No dia seguinte, desci as escadas após cumprir todo o meu ritual matinal. A noite reservava uma pequena apresentação no teatro municipal, e minha empolgação era evidente. Quando passei pela sala, deparei-me com meu tio, que estava lendo um jornal.
— Minha sobrinha linda, como você está? – Ele perguntou tirando os olhos do jornal por alguns instantes.
— Me sentindo abandonada por você, tio. – Disse sorrindo. — Lembrou que tem uma casa e uma sobrinha para cuidar? – Perguntei a ele que sorriu divertido.
— Adoro o seu senso de humor, sabia? – Ele respondeu, dando-me três beijos na face. — Em breve você fará 21 anos e terá acesso total a sua herança e não precisará mais de mim.
— Eu sempre vou precisar de você tio, porque é a única família sanguínea que me sobrou.
Convidei-o para tomar café na cozinha, mas ele recusou, dizendo que apenas os serviçais comiam lá, o que considerei uma tolice, já que os tais serviçais que meu tio se refere são as pessoas que cuidam de mim desde a morte dos meus pais. Fizemos nosso desjejum enquanto ele me contava sobre suas viagens, abordando o assunto de um modo que parecia que eram férias e não compromissos de negócios.
Jarbas apareceu e me alertou que estava na hora de irmos para a companhia. Ele lançou um olhar estranho a meu tio, algo que não escapou de mim. Uma vez, flagrei Jarbas e Carol conversando sobre a curiosa questão de meus pais terem concedido uma procuração a ele para administrar meus bens. Aquela conversa me deixou intrigada.
No testamento de meus pais, foi estipulado que só teria acesso às minhas finanças quando completasse vinte e um anos. Até então, meu tio era o responsável por tudo, depositando uma quantia considerável todo mês para cobrir minhas despesas. Faltava um mês para meu vigésimo primeiro aniversário, quando finalmente teria acesso total a tudo que me pertence.
— Steph, você fez o que pedimos? — Jarbas perguntou, me fazendo franzir o cenho.
— Não entendi muito bem, Jarbas. Pode me explicar melhor?
— Carol e eu temos algumas suspeitas, mas não quero encher sua cabeça de suposições. Apenas confie em nós e faça o que pedimos. — Ele olhou sério pelo retrovisor, e eu decidi seguir sua orientação.
Ao chegarmos à companhia, troquei de roupa e segui para o aquecimento. Minha amiga se aproximou, me convidando para um baile funk. Balancei a cabeça em negação.
— Você está louca? O que faremos em um lugar daqueles? – Perguntei estarrecida, acho que minha amiga enlouqueceu de vez.
— Os bailes funk são divertidos, tem muitas coisas que não vemos no meio em que vivemos. Estou ficando com um carinha do morro, e sei que se você conhecer o baile vai gostar.
— Zeus me free! Eu jamais irei a um lugar como aquele. — Respondi, ao que ela balançou a cabeça em descrença.
— Nunca diga nunca, Steph.
— Amiga, as reportagens mostram o quanto esses lugares são violentos e esses donos de morro credo, um bando de drogados que não sabem diferenciar o agente de a gente. – Digo a ela que balança a cabeça.
— Você está sendo preconceituosa, amiga, nem todos que moram em favelas são assim, muitos que moram lá são super inteligentes e cultos.
— Depois que você começou a sair com esse cara você começou a defender bandidos, sério isso amiga?
— Não vou nem me dar ao trabalho de discutir com você. – Ela diz, mas eu vi Cidade de Deus, Cidade dos Homens, Tropa de Elite e assisto Sintonia, e assisti também aquele filme do Complexo do Alemão.
Ficamos quietas até a professora Liya nos chamar para o ensaio.
A noite da apresentação estava repleta de nervosismo. Pensei que não conseguiria me apresentar, mas assim que pisei no palco, minhas inseguranças desapareceram, e eu deslizei pelo palco. Voltei à realidade somente quando ouvi os aplausos da plateia. Quando a cortina se fechou, minha amiga veio me abraçar.
— Você tem talento, amiga. Deveria tentar uma audição para entrar na companhia do Theatro Municipal.
— Quero muito fazer isso, mas primeiro tenho que resolver a questão da minha herança.
— Espero que se resolva logo. — Ela me abraçou novamente. — O que vai fazer com tanta grana e as empresas? – Antes que eu pudesse responder, meu tio apareceu e me abraçou.
— Você é o orgulho da família. Você estava linda, minha filha. — Carol e Jarbas também vieram me cumprimentar, e eu agradeci.
— Obrigada a ambos por virem. Oi, irmãzinha. — Disse para Manuella, que me olhou com desdém.
— Saiba que vim porque meus pais me obrigaram. — Ela disse irritada.
— Ah, que peninha. Quando éramos crianças, éramos boas amigas.
— As coisas mudam, Stephanny. — Carol ralhou com ela, me fazendo rir.
Após as apresentações, fomos para a festa. Carol e sua família preferiram voltar para casa, o que me deixou um pouco triste.
A festa foi um sucesso, e para minha surpresa, João Miguel apareceu. Ele me presenteou com uma linda gargantilha, o que me alegrou. A noite estava perfeita, faltando apenas a presença dos meus pais. Cheguei em casa completamente cansada.
Conversei com a senhora Lyia durante o evento e contei a ela sobre meu interesse em dançar na companhia do Theatro Municipal. Ela me disse que eu ainda estava bastante crua, mesmo que eu dance desde meus dois anos. Segundo ela, o Theatro Municipal não é lugar para amadores, e eu cogitei fazer um curso extra assim como minha amiga. Apesar de gostar de viajar, sou muito apegada ao meu país e à mansão que meus pais me deixaram. Estando aqui, sinto-me mais pertinho deles.
Acordei com bom humor e muito animada, liguei para meu namorado e conversamos por um bom tempo. Resolvi ir a um spa, afinal, eu merecia me mimar um pouco. Algumas das minhas amigas de compras vieram à minha casa e juntas fomos nos divertir. Fizemos diversos procedimentos e compramos muitos produtinhos. Sei que ainda sou muito jovem, sem nenhuma ruga, mas aprendi com a minha esteticista que se quero ser uma velhinha com pele de bebê, devo começar a me cuidar cedo, e é isso que eu faço.
Um mês passou desde minha apresentação. Meu tio estava viajando com mais frequência ultimamente. Tomei meu café e avisei a Jarbas que não precisava me acompanhar, pois sairia com Luanna. Assim que ela buzinou, corri me despedindo de Carol.— O que vamos fazer, gata? — Luanna perguntou, e me afundei em seu banco.— Miga, já estou sentindo sua falta. Não acredito que você vai passar um ano na França. — Disse, emburrada.— Steph, um ano passa rapidinho, você vai ver.Fomos ao clube, chamamos nossos namorados, que chegaram rapidamente. Trocamos de roupa e fomos para a área da piscina pegar um bronzeado. Na hora do almoço, meu celular vibrou, mas João Miguel não me deixou atender, insistindo que eu desse atenção a ele. No final da tarde, fomos para uma loja da Tiffany, onde comprei algumas coisas que estava precisando, incluindo sapatos exclusivos. Voltei para casa contente.Me despedi da minha amiga e prometi levá-la para o aeroporto mais tarde. Enquanto estava na área de embarque, brinca
— Steph, vem comer alguma coisa. – Jarbas me chamou, mas eu neguei. — Quero apenas um suco de laranja com mