Era um dia claro sobre o monte do alemão, aquele em que voltei para a minha terra, cansado da lida com a vida. E havia os que vinham ao meu encontro, aos quais ensinei o que só sabia por saber. E havia muitos deles, mais desenvolvidos e mais poderosos que eu. Fiquei feliz por eles. A velhice me alcançou e, no leito onde morria, me recompus, chorando pelo que havia e pelo que não havia feito. Num estouro de bolha de sabão chegou a hora de ir.
A chuva vinha anunciada pelo vento frio que varava a mata, assobiando ligeiro. Jeremias olhou para a sua mulher, desmaiada sob o pesado pau de esteio da casa, que caíra sobre ela. Apesar de todo seu esforço para levantar o pau não conseguiu, o que o deixou incomodado; afinal, sempre erguia pesos bem maiores que aquele. Devia estar com uma ponta travada, pensou. Olhou para baixo de uma parede caída e viu um pé, e ficou cismando que deveria ser de um homem. Pela sua mente passou que não havia ningué
Cuidar e acarinhar a vida, paixão desdobrada da alma. A consciência da vida é só uma pequena parte da magia. O homem andava tranquilo e pensativo, as mãos unidas às costas. Ao seu lado iam sua esposa e um dos filhos do dono da fazenda. Conversavam sobre o tempo e outras coisas banais, até que o homem parou junto a um crânio. Ainda pensativo mexeu nele com o pé, e expressou sua surpresa por um osso tão grande quanto a cabeça de uma vaca ser tão leve. Enquanto falava virou o crânio para baixo e viu três dentes, os de trás, moles, bambos. Foi então que o filho do dono, chamado Fabio, pediu para ele colocasse a cabeça de novo para cima, que ele ia lhe mostrar algo. E mostrou um buraco no alto da cabeça de bordas irregulares voltadas para dentro, que demonstrava ter sido provocado por um impacto que estilhaçara o crânio. - Ele foi morto a marretadas - contou. O homem percebeu que havia uma dor, um mal-estar
A verdadeira magia é acreditarmos que ela não existe. João Zimbrózio, ou Ozimbro, como era chamado, sempre foi um rapaz pensativo, corajoso e amigável. Ele gostava de sair de manhã, nos sábados e domingos, e subir a montanha do alemão, de face para o vale onde sua cidade se aninhava, aconchegante. Após atravessar a linha de trem tomava um aclive sombreado que ia subindo uma vertente coleante, onde fora cavado, há muitos e muitos anos, uma vala divisória pelos escravos dos senhores. Naquele dia o céu estava azul e a temperatura estava deliciosa, daquele frio maravilhoso num dos primeiros dias de primavera. O ar estava cheiroso e límpido. Quando chegou lá em cima, no cume da montanha, Ozimbro olhou com carinho sua cidade, pequena como um brinquedo. Respirou fundo, agradecido por viver naquela cidade, naquela família. Satisfeito voltou-se para a floresta onde se sentia bem. A velha trilha que sempre seguia estava à sua frente. Se
Seus olhos... Talvez nunca tenha visto um assim. Quanta dívida acumulei com sua alma? Foi um alvoroço naquela noite, um rebuliço. Afinal, todos comentavam à boca pequena. Por várias pessoas passou um vento rasteiro acompanhado de um assobio que chegava até a doer nos ouvidos. Ninguém entendeu nada, até que o Seu Nhô contou que viu, no largo do rosário, onde vários escravos foram enforcados e torturados até a morte, um porco esquisito correndo, seguido por uma ventania que sibilava. E esse porco tinha só uma pata na frente e só uma outra atrás. Ele achou esquisito, ainda mais quando ele voltou a cabeça para o seu lado e deu para ele ver que seus olhos eram como dois pedaços de brasas vivas. Correu para ver. Assim que ele chegou mais perto o porco sumiu num vento que assoviava. Ele foi ver na fogueira apagada que ele estava fuçando, e viu que ele tinha comido todos os carvões e até mesmo os tições que ainda tinham alguma
Quer mesmo que eu conte com o que a infância sonha? Quer mesmo saber o que esqueceu? Clécio ficou olhando sua esposa na cozinha, junto ao fogão de lenha. Das panelas de ferro subiam nuvens de vapores saborosos que cheirou deliciado. Suspirou agradecido. Quando, nessa sua vida, pudera pensar que, algum dia, poderia dizer que seria tão feliz? Ali, cantarolando esquecida uma música de rádio, a mulher mais linda que se poderia pensar; e era a sua esposa. Pigarreou levemente e sorriu para a esposa que voltara aqueles olhos negros de jabuticaba para os seus, com aquele sorriso que sempre o fazia pensar em anjos. Sorriu satisfeito. Então, após dar um longo beijo nela, pegou do prego no portal o reio e saiu para buscar o burro no campo. No entanto, assim que saiu da casa e da proximidade mágica de sua esposa, seu coração pesou. Dali a dois dias seria a sexta-feira santa, e esse dia, nos últimos dois anos, o intrigavam e o preo
Durou o tempo necessário para que se tornasse eterno. Sempre há muitas estórias de homens e mulheres, e marido e mulher, pais e filhos que juram que, se um morrer, o outro irá logo atrás, ou virá contar ao outro como é do outro lado, ou que ficará velando por ele, porque parece ser essa a certeza que existe na alma do homem, de que tudo continuará depois da morte, independentemente dos esforços milenares das religiões. E Mariazinha e João trocaram essa promessa entre si. Mariazinha vivera a vida inteira com ele, desde que completara quinze anos de idade. Depois de mais de sessenta anos junto dele, a vida parecia ter perdido o sentido, quando ele se foi. Sua dor pareceu aumentar, porque havia aquele sentido de uma despedida, quando levaram o corpo para a casa sede do filho mais velho, por ser mais moderna, mais espaçosa e a estrada passar bem do lado. O desamparo e o abandono pareciam imensos demais para ser suportado.
Então os magos, em assembleia, puseram um limite ao tempo e prenderam o mal dentro de sua criação. Agora, entre cada batida do coração, o tempo do sonho pode voltar. Os policiais vieram correndo, atendendo aos pedidos confusos dos três homens. Assim que terminaram de subir as escadas viram, mais avançado no corredor, o quarto com as portas escancaradas. Enraivecidos partiram em sua direção, procurando entre os rostos amontoados às portas os responsáveis pela desobediência à ordem judicial que impedia que a cena do crime fosse aberta. Ao ouvirem o tropel as pessoas que olhavam para dentro abriram caminho para os homens da lei. Mas eles estacaram, as perguntas presas na garganta, a respiração falhando, os olhos esbugalhados de espanto, somando-se a todos os outros confusos. Fora ali, no oitavo andar daquele prédio, que um crime hediondo fora cometido. Apesar de três dias já terem transcorr
É muito estranho e inacreditável ser objeto inconcebível e inquestionável de tamanho ódio, mesmo quando se confunde com indiferença por ser natural.- Tudo bem, eu vou contar para vocês - aceitou acendendo o cigarro de palha no lampião. - Eu estava andando não muito longe daqui, lá pelas bandas do vara-pau, acho que perto da divisa da fazenda do Zé Ferraz. A noite estava tranquila, e o barulho era apenas o velho conhecido dos bichos da noite e do casco do meu cavalo. De repente eu percebi que havia me distraído, e que tudo estava silencioso há algum tempo; eu não ouvia mais nem o som do cavalo, nem do mato nem qualquer outro. O som que eu ouvia era o de um barulho surdo de uma respiração andando ao meu lado, no meio do mato, na beira do caminho. O cavalo ficou um pouco arredio e amedrontado, mas eu acariciei ele e ele acabou se
Quando no astral penso, eu crio, e o que crio vive, morrendo se dele afasto meu pensamento. A criação saberá que está viva? Sabemos nós que estamos vivos? Zé Cajarana abriu os olhos pesados como chumbo, praguejando ao sentir a cabeça estalar e martelar dolorosamente. Aquele era um pequeno mal-estar, se disse, soltando uma praga mais feroz. Resmungando apoiou a mão na cama e levantou-se do chão, dando a volta num vômito. Assim que chegou na porta do quarto encontrou a mãe na sala, olhos baixos, pregados no bordado no qual os dedos enrugados e trêmulos se prendiam. Cajarana olhou para ela com raiva. Desprezava, com uma indiferença amarga, aquele ser fraco e lamuriento que só sabia se arrastar e choramingar. No começo até que ela havia tentado colocar-lhe um freio, mas ele conseguira colocá-la no seu devido lugar, pensou com prazer vendo a mancha escura no lado esquerdo da testa e num olho que não parava de lacrimejar, um