Eduardo,
Estou fazendo a higienização das minhas mãos quando a Anne entra. Bom, pensei que era ela até olhar os olhos da enfermeira. — Cadê a Anne? — pergunto com revolta, pois foi ela quem mandei vir para cá. Anne às vezes me provoca com suas refeições. — Ela não pode vir, houve um chamado para ela e ela teve que ir, mas me mandou aqui para ajudar o senhor. — Fecho os meus olhos e tento controlar a raiva que está me consumindo por dentro. Por que ela tem tanto prazer em recusar tudo que eu peço? Sei que ela é uma enfermeira, que a maioria nem entra numa sala de cirurgia, mas as duas são enfermeiras circulantes, ou seja, fazem tudo no hospital. Fora que eu tinha chamado ela primeiro. Quando eu sair daqui, vou atrás de quem a chamou, vou falar que a Anne tem que estar à minha disposição, e não do hospital todo. Seguimos para a sala de cirurgia, onde o ambiente estava preparado com todo o cuidado e a equipe médica aguardava em posição. A tensão entre eles era grande, já que ninguém me conhece aqui. E já imagino que eles desconfiam da minha habilidade. Mantenho o meu foco e começo o procedimento com movimentos precisos. Calculo tudo muito rápido na minha cabeça; não é à toa que eu era o melhor pediatra no Rio de Janeiro. Cada corte que eu faço, cada órgão que eu seguro em minhas mãos, é como um combustível para mim. As crianças são fortes, mesmo que pareçam frágeis. Seus órgãos em fase de crescimento me dão maior tranquilidade para mexer sem me preocupar com algum rompimento. Só tenho que tomar cuidado onde cortar, mas eu sou tão experiente nisso que, mesmo de olhos fechados, eu sei onde cada órgão se encontra. Afinal, tenho 35 anos, e mesmo que eu tenha tido muita diversão na minha vida, eu estudei muito para nunca machucar nenhum serzinho na minha mesa. Até porque, aqui eu sou como Deus, a vida deles estão totalmente em minhas mãos. O silêncio na sala era quebrado apenas pelo som dos monitores e do meu próprio respirar, que eu mantinha controlado para não deixar a ansiedade tomar conta. Meu olhar estava fixo no campo cirúrgico, cada movimento milimetricamente pensado. A cada segundo, meu foco aumentava. Eu sentia o peso da responsabilidade, mas, ao mesmo tempo, uma sensação de conforto me envolvia. O tempo parecia se esticar e cada minuto parecia uma eternidade. Até que libero a passagem de ar do pequeno e começo a tirar todo o coágulo que se formou em sua cabecinha, e, com isso, a sua pressão começa a baixar lentamente. Fico de olho no monitor até ver que ele está estabilizado totalmente. Sorrio por debaixo da máscara ao olhar para a equipe médica, que desconfiava de mim no começo, mas agora o olhar de alívio em seus rostos me faz sorrir. Eles ainda não me conhecem, mas vão conhecer, e eu vou fazer o meu nome aqui nesse hospital também. — Isso foi incrível, doutor Eduardo. O senhor foi rápido e preciso. Eu já participei de outras cirurgias, mas nunca vi uma ser tão rápida quanto essa. — Não tínhamos tempo. Eu já fiz muitos desses procedimentos e sabia exatamente onde procurar o coágulo. Isso ajuda muito, pois quanto mais tempo demorar para fazer esse procedimento, menos chances o paciente tem de sobreviver. Agora vou fechar, e você leva ele para o pós-operatório. Vamos ver a evolução dele daqui para frente. Ele vai precisar ser monitorado. Fecho a incisão, passo a faixa na cabeça dele, deixando bem apertado para que não fique nenhum espaço e não se formem mais coágulos, e saio da sala em busca da minha enfermeira fujona. Anne tem que aprender que, quando eu mandar ela fazer algo, ela tem que fazer e não mandar outra pessoa em seu lugar. Vou até a sua mesa e, para minha surpresa, ou não, ela não está lá. Olho ao redor e tento imaginar onde ela poderia estar. Como não conheço nada aqui ainda e nem sei onde ela pode ficar, vou até a sala dos enfermeiros para saber onde ela se meteu. — Boa noite! — falo ao abrir a porta. — Gostaria de saber por que chamaram a enfermeira Anne, se eu tinha chamado ela para entrar comigo na cirurgia? — Não chamamos ninguém, doutor. A Anne ainda está na mesa dela. Ela está cuidando dos pacientes da ala infantil. — Ela não entrou na sala de cirurgia. A amiga dela disse que ela foi chamada por vocês. Gostaria de deixar claro que, no meu plantão, ela ficará à minha disposição. — Vamos deixar uma coisa clara aqui, doutor. Eu sou a enfermeira geral, e tanto a Anne quanto qualquer outra são enfermeiras do hospital, e não do senhor. Não a chamamos, mas, caso tenha feito, o senhor não pode entrar aqui e exigir isso, pois ela está de plantão e há muitos pacientes na ala em que ela está. Solto um suspiro pesado e me aproximo dela, coloco a mão sobre a mesa e a encaro com raiva, pois, mesmo que ela esteja tentando proteger outra enfermeira, ela não tem o direito de falar assim comigo, pois nenhuma enfermeira tem permissão nem mesmo de prescrever uma receita, quem dirá falar comigo dessa forma. Então, começo a falar: — Não me importam as suas palavras, eu tenho que ter uma enfermeira para me acompanhar nas cirurgias e posso escolher quem eu quero, e quero que seja a Anne. Sempre ela. Agora me diga, onde ela está. — Vou verificar, doutor. — Ela chama a Anne pelo microfone, e o nome dela ecoa por todo o hospital. Espero até que ela apareça, e ela vem correndo. Mas assim que me vê ali parado, ela se assusta. — Onde você estava, enfermeira? O doutor estava te procurando. Ela olha para a enfermeira, olha para mim novamente e fica pálida, parece até que vai entrar em colapso a qualquer momento. Sorrio, pois já imagino a mentira que ele vai contar só para se livrar da bronca.Eduardo, Ela fixa os olhos na enfermeira e se aproxima dela, como se eu não estivesse aqui. Anne respira e solta um suspiro, até que enfim começa a falar:— Eu... eu... estava ocupada, tenho muitos pacientes para cuidar. A Helen acompanhou o doutor e eu tive que cuidar dos pacientes sozinha. Sabe que no andar só ficam nós duas e o doutor; eles saíram e sobrou tudo para mim.— Então você ficou sozinha com os pacientes, que interessante — pergunto, e ela concorda com a cabeça. Como pode ser assim?Sorrio com a sua mentira; ela não quis entrar comigo na cirurgia e agora está se fazendo de vítima. Tanto os internos como os enfermeiros sonham com essa oportunidade de fazer parte de uma cirurgia, ainda mais na cabeça de uma criança. Mas ela parece que não liga muito para isso.— Viu, doutor, ela estava na ala infantil. Não a chamamos para cá. Talvez o senhor tenha ouvido errado, ou ela não pôde entrar por algum motivo. — Olho bem fixamente para ela, que me olha desviando o olhar.Balanço a
Eduardo,Ele sobe os olhos para mim, e eu aperto mais o seu punho, colocando toda a minha força. Já que quer medir forças com uma mulher, melhor que seja com um homem e que seja do seu tamanho.— Eu tenho certeza que o senhor não quer fazer isso, mas caso insista, eu sou obrigado a tomar providências que poderiam até mesmo me fazer perder o meu poder de exercer medicina, mas farei isso com o maior orgulho.— Eu só quero levar a minha filha embora, e essa enfermeira não está deixando. Eu sou o pai dela e sei o que é melhor para ela. Eu posso levá-la embora quando eu quiser. — ele responde frio, com raiva, tentando puxar suas mãos do meu aperto, mas eu aperto com mais força.— Não pode, como a enfermeira disse, ela está correndo risco de morte. Se você não entende isso, não está sendo um bom pai. Chame a mãe para ficar com ela como acompanhante, e saia do hospital, antes que eu chame a polícia para você, pois eu não vou assinar a alta dela e você está proibido de levá-la embora.Ele ser
Eduardo,Vou até a minha sala com o prontuário dela e começo a marcar tudo o que tem que fazer. Quero um raio-x do tórax e do rostinho, pois alguns casos o catarro fixa preso ali, e a sinusite também é um caso complicado para se tratar. Deixo marcado a administração do (remédio), para ser administrado no horário certinho que eu indicar, até quando eu voltar à noite para fazer a avaliação.Me levanto e saio da minha sala indo em busca da Anne. Entrego a ficha para ela, pois ela já deixa tudo arrumado para os próximos plantonistas. Deixo avisado que isso é de extrema importância, pois só depois de todos os resultados que vou poder avaliar melhor ela, já que parece que os plantonistas que receberam ela aqui não fizeram muita coisa.Volto no quarto do pai dela, com a Anne, para dar a primeira dose da medicação. Ela nem se quer olha para o pai, e ele fica todo sem jeito olhando para ela e para mim. Não vou obrigar ele a pedir desculpas agora, pois sei que ele quer ver a filha melhor, mas e
Eduardo,Dou risada, me escorando na cadeira, e balanço a cabeça, negando. Não tem como eu me apaixonar por ela, uma mulher cheia de segredos e que vive me desprezando.— Eu só acredito na atração e não em sentimentos sem sentido. Dizem que o amor vem do coração, mas ele é apenas um órgão igual a todos os outros. Eu te amo, mas o amor que sinto vem do órgão de baixo e não do de cima.— Não acredita no amor? — Balanço a cabeça, negando, levando a xícara até os meus lábios. — Agora entendo por que você é rodado, fica com uma, com outra... Isso é apenas um escudo para não se apaixonar de verdade, não é, doutor?— Quer saber do meu segredo? Me conte o seu primeiro, que eu conto o meu. Por que fugiu da cirurgia? E por que tem tanto medo dessa palavra quando ela é mencionada?Ela se encolhe na cadeira, desfazendo os sorrisos vitoriosos que estavam em seus lábios. Acho que encontrei o seu ponto fraco; acertei bem no alvo. Todos nós temos coisas a esconder, por isso não é bom ficar tirando sa
Eduardo Ando um pouco mais rápido e consigo alcançar ele, principalmente porque ele para bem na mesa da enfermagem.— Sabe o que eu acho mais engraçado, doutor, é que eu tenho pegado casos aqui que estavam fáceis de tratar, e você não deu a devida atenção para dar alta. Agora a menina que está mal, você quer dar alta. Por quê?— Faça o seu trabalho, doutor, e eu faço o meu. Eu não venho aqui no seu plantão para te criticar e nem opinar nas suas decisões, então se coloque em seu lugar e trate de vir somente quando for chamado.Incrível sua ignorância, prefiro nem discutir com esse tipo de gente para não perder a minha sanidade. Esse tipo de médico é aqueles que só estão aqui por amor ao dinheiro, e não amor pela profissão ou pelas crianças. Finjo que nem ouvi os seus desaforos e dou a volta, sem responder o que ele merece ouvir.Volto a entrar no quarto do pai e avalio a menina. O chiado no pulmão está mais baixo, mas ainda está comprometido. Peço para a enfermeira trazer o aparelho d
Anne,Corro pro banheiro e me tranco. Lavo meu rosto e me olho no espelho. Eu tenho que parar com isso, com esse medo todo, mas eu não consigo. Toda vez que vejo qualquer coisa que seja ligada a cirurgia e morte, eu travo por completo.Respiro fundo, esperando meu corpo se normalizar, e saio do banheiro. Pego a minha prancheta e vou até a recepção para fazer a ficha da bebê. Depois da ficha pronta, levo para a mãe o papel de acompanhante e entrego para ela assinar. Depois, volto para a recepção e entrego para eles.Depois disso, subo na ambulância e me sento no banco do passageiro. O Beto entra e fala que temos um homem para levar a outro hospital. Balanço a cabeça concordando, e saímos. Olho pelo retrovisor e vejo o doutor Eduardo olhando para todos os lados, até olhar para a ambulância e colocar a mão na cintura.Será que ele mudou os dias do plantão dele? O que ele tá fazendo aqui hoje, sendo que ele trabalha nos mesmos dias que eu?— Está tudo bem, Anne?— Estou sim, só um pouco c
Anne,Ela morde o canto dos lábios e me deixa desesperada.— Você prometeu, Helen...— Calma, eu não disse que você era pediatra, só disse que você tem um trauma. Ele falou com tanta preocupação, que eu fiquei com dó.— E ele não perguntou que trauma?— Perguntou, mas eu não disse. Falei que ele teria que tirar isso de você.Respiro aliviada. Pelo menos agora ele não vai mais me incomodar para entrar numa sala de cirurgia e vai me ajudar quando alguém tentar fazer. Bom, é isso que eu espero dele, já que ele me defendeu de um pai que queria me bater.Ele sai do quarto e passa por nós duas, me olhando e sorrindo. Agora que virei atração principal dele mesmo, meu Deus me ajude. Me levanto para ir medicar as crianças que precisam das medicações e percebo o quadro clínico de uma instável. Essa já pode receber alta sem problemas, mas, como não sou médica, vou levar isso para o doutor Eduardo e deixar ele avaliar.Volto para minha mesa e coloco as coisas lá. Vou até a sala dele e bato na por
Eduardo,Ela me surpreendeu, e minha cabeça deu até um bug. Será que ela já namorou algum médico? Por isso sabe sobre a toracotomia? Esse é um estudo avançado dos médicos; uma enfermeira não saberia assim.O monitor cardíaco ecoava o ritmo frenético do coração do paciente, enquanto a Helen e eu seguimos com ele pelo elevado até a sala de tomografia. Com mãos firmes e mente focada, avancei para a beira da maca, onde o paciente estava, pálido e em agonia.— Manda preparar a sala de cirurgia imediatamente; não vai dar tempo de ir para a tomografia, vamos direto para a cirurgia.Enquanto a Helen corria para seguir minhas instruções, eu me inclinei sobre o paciente, avaliando rapidamente sua condição. A hemorragia interna no tórax era evidente, e o tempo estava se esgotando.Seguimos correndo para a sala de cirurgia, e a equipe médica já começa a se preparar. Lavo bem as minhas mãos, coloco o avental, as luvas e me posiciono ao lado dele. Respiro fundo e começo.Sem hesitar, fiz uma incisã