe dar alimento, como a água fresca poderá obter daquele regato.
O menino se alimentou e bebeu água e examinou o céu. O sol escondia-se por trás das copas, a luz diminuía rapidamente. Quando estava ficando difícil de ver, o menino embrenhou-se no tubo e, encolhido, ficou quieto, escutando a noite. Bichos rastejavam na porta da caverna, muitos cheiravam ali dentro, mas nenhum deles parecia se importar com ele, mas apenas pareciam ter curiosidade.
Nenhum deles tentou entrar.
No dia seguinte, para seu alívio, o homem já o esperava do lado de fora. Com ele foi colher frutos e tomar água. Conversaram muito. O homem lhe disse que fora a noite achar um caminho para que ele pudesse sair. O menino agradeceu, e ouviu que ele ouvira na noite sons muito distantes, talvez de homens que o procuravam.
Foi no terceiro dia que algo estranho aconteceu e que o deixou mais tranquilo. Foi quando estava cavando o chão atrás de uma raiz saborosa, como o homem lhe ensinara, que sentiu um perigo tremendo. Levantou-se e, na orla da clareira, a viu. Uma onça poderosa, as listras de sombra correndo por seu dorso redondo e majestoso, como se estivessem vivas. A onça o farejou e seus olhos brilharam quando o encontraram. O passo começou a acelerar em sua direção.
O menino recuou apavorado.
A onça iniciou um trote, sem tirar os olhos dos do menino. Ela, repentinamente, diminuiu o passo e acalmou-se. O homem, como um passe de magia, estava ao seu lado. A onça aproximou-se e lambeu a mão do homem que encorajou o menino a acariciar a cabeça grande e pesada da fera, que rosnou suave. Após um salto incrível ela desapareceu nas sombras da floresta de onde havia se destacado.
Foi no quarto dia que o homem chamou-o logo de manhã e mandou que se alimentasse bem e não bebesse muita água, pois iriam buscar sair da mata.
Tomaram um caminho que mal se via na orla, e que o menino jurava que nunca tinha visto. Era como se o mato simplesmente tivesse se aberto a uma ordem poderosa demais para não ser cumprida.
Caminharam por muitas horas, atravessando riachos e lodaçais rasos. Perto do meio-dia descansaram, e o menino colheu algumas amêndoas que guardou nos bolsos.
Seguiram adiante, o homem bondoso na sua frente.
Em dado momento, perto do findar do quarto dia, o homem apontou para a frente.
Repentinamente o menino ouviu um som familiar. Ao ouvi-lo esqueceu-se de tudo e, gritando em desabalada correria, encontrou seu pai, que deu um grito de alegria e caiu de joelhos. Assim que lhe caiu nos braços o pai o apertou fortemente, os olhos rasos d’água molhando sua face.
Após passada a emoção do reencontro o menino virou-se para a mata e procurou o homem que o ajudara. Não o vendo por perto arrastou seu pai e os amigos para dentro da mata. Após longa procura, voltaram para casa, o menino olhando de quando em quando para os lugares que deixava para trás.
O pai, vendo que o filho mantinha as mãos apertadas, abriu-as e encontrou as amêndoas apertadas lá. Seus olhos estavam marejados, e uma dor agradecida estendeu-se pelo seu coração. Sem dizer palavra tomou aquelas sementes, que plantou ao redor da casa.
O homem nunca mais foi visto, como a clareira nunca foi localizada, pois os homens que conheciam aquela floresta como a palma da mão diziam que uma clareira como aquela não existia.
O pai, a partir daquele dia, sempre ao entardecer aproximava-se da borda da floresta e, ajoelhando junto com seu filho, rezava ao anjo que se compadecera de seu desespero e de sua dor, e que protegera seu filho de seis anos de idade.
