Quer mesmo que eu conte com o que a infância sonha? Quer mesmo saber o que esqueceu?
Clécio ficou olhando sua esposa na cozinha, junto ao fogão de lenha. Das panelas de ferro subiam nuvens de vapores saborosos que cheirou deliciado. Suspirou agradecido. Quando, nessa sua vida, pudera pensar que, algum dia, poderia dizer que seria tão feliz? Ali, cantarolando esquecida uma música de rádio, a mulher mais linda que se poderia pensar; e era a sua esposa.
Pigarreou levemente e sorriu para a esposa que voltara aqueles olhos negros de jabuticaba para os seus, com aquele sorriso que sempre o fazia pensar em anjos. Sorriu satisfeito. Então, após dar um longo beijo nela, pegou do prego no portal o reio e saiu para buscar o burro no campo.
No entanto, assim que saiu da casa e da proximidade mágica de sua esposa, seu coração pesou. Dali a dois dias seria a sexta-feira santa, e esse dia, nos últimos dois anos, o intrigavam e o preo
Durou o tempo necessário para que se tornasse eterno. Sempre há muitas estórias de homens e mulheres, e marido e mulher, pais e filhos que juram que, se um morrer, o outro irá logo atrás, ou virá contar ao outro como é do outro lado, ou que ficará velando por ele, porque parece ser essa a certeza que existe na alma do homem, de que tudo continuará depois da morte, independentemente dos esforços milenares das religiões. E Mariazinha e João trocaram essa promessa entre si. Mariazinha vivera a vida inteira com ele, desde que completara quinze anos de idade. Depois de mais de sessenta anos junto dele, a vida parecia ter perdido o sentido, quando ele se foi. Sua dor pareceu aumentar, porque havia aquele sentido de uma despedida, quando levaram o corpo para a casa sede do filho mais velho, por ser mais moderna, mais espaçosa e a estrada passar bem do lado. O desamparo e o abandono pareciam imensos demais para ser suportado.
Então os magos, em assembleia, puseram um limite ao tempo e prenderam o mal dentro de sua criação. Agora, entre cada batida do coração, o tempo do sonho pode voltar. Os policiais vieram correndo, atendendo aos pedidos confusos dos três homens. Assim que terminaram de subir as escadas viram, mais avançado no corredor, o quarto com as portas escancaradas. Enraivecidos partiram em sua direção, procurando entre os rostos amontoados às portas os responsáveis pela desobediência à ordem judicial que impedia que a cena do crime fosse aberta. Ao ouvirem o tropel as pessoas que olhavam para dentro abriram caminho para os homens da lei. Mas eles estacaram, as perguntas presas na garganta, a respiração falhando, os olhos esbugalhados de espanto, somando-se a todos os outros confusos. Fora ali, no oitavo andar daquele prédio, que um crime hediondo fora cometido. Apesar de três dias já terem transcorr
É muito estranho e inacreditável ser objeto inconcebível e inquestionável de tamanho ódio, mesmo quando se confunde com indiferença por ser natural.- Tudo bem, eu vou contar para vocês - aceitou acendendo o cigarro de palha no lampião. - Eu estava andando não muito longe daqui, lá pelas bandas do vara-pau, acho que perto da divisa da fazenda do Zé Ferraz. A noite estava tranquila, e o barulho era apenas o velho conhecido dos bichos da noite e do casco do meu cavalo. De repente eu percebi que havia me distraído, e que tudo estava silencioso há algum tempo; eu não ouvia mais nem o som do cavalo, nem do mato nem qualquer outro. O som que eu ouvia era o de um barulho surdo de uma respiração andando ao meu lado, no meio do mato, na beira do caminho. O cavalo ficou um pouco arredio e amedrontado, mas eu acariciei ele e ele acabou se
Quando no astral penso, eu crio, e o que crio vive, morrendo se dele afasto meu pensamento. A criação saberá que está viva? Sabemos nós que estamos vivos? Zé Cajarana abriu os olhos pesados como chumbo, praguejando ao sentir a cabeça estalar e martelar dolorosamente. Aquele era um pequeno mal-estar, se disse, soltando uma praga mais feroz. Resmungando apoiou a mão na cama e levantou-se do chão, dando a volta num vômito. Assim que chegou na porta do quarto encontrou a mãe na sala, olhos baixos, pregados no bordado no qual os dedos enrugados e trêmulos se prendiam. Cajarana olhou para ela com raiva. Desprezava, com uma indiferença amarga, aquele ser fraco e lamuriento que só sabia se arrastar e choramingar. No começo até que ela havia tentado colocar-lhe um freio, mas ele conseguira colocá-la no seu devido lugar, pensou com prazer vendo a mancha escura no lado esquerdo da testa e num olho que não parava de lacrimejar, um
O monstro move-se lento e soberbo. Uma onda colossal sobe, se agiganta e avança pesada. Por fim todo o poder acumulado rola sobre a praia e sobre a aldeia, que some. E os homens, desaparecidos ao viveram, saberão que não estiveram lá. Na noite azulada a tempestade rugia com violência. Quando seus olhos se preparavam para fechar ele viu que o imenso mastim estava correndo solto na noite. Relâmpagos espocavam e abriam brechas na escuridão azul. O mastim, parecendo tomar força da força do caos, fustigado pela tempestade continuava a correr na direção do homem que aparentava tranquilidade. O salto foi magnífico e elástico. Quando saltou podia-se ver os músculos poderosos e as presas como adagas na cara repuxada e ouvir seu rosnado terrível cheio de um poder frio e cruel. Repentinamente, como se tivesse sido capturado por uma imensa e pegajosa teia de aranha, o mastim interrompeu seu voo. Ganindo e movendo frenética e deses
Sua voz era como uma música, como um campo de capim gordura sob a brisa e o sol, ondulando como se Deus passeasse sobre a terra, evocando algo infinitamente maior que a vida. Nunca, nunca devemos nos permitir perder a capacidade de nos maravilharmos. A mulher encolheu-se na cama. Com bastante cuidado para não assustar o marido, colou os lábios no ouvido dele e sussurrou: “Acorde, ele voltou! Acorde, por favor, ele voltou”! Ela sentiu quando o marido mexeu-se quase desperto, demonstrando que estava preparado. De mãos dadas ficaram ouvindo. Da sala vinha o ruído, que agora parecia acontecer todas as noites. Ruído de cadeiras sendo arrastadas para os lados se fez ouvir, como da mesa que parecia ser arredada para um lado. Com as respirações suspensas ouviram os passos que, tranquilos e cuidadosos, vieram na direção do quarto em que estavam. À porta os sons pararam, e tudo ficou em silêncio. Depois de alguns minutos recomeç
Fazer e refazer, numa brincadeira cruel. Fantasmas soltos ao raiar do dia, a bater-se contra os muros do castelo. Perdidos e errantes é a sina e a maldição. Os deuses do ar e da terra e da água, sujeitos a UM, buscam uma vítima para imolar, e só poderá ser um homem, numa eterna roda não compreendida. Os homens bateram palmas esfuziantes enquanto as mulheres gritavam vivas febris. Pela rua esmeradamente calçada de seixos e limpa dos matos, recentemente recuperada juntamente com o casarão, vinha o som dos cascos batendo nas pedras. Repentinamente, sem que qualquer um pudesse precisar, a carruagem fantasma lendária rompeu a estranha neblina leve que surgira como num passe de mágica sem que qualquer um pudesse dizer que a vira surgir, bem à luz do dia que nascia. O cocheiro silencioso, em sua pose distante e orgulhosa, olhando para um ponto distante na paisagem, acima das árvores, puxou as rédeas bem à frente da mansão. At
Apenas fiquei em silêncio, sentindo minha alma, sentindo uma linha me ligando à sanidade, fina, difícil de perceber. Será que devo continuar me perguntando se acaso deixei escapar essa linha? A mulher olhou bem nos olhos maliciosos do homem ao seu lado. Fez um muxoxo com a boca e voltou a encarar o copo de cerveja à sua frente, no balcão. - Você é muito confiante, mas eu te digo para ter cuidado – falou o homem. - Pois sei que você está me ameaçando, e isso não me afeta em nada. - Ameaçando? Eu? Que jeito mais rude de falar. Por que você é tão cruel? - Cruel eu, é? Não é você que está dizendo que vai me comer? - Se continuar a insistir que quer uma prova, vou sim. Agora, me diga, por que não deixa isso de lado? Vá com seu marido e esqueça essas estórias. - Eu não posso. Eu preciso ver, eu preciso ver, só isso! - Confie em mim. Sem rabo... - Sem rabo, é? Impossível! - falo