Anne,
Minha vida toda foi estudar. Ouvia muito do meu pai que os estudos eram o que nos levaria a ter uma boa vida, e só depois que eu tivesse no conforto, pensaria em namorar, casar e ter filhos. Segui os conselhos dele, pois via o sofrimento que ele passava para me criar. Minha mãe morreu no meu parto, e ele teve que se desdobrar para cuidar de mim. Então, não queria decepcionar meu pai e segui estudando, tirando as melhores notas na escola. Nunca levei nenhuma dor de cabeça para ele, apenas orgulho. Quando terminei os estudos, participei de um concurso e ganhei uma bolsa integral na faculdade de medicina. Estudei muito e me tornei pediatra, profissão que mais admiro, pois sou apaixonada por crianças. Fui nomeada uma das melhores pediatras do país várias vezes. Os casos na minha clínica eram resolvidos facilmente, e nos diagnósticos e cirurgias, eu era a rainha da medicina. Nunca falhei e nunca perdi nenhum paciente. Mas minha vida desmoronou de um dia para o outro quando recebi a notícia de que meu pai tinha sofrido um acidente de trabalho. A laje que ele e os ajudantes de pedreiro estavam construindo cedeu, e meu pai, junto com mais dois, foi coberto pela laje, o que ocasionou a morte dos três. Não tinha muito o que fazer. Eu já tinha mandado ele parar de trabalhar, pois eu, como médica, conseguiria manter a casa. Mas meu pai não aceitava; ele dizia que, até a hora de sua morte, iria trabalhar. Com a sua morte, eu fiquei desequilibrada, perdi o foco no meu trabalho e na minha vida. Tentei conversar com o médico geral no hospital para pedir alguns dias de folga para colocar a minha cabeça no lugar, mas ele simplesmente virou as costas e disse que eu tinha que trabalhar. Que, trabalhando, minha mente não ficaria vazia e eu não pensaria em besteira. E isso custou uma vida, uma pequena vida. Um anjinho que caiu em casa e quebrou o baço. Fui chamada para fazer a cirurgia, já que eu era a médica plantonista no dia. Acabou que cortei uma artéria e não consegui conter o sangramento. E nisso, o pequeno Liam se foi. Foi doloroso para mim, pois eu sabia que não estava bem para trabalhar. Apesar de gostar do meu trabalho e dos meus pacientes, eu não estava conseguindo lidar com a minha vida pessoal e o trabalho ao mesmo tempo. Tentei mais uma vez pedir férias ao doutor Rodrigues, e mais uma vez ele me negou, alegando que eu tinha que parar de colocar dificuldade sempre que alguém morre, que eu, como médica, tinha que aprender a lidar com isso trabalhando. Cansada e exausta, decidi me demitir. Falei que não seria mais médica pediatra. Ele negou meu pedido de demissão; afinal, eu era a melhor e ele estaria perdendo um bom dinheiro com a minha saída. Mas eu não me importava com o que ele queria; simplesmente tirei meu crachá e joguei em sua mesa, deixando claro que não sou mais médica pediatra. Fui embora do hospital sem olhar para trás. Cheguei em casa e comecei a chorar, chorei como não pude chorar antes, por não ter tempo. Estava chorando pelo meu pai e pela pequena Lilian, que morreu por um erro meu. Nem era para eu ter entrado naquela sala, mas fui, achando que daria tudo certo. Mas quando a cabeça de um médico não está boa, nada sai bom. Nada! Fiquei alguns meses parada, sem fazer nada da vida. Como tinha minhas economias, fui usando-as para me sustentar. Mas eu precisava fazer algo, pois o dinheiro não seria eterno. Então, fiz uma faculdade de enfermagem, como já tinha todos os estudos da medicina, fui uma aluna exemplar, e logo me formei. Fiz também algumas aulas de socorrista, assim poderia trabalhar nos dois empregos para manter a minha mente e o meu tempo ocupados. Não quis voltar a ser pediatra; estava bem na área em que eu estava, e nem mesmo numa sala de cirurgia eu queria entrar, nem para auxiliar médico nenhum. O problema é que, nesse novo hospital em que estou trabalhando, os médicos são todos um bando de safados. Eles são doidos pelas enfermeiras, e agora sinto na pele o que elas sentem. Todos os dias, uma nova cantada, um novo convite para sair, e eles não desistem até ter o que querem. Mas sempre dou a resposta de sempre; no entanto, tem um que é chato demais. Quanto mais eu digo não, mais ele recusa a aceitar a minha resposta. Esse vai morrer tentando, pois não vou dar o que eu nunca dei a ninguém, e não vai ser um doutorzinho que vai levar a minha virgindade assim não. Todo dia ele me chama para sair, tomar café, já que nosso horário é noturno, e até mesmo quando ele estava na briga de bar, ele veio junto só para ficar ao meu lado. É chato essa insistência dele. Praticamente me escondo no hospital e só saio dele quando o motorista que trabalha comigo na ambulância me avisa que ele foi embora. O doutor até que é bonito, mas os caras bonitos são os mais disputados, e eu tô fora de entrar nesse rolo. Ainda mais porque sei o que ele quer: me levar para a cama e depois tchau. Posso não ter experiência em relacionamentos, mas percebo quando um homem quer só transar e não quer mais nada; eles se comportam igual ao doutorzinho. E desses homens eu quero distância. No outro dia à noite, tenho outro plantão no mesmo hospital que ele. Tínhamos que cair no mesmo dia; o destino é bem sacana de vez em quando. Poderia ter colocado ele nos dias em que eu estivesse trabalhando como socorrista, assim não ficaríamos a noite toda juntos. Assim que chego, vou até o quarto da enfermagem me trocar, e assim que saio, já dou de cara com ele. O sorriso dele se abre ao me ver, e eu fico indiferente, como se não fosse para mim, pois já imagino que ele vai me chamar para sair. Me aproximo dele e vejo que ele está olhando para trás. Quando olho, ele estava sorrindo para outra enfermeira, e ela sorria para ele. Viu? Ele percebeu que não vai ter nada comigo e já mudou de alvo. Como eu disse, os médicos são bem sem vergonha.Anne,Passo direto, enquanto ele fica flertando com ela. Sento na minha cadeira e começo a colocar os prontuários dos pacientes em ordem. Pelo canto dos olhos, vejo-o saindo e indo atrás da enfermeira, e quando olho, vejo-o com um braço na parede e ela encostada. O clima entre os dois é de puro desejo. E eu volto minha atenção para os prontuários.Levanto-me e vou de quarto em quarto avaliar as crianças. Na volta, separo em cada gaveta os medicamentos que cada criança tem que tomar. Depois de tudo organizado, começo meu trabalho. Tinha que passar para ele, mas não vou interromper o momento romântico dele, ou ele vai achar que estou com ciúmes; aí pronto, não vai mais sair do meu pé.Depois de uma hora e meia, já mediquei todos os pacientes e volto para minha cadeira. Vejo os dois saindo do quarto dos médicos, ela com o cabelo todo bagunçado e ele fechando o zíper da calça. Balanço a cabeça, negando, e vou anotando o próximo horário das medicações que precisarão ser aplicadas.— Que mé
Eduardo, Estou fazendo a higienização das minhas mãos quando a Anne entra. Bom, pensei que era ela até olhar os olhos da enfermeira.— Cadê a Anne? — pergunto com revolta, pois foi ela quem mandei vir para cá. Anne às vezes me provoca com suas refeições.— Ela não pode vir, houve um chamado para ela e ela teve que ir, mas me mandou aqui para ajudar o senhor. — Fecho os meus olhos e tento controlar a raiva que está me consumindo por dentro. Por que ela tem tanto prazer em recusar tudo que eu peço?Sei que ela é uma enfermeira, que a maioria nem entra numa sala de cirurgia, mas as duas são enfermeiras circulantes, ou seja, fazem tudo no hospital. Fora que eu tinha chamado ela primeiro. Quando eu sair daqui, vou atrás de quem a chamou, vou falar que a Anne tem que estar à minha disposição, e não do hospital todo.Seguimos para a sala de cirurgia, onde o ambiente estava preparado com todo o cuidado e a equipe médica aguardava em posição. A tensão entre eles era grande, já que ninguém me
Eduardo, Ela fixa os olhos na enfermeira e se aproxima dela, como se eu não estivesse aqui. Anne respira e solta um suspiro, até que enfim começa a falar:— Eu... eu... estava ocupada, tenho muitos pacientes para cuidar. A Helen acompanhou o doutor e eu tive que cuidar dos pacientes sozinha. Sabe que no andar só ficam nós duas e o doutor; eles saíram e sobrou tudo para mim.— Então você ficou sozinha com os pacientes, que interessante — pergunto, e ela concorda com a cabeça. Como pode ser assim?Sorrio com a sua mentira; ela não quis entrar comigo na cirurgia e agora está se fazendo de vítima. Tanto os internos como os enfermeiros sonham com essa oportunidade de fazer parte de uma cirurgia, ainda mais na cabeça de uma criança. Mas ela parece que não liga muito para isso.— Viu, doutor, ela estava na ala infantil. Não a chamamos para cá. Talvez o senhor tenha ouvido errado, ou ela não pôde entrar por algum motivo. — Olho bem fixamente para ela, que me olha desviando o olhar.Balanço a
Eduardo,Ele sobe os olhos para mim, e eu aperto mais o seu punho, colocando toda a minha força. Já que quer medir forças com uma mulher, melhor que seja com um homem e que seja do seu tamanho.— Eu tenho certeza que o senhor não quer fazer isso, mas caso insista, eu sou obrigado a tomar providências que poderiam até mesmo me fazer perder o meu poder de exercer medicina, mas farei isso com o maior orgulho.— Eu só quero levar a minha filha embora, e essa enfermeira não está deixando. Eu sou o pai dela e sei o que é melhor para ela. Eu posso levá-la embora quando eu quiser. — ele responde frio, com raiva, tentando puxar suas mãos do meu aperto, mas eu aperto com mais força.— Não pode, como a enfermeira disse, ela está correndo risco de morte. Se você não entende isso, não está sendo um bom pai. Chame a mãe para ficar com ela como acompanhante, e saia do hospital, antes que eu chame a polícia para você, pois eu não vou assinar a alta dela e você está proibido de levá-la embora.Ele ser
Eduardo,Vou até a minha sala com o prontuário dela e começo a marcar tudo o que tem que fazer. Quero um raio-x do tórax e do rostinho, pois alguns casos o catarro fixa preso ali, e a sinusite também é um caso complicado para se tratar. Deixo marcado a administração do (remédio), para ser administrado no horário certinho que eu indicar, até quando eu voltar à noite para fazer a avaliação.Me levanto e saio da minha sala indo em busca da Anne. Entrego a ficha para ela, pois ela já deixa tudo arrumado para os próximos plantonistas. Deixo avisado que isso é de extrema importância, pois só depois de todos os resultados que vou poder avaliar melhor ela, já que parece que os plantonistas que receberam ela aqui não fizeram muita coisa.Volto no quarto do pai dela, com a Anne, para dar a primeira dose da medicação. Ela nem se quer olha para o pai, e ele fica todo sem jeito olhando para ela e para mim. Não vou obrigar ele a pedir desculpas agora, pois sei que ele quer ver a filha melhor, mas e
Eduardo,Dou risada, me escorando na cadeira, e balanço a cabeça, negando. Não tem como eu me apaixonar por ela, uma mulher cheia de segredos e que vive me desprezando.— Eu só acredito na atração e não em sentimentos sem sentido. Dizem que o amor vem do coração, mas ele é apenas um órgão igual a todos os outros. Eu te amo, mas o amor que sinto vem do órgão de baixo e não do de cima.— Não acredita no amor? — Balanço a cabeça, negando, levando a xícara até os meus lábios. — Agora entendo por que você é rodado, fica com uma, com outra... Isso é apenas um escudo para não se apaixonar de verdade, não é, doutor?— Quer saber do meu segredo? Me conte o seu primeiro, que eu conto o meu. Por que fugiu da cirurgia? E por que tem tanto medo dessa palavra quando ela é mencionada?Ela se encolhe na cadeira, desfazendo os sorrisos vitoriosos que estavam em seus lábios. Acho que encontrei o seu ponto fraco; acertei bem no alvo. Todos nós temos coisas a esconder, por isso não é bom ficar tirando sa
Eduardo Ando um pouco mais rápido e consigo alcançar ele, principalmente porque ele para bem na mesa da enfermagem.— Sabe o que eu acho mais engraçado, doutor, é que eu tenho pegado casos aqui que estavam fáceis de tratar, e você não deu a devida atenção para dar alta. Agora a menina que está mal, você quer dar alta. Por quê?— Faça o seu trabalho, doutor, e eu faço o meu. Eu não venho aqui no seu plantão para te criticar e nem opinar nas suas decisões, então se coloque em seu lugar e trate de vir somente quando for chamado.Incrível sua ignorância, prefiro nem discutir com esse tipo de gente para não perder a minha sanidade. Esse tipo de médico é aqueles que só estão aqui por amor ao dinheiro, e não amor pela profissão ou pelas crianças. Finjo que nem ouvi os seus desaforos e dou a volta, sem responder o que ele merece ouvir.Volto a entrar no quarto do pai e avalio a menina. O chiado no pulmão está mais baixo, mas ainda está comprometido. Peço para a enfermeira trazer o aparelho d
Anne,Corro pro banheiro e me tranco. Lavo meu rosto e me olho no espelho. Eu tenho que parar com isso, com esse medo todo, mas eu não consigo. Toda vez que vejo qualquer coisa que seja ligada a cirurgia e morte, eu travo por completo.Respiro fundo, esperando meu corpo se normalizar, e saio do banheiro. Pego a minha prancheta e vou até a recepção para fazer a ficha da bebê. Depois da ficha pronta, levo para a mãe o papel de acompanhante e entrego para ela assinar. Depois, volto para a recepção e entrego para eles.Depois disso, subo na ambulância e me sento no banco do passageiro. O Beto entra e fala que temos um homem para levar a outro hospital. Balanço a cabeça concordando, e saímos. Olho pelo retrovisor e vejo o doutor Eduardo olhando para todos os lados, até olhar para a ambulância e colocar a mão na cintura.Será que ele mudou os dias do plantão dele? O que ele tá fazendo aqui hoje, sendo que ele trabalha nos mesmos dias que eu?— Está tudo bem, Anne?— Estou sim, só um pouco c