Não é estranho que essa luminosidade toda não encha o mundo de estrondos? Ele havia morrido há algum tempo. Todos olhavam o caixão, o homem deitado confortavelmente dentro. Ainda podiam ouvir seu pedido veemente de que queria ser enterrado dentro de um caixão e no pátio da igreja, e em nenhum outro lugar mais. Os mais chegados, pois os poucos que estavam lá eram dessa categoria, se entreolharam preocupados. Se o morto escapara de ser enterrado enrolado numa rede, mas sim num caixão último tipo com visor de vidro de onde poderia ficar olhando a terra e alguma raiz, o último pedido não fora aceito pela igreja, pois o homem só fora o coroinha. Dona Maria, a viúva, tinha os olhos baixos, preocupada mais do que os outros. Então chegou a hora de dar continuidade ao enterro, pois o velório fora cumprido. Os homens então tomaram a posição nas alças e, seguidos pelos choros e lamurias, gritos de que o malandro fora o melhor homem do mundo, saí
Ele estava com os olhos fixos, penetrantes, debruçando-se sobre minha alma, num exame atento, como um caçador que marcou a caça. - Eu estava esperando na encruzilhada onde me encontraram - falou o menino de aspecto lívido. - Fiz um acordo com o diabo, e ele me disse para esperar por vocês. Os meninos se entreolharam preocupados, receosos. Então eles haviam sido citados pelo diabo, e faziam parte de um plano dele. Depressa ajoelharam e rezaram, amedrontados com o que se insinuava. Afinal, ninguém gostava de saber que estava sendo utilizado pelo diabo. Quando se acalmaram iam perguntar para o garoto como ele era quando viram um ônibus muito velho vindo pela estrada. Chegaram para o acostamento, dando passagem livre para o ônibus. Estranharam quando viram a seta acender-se, o que parecia obrigar o ônibus a ir para o lado deles. Então o ônibus parou, deixando-os bem de frente para
Era um dia claro sobre o monte do alemão, aquele em que voltei para a minha terra, cansado da lida com a vida. E havia os que vinham ao meu encontro, aos quais ensinei o que só sabia por saber. E havia muitos deles, mais desenvolvidos e mais poderosos que eu. Fiquei feliz por eles. A velhice me alcançou e, no leito onde morria, me recompus, chorando pelo que havia e pelo que não havia feito. Num estouro de bolha de sabão chegou a hora de ir. A chuva vinha anunciada pelo vento frio que varava a mata, assobiando ligeiro. Jeremias olhou para a sua mulher, desmaiada sob o pesado pau de esteio da casa, que caíra sobre ela. Apesar de todo seu esforço para levantar o pau não conseguiu, o que o deixou incomodado; afinal, sempre erguia pesos bem maiores que aquele. Devia estar com uma ponta travada, pensou. Olhou para baixo de uma parede caída e viu um pé, e ficou cismando que deveria ser de um homem. Pela sua mente passou que não havia ningué
Cuidar e acarinhar a vida, paixão desdobrada da alma. A consciência da vida é só uma pequena parte da magia. O homem andava tranquilo e pensativo, as mãos unidas às costas. Ao seu lado iam sua esposa e um dos filhos do dono da fazenda. Conversavam sobre o tempo e outras coisas banais, até que o homem parou junto a um crânio. Ainda pensativo mexeu nele com o pé, e expressou sua surpresa por um osso tão grande quanto a cabeça de uma vaca ser tão leve. Enquanto falava virou o crânio para baixo e viu três dentes, os de trás, moles, bambos. Foi então que o filho do dono, chamado Fabio, pediu para ele colocasse a cabeça de novo para cima, que ele ia lhe mostrar algo. E mostrou um buraco no alto da cabeça de bordas irregulares voltadas para dentro, que demonstrava ter sido provocado por um impacto que estilhaçara o crânio. - Ele foi morto a marretadas - contou. O homem percebeu que havia uma dor, um mal-estar
A verdadeira magia é acreditarmos que ela não existe. João Zimbrózio, ou Ozimbro, como era chamado, sempre foi um rapaz pensativo, corajoso e amigável. Ele gostava de sair de manhã, nos sábados e domingos, e subir a montanha do alemão, de face para o vale onde sua cidade se aninhava, aconchegante. Após atravessar a linha de trem tomava um aclive sombreado que ia subindo uma vertente coleante, onde fora cavado, há muitos e muitos anos, uma vala divisória pelos escravos dos senhores. Naquele dia o céu estava azul e a temperatura estava deliciosa, daquele frio maravilhoso num dos primeiros dias de primavera. O ar estava cheiroso e límpido. Quando chegou lá em cima, no cume da montanha, Ozimbro olhou com carinho sua cidade, pequena como um brinquedo. Respirou fundo, agradecido por viver naquela cidade, naquela família. Satisfeito voltou-se para a floresta onde se sentia bem. A velha trilha que sempre seguia estava à sua frente. Se
Seus olhos... Talvez nunca tenha visto um assim. Quanta dívida acumulei com sua alma? Foi um alvoroço naquela noite, um rebuliço. Afinal, todos comentavam à boca pequena. Por várias pessoas passou um vento rasteiro acompanhado de um assobio que chegava até a doer nos ouvidos. Ninguém entendeu nada, até que o Seu Nhô contou que viu, no largo do rosário, onde vários escravos foram enforcados e torturados até a morte, um porco esquisito correndo, seguido por uma ventania que sibilava. E esse porco tinha só uma pata na frente e só uma outra atrás. Ele achou esquisito, ainda mais quando ele voltou a cabeça para o seu lado e deu para ele ver que seus olhos eram como dois pedaços de brasas vivas. Correu para ver. Assim que ele chegou mais perto o porco sumiu num vento que assoviava. Ele foi ver na fogueira apagada que ele estava fuçando, e viu que ele tinha comido todos os carvões e até mesmo os tições que ainda tinham alguma
Quer mesmo que eu conte com o que a infância sonha? Quer mesmo saber o que esqueceu? Clécio ficou olhando sua esposa na cozinha, junto ao fogão de lenha. Das panelas de ferro subiam nuvens de vapores saborosos que cheirou deliciado. Suspirou agradecido. Quando, nessa sua vida, pudera pensar que, algum dia, poderia dizer que seria tão feliz? Ali, cantarolando esquecida uma música de rádio, a mulher mais linda que se poderia pensar; e era a sua esposa. Pigarreou levemente e sorriu para a esposa que voltara aqueles olhos negros de jabuticaba para os seus, com aquele sorriso que sempre o fazia pensar em anjos. Sorriu satisfeito. Então, após dar um longo beijo nela, pegou do prego no portal o reio e saiu para buscar o burro no campo. No entanto, assim que saiu da casa e da proximidade mágica de sua esposa, seu coração pesou. Dali a dois dias seria a sexta-feira santa, e esse dia, nos últimos dois anos, o intrigavam e o preo
Durou o tempo necessário para que se tornasse eterno. Sempre há muitas estórias de homens e mulheres, e marido e mulher, pais e filhos que juram que, se um morrer, o outro irá logo atrás, ou virá contar ao outro como é do outro lado, ou que ficará velando por ele, porque parece ser essa a certeza que existe na alma do homem, de que tudo continuará depois da morte, independentemente dos esforços milenares das religiões. E Mariazinha e João trocaram essa promessa entre si. Mariazinha vivera a vida inteira com ele, desde que completara quinze anos de idade. Depois de mais de sessenta anos junto dele, a vida parecia ter perdido o sentido, quando ele se foi. Sua dor pareceu aumentar, porque havia aquele sentido de uma despedida, quando levaram o corpo para a casa sede do filho mais velho, por ser mais moderna, mais espaçosa e a estrada passar bem do lado. O desamparo e o abandono pareciam imensos demais para ser suportado.