Ele estava com os olhos fixos, penetrantes, debruçando-se sobre minha alma, num exame atento, como um caçador que marcou a caça.
- Eu estava esperando na encruzilhada onde me encontraram - falou o menino de aspecto lívido. - Fiz um acordo com o diabo, e ele me disse para esperar por vocês.
Os meninos se entreolharam preocupados, receosos. Então eles haviam sido citados pelo diabo, e faziam parte de um plano dele. Depressa ajoelharam e rezaram, amedrontados com o que se insinuava. Afinal, ninguém gostava de saber que estava sendo utilizado pelo diabo.
Quando se acalmaram iam perguntar para o garoto como ele era quando viram um ônibus muito velho vindo pela estrada. Chegaram para o acostamento, dando passagem livre para o ônibus. Estranharam quando viram a seta acender-se, o que parecia obrigar o ônibus a ir para o lado deles. Então o ônibus parou, deixando-os bem de frente para a porta, que se abriu com suavidade e lentidão.
Desconfiados olharam para dentro e deram com um velho negro, de olhar distante. O velho apenas fez um sinal para que entrassem.
- Não temos dinheiro. Dependemos de carona.
- Este ônibus pega apenas os que não têm dinheiro - disse o velho. - Podem subir.
- Ah, moço, não sei não! - retrucou um deles muito desconfiado.
- Não tenham medo – encorajou o velho com um largo sorriso, que parecia não se casar muito bem com aquele rosto de aspecto distante.
- E porque deveríamos pegar carona com você, velho?
- Porque o diabo está aí fora, e está vindo aí atrás, por vocês. Se querem aguardar que ele ou os seus os abordem, tudo bem - disse fazendo menção de acionar o fechamento da porta.
Muito rapidamente os quatro meninos já estavam dentro do ônibus, sentados nos únicos quatro bancos em fila atrás do motorista. Todo o resto dele estava tomado por panos velhos e rotos dependurados do teto, que se mexiam com os ventos que vinham das janelinhas abertas.
Os meninos se entreolharam novamente, indecisos sobre como proceder. Temiam terem cedido a uma ameaça e caído numa armadilha.
- Sabem, meninos - começou o velho falando bem alto, enquanto guiava pela estrada poeirenta, que ia como uma seta até se perder além do horizonte, - vocês pediram, e ele me mandou cuidar de vocês. Mas, como veem, apenas sei dirigir - riu um riso que parecia se perder junto com a poeira do caminho.
- Então, o que pode fazer por nós?
- Nada, eu acho - riu novamente, agora com um jeito encorajador. - No entanto, isso dependerá mais de vocês mesmos do que de mim, como sempre acontece. Vocês começaram a resistência, e devem continuar, sob pena de um dia, talvez indefinido no futuro, terem que começar a resistir para escapar.
- Escapar de que?
- Do demônio, ora bolas. De suas promessas, de suas ilusões. Trocam-se coisas valiosas por coisas que são menos que nada - disse olhando diretamente para o menino que parecia ter se tornado ainda mais lívido, que depressa baixou os olhos totalmente sem-graça. - É a evolução natural. Algumas almas avançam mais rapidamente, outras bem mais lentamente, mas todas avançam... Poder-se-ia evitar muitas dores se a compreensão fosse natural...
- E também a evolução ficaria sem-graça - ouviram uma voz sair do banco ao lado do motorista.
Prestando mais atenção viram que ali estava uma aparição, um fantasma de uma mulher idosa.
- Se Ele quisesse já teria feito todos perfeitos, e ninguém precisaria aprender com os erros próprios ou dos outros - rebateu com tranquilidade. – Seria muito chato, isso.
- Que assim seja... Isso faz parte dos mistérios dele - disse o velho para os garotos piscando um olho cúmplice.
- Esse ônibus é mágico? - perguntou o menino mais novo, fascinado pela estrada que parecia não ter fim naquele dia que parecia se recusar a ir embora, apesar do motorista ficar mexendo no volante como se estivesse fazendo algumas curvas.
- Tudo é mágico, meu menino. Até o voo de uma mosca ou um sorriso são mágicos - disse com bondade. - Agora, se fala de coisas que acontecem, fora da normalidade, estranhas, nunca vistas ou, ao menos, nunca faladas, tais como um morto reviver ou uma vaca voar, ou um homem se lembrar de coisas difíceis de se lembrar,... então posso lhe dizer que isto é mais comum do que parece. Há muitas coisas acontecendo o tempo todo, que não são comuns. Basta prestarem atenção no que chamam de coincidências para entenderem isso.
> Vocês, agora, estão começando uma dessas jornadas, vocês quatro. Por isso prestem muita atenção em tudo, pois vocês estarão diferentes quando ela terminar, como sempre acontece. Vocês verão coisas maravilhosas, e talvez até mesmo acabem juntando todos esses prodígios e maravilhas ao resto do que julgam comum; e assim será até o dia em que estiverem velhos demais, e crentes de que o caminho está para terminar. Mas aviso que será apenas um novo início... - disse num tom cativante e incentivador.
- E quanto ao pacto dele com o diabo? - perguntou o mais velho apontando para o menino pálido que, ao ser denunciado, empalidecera ainda mais.
- Nunca houve um pacto - sorriu a mulher interferindo com bondade. - Foi apenas uma forma de trazer uma confiança e uma força interior que ele sabia existir, mas preferia creditar ao diabo. Escolhas feitas. Nunca houve um pacto... Consegue ver isso? Não foi assim, meu bem?
- Eu acho que foi, dona - falou o menino envergonhado de estar mentindo para aquela mulher que parecia tão bondosa, apesar de ser um fantasma.
De repente viram que o ônibus havia parado quando a porta se abriu. Os meninos olharam com receio para a estrada, e perceberam que estavam no mesmo lugar onde haviam tomado o ônibus.
O menino mais novo, mais apavorado que os outros, reuniu suas forças para perguntar:
- Mas e o diabo que está atrás de nós?
- O diabo são as escolhas erradas que fazemos, que vão nos punindo cada vez mais. Serenidade e confiança, fé, meus meninos. Entendam que nunca estão sós e confiem... Tudo o que lhes dá tanto medo está sempre a uma distância mínima de vocês, e apenas suas escolhas os mantém intocados. Mas chegará um dia que entenderão que nunca houve nada a temer, a não ser o próprio medo de vocês, e nesse dia estarão livres, pois será essa a verdadeira escolha de vocês.
Os meninos se olharam confusos. Estavam no acostamento. Mas cada um deles sabia que não haviam sonhado. Nitidamente viram as marcas de pneus na poeira da estrada. Seguindo com os olhos viram quando elas iam se tornando imprecisas, até desaparecerem, como se o ônibus, a partir de um dado momento, tivesse ficado cada vez mais leve, até desaparecer no ar.
O mais velho dos meninos se aproximou do menino pálido, que tremia incontrolável.
- O que foi? - perguntou virando-se para olhar na direção que o menino olhava hipnotizado.
Seu espanto foi imenso. Um redemoinho vinha pela estrada, balançando os galhos das árvores, e dentro dele puderam ver com nitidez um bode negro de olhos vermelhos como brasas.
Os meninos juntaram-se à sua volta e gritaram para que ele não aceitasse o que vinha. Ainda gritavam quando perceberam que tudo havia passado, e o menino havia desaparecido.
O mais novo deles começou a chorar, penalizado pelo que havia acontecido com o amigo.
- Não chore - pediu o mais velho. - Essa foi a escolha dele.
- Então, por que o diabo havia falado para ele nos encontrar?
- Não foi o diabo. Foram os anjos que tentaram colocá-lo no caminho certo. Um dia, um dia ele vai entender, e vai se libertar - prometeu abraçando os outros dois.
- E você sabe o que ele acreditou ter negociado pela sua alma?
- Sabem, eu sabia que o conhecia assim que o vi na encruzilhada, mas ele havia mudado muito... Faz uns bons dois anos desde que ele mudou de colégio. No coléginho ele era o saco de pancadas dos meninos mais velhos, e todo mundo ria dele, até as meninas. Ninguém queria ser amigo dele - revelou com a voz baixa. - Eu acho que ele queria ser amigo dos que pudessem protegê-lo, e ele não deu importância aos que eram seus verdadeiros amigos.
- Você era amigo dele? - perguntou o mais novinho.
- Não! Infelizmente, eu era um dos que o espancava e ria dele – revelou, os olhos perdidos no horizonte, à procura de algo perdido.
Era um dia claro sobre o monte do alemão, aquele em que voltei para a minha terra, cansado da lida com a vida. E havia os que vinham ao meu encontro, aos quais ensinei o que só sabia por saber. E havia muitos deles, mais desenvolvidos e mais poderosos que eu. Fiquei feliz por eles. A velhice me alcançou e, no leito onde morria, me recompus, chorando pelo que havia e pelo que não havia feito. Num estouro de bolha de sabão chegou a hora de ir. A chuva vinha anunciada pelo vento frio que varava a mata, assobiando ligeiro. Jeremias olhou para a sua mulher, desmaiada sob o pesado pau de esteio da casa, que caíra sobre ela. Apesar de todo seu esforço para levantar o pau não conseguiu, o que o deixou incomodado; afinal, sempre erguia pesos bem maiores que aquele. Devia estar com uma ponta travada, pensou. Olhou para baixo de uma parede caída e viu um pé, e ficou cismando que deveria ser de um homem. Pela sua mente passou que não havia ningué
Cuidar e acarinhar a vida, paixão desdobrada da alma. A consciência da vida é só uma pequena parte da magia. O homem andava tranquilo e pensativo, as mãos unidas às costas. Ao seu lado iam sua esposa e um dos filhos do dono da fazenda. Conversavam sobre o tempo e outras coisas banais, até que o homem parou junto a um crânio. Ainda pensativo mexeu nele com o pé, e expressou sua surpresa por um osso tão grande quanto a cabeça de uma vaca ser tão leve. Enquanto falava virou o crânio para baixo e viu três dentes, os de trás, moles, bambos. Foi então que o filho do dono, chamado Fabio, pediu para ele colocasse a cabeça de novo para cima, que ele ia lhe mostrar algo. E mostrou um buraco no alto da cabeça de bordas irregulares voltadas para dentro, que demonstrava ter sido provocado por um impacto que estilhaçara o crânio. - Ele foi morto a marretadas - contou. O homem percebeu que havia uma dor, um mal-estar
A verdadeira magia é acreditarmos que ela não existe. João Zimbrózio, ou Ozimbro, como era chamado, sempre foi um rapaz pensativo, corajoso e amigável. Ele gostava de sair de manhã, nos sábados e domingos, e subir a montanha do alemão, de face para o vale onde sua cidade se aninhava, aconchegante. Após atravessar a linha de trem tomava um aclive sombreado que ia subindo uma vertente coleante, onde fora cavado, há muitos e muitos anos, uma vala divisória pelos escravos dos senhores. Naquele dia o céu estava azul e a temperatura estava deliciosa, daquele frio maravilhoso num dos primeiros dias de primavera. O ar estava cheiroso e límpido. Quando chegou lá em cima, no cume da montanha, Ozimbro olhou com carinho sua cidade, pequena como um brinquedo. Respirou fundo, agradecido por viver naquela cidade, naquela família. Satisfeito voltou-se para a floresta onde se sentia bem. A velha trilha que sempre seguia estava à sua frente. Se
Seus olhos... Talvez nunca tenha visto um assim. Quanta dívida acumulei com sua alma? Foi um alvoroço naquela noite, um rebuliço. Afinal, todos comentavam à boca pequena. Por várias pessoas passou um vento rasteiro acompanhado de um assobio que chegava até a doer nos ouvidos. Ninguém entendeu nada, até que o Seu Nhô contou que viu, no largo do rosário, onde vários escravos foram enforcados e torturados até a morte, um porco esquisito correndo, seguido por uma ventania que sibilava. E esse porco tinha só uma pata na frente e só uma outra atrás. Ele achou esquisito, ainda mais quando ele voltou a cabeça para o seu lado e deu para ele ver que seus olhos eram como dois pedaços de brasas vivas. Correu para ver. Assim que ele chegou mais perto o porco sumiu num vento que assoviava. Ele foi ver na fogueira apagada que ele estava fuçando, e viu que ele tinha comido todos os carvões e até mesmo os tições que ainda tinham alguma
Quer mesmo que eu conte com o que a infância sonha? Quer mesmo saber o que esqueceu? Clécio ficou olhando sua esposa na cozinha, junto ao fogão de lenha. Das panelas de ferro subiam nuvens de vapores saborosos que cheirou deliciado. Suspirou agradecido. Quando, nessa sua vida, pudera pensar que, algum dia, poderia dizer que seria tão feliz? Ali, cantarolando esquecida uma música de rádio, a mulher mais linda que se poderia pensar; e era a sua esposa. Pigarreou levemente e sorriu para a esposa que voltara aqueles olhos negros de jabuticaba para os seus, com aquele sorriso que sempre o fazia pensar em anjos. Sorriu satisfeito. Então, após dar um longo beijo nela, pegou do prego no portal o reio e saiu para buscar o burro no campo. No entanto, assim que saiu da casa e da proximidade mágica de sua esposa, seu coração pesou. Dali a dois dias seria a sexta-feira santa, e esse dia, nos últimos dois anos, o intrigavam e o preo
Durou o tempo necessário para que se tornasse eterno. Sempre há muitas estórias de homens e mulheres, e marido e mulher, pais e filhos que juram que, se um morrer, o outro irá logo atrás, ou virá contar ao outro como é do outro lado, ou que ficará velando por ele, porque parece ser essa a certeza que existe na alma do homem, de que tudo continuará depois da morte, independentemente dos esforços milenares das religiões. E Mariazinha e João trocaram essa promessa entre si. Mariazinha vivera a vida inteira com ele, desde que completara quinze anos de idade. Depois de mais de sessenta anos junto dele, a vida parecia ter perdido o sentido, quando ele se foi. Sua dor pareceu aumentar, porque havia aquele sentido de uma despedida, quando levaram o corpo para a casa sede do filho mais velho, por ser mais moderna, mais espaçosa e a estrada passar bem do lado. O desamparo e o abandono pareciam imensos demais para ser suportado.
Então os magos, em assembleia, puseram um limite ao tempo e prenderam o mal dentro de sua criação. Agora, entre cada batida do coração, o tempo do sonho pode voltar. Os policiais vieram correndo, atendendo aos pedidos confusos dos três homens. Assim que terminaram de subir as escadas viram, mais avançado no corredor, o quarto com as portas escancaradas. Enraivecidos partiram em sua direção, procurando entre os rostos amontoados às portas os responsáveis pela desobediência à ordem judicial que impedia que a cena do crime fosse aberta. Ao ouvirem o tropel as pessoas que olhavam para dentro abriram caminho para os homens da lei. Mas eles estacaram, as perguntas presas na garganta, a respiração falhando, os olhos esbugalhados de espanto, somando-se a todos os outros confusos. Fora ali, no oitavo andar daquele prédio, que um crime hediondo fora cometido. Apesar de três dias já terem transcorr
É muito estranho e inacreditável ser objeto inconcebível e inquestionável de tamanho ódio, mesmo quando se confunde com indiferença por ser natural.- Tudo bem, eu vou contar para vocês - aceitou acendendo o cigarro de palha no lampião. - Eu estava andando não muito longe daqui, lá pelas bandas do vara-pau, acho que perto da divisa da fazenda do Zé Ferraz. A noite estava tranquila, e o barulho era apenas o velho conhecido dos bichos da noite e do casco do meu cavalo. De repente eu percebi que havia me distraído, e que tudo estava silencioso há algum tempo; eu não ouvia mais nem o som do cavalo, nem do mato nem qualquer outro. O som que eu ouvia era o de um barulho surdo de uma respiração andando ao meu lado, no meio do mato, na beira do caminho. O cavalo ficou um pouco arredio e amedrontado, mas eu acariciei ele e ele acabou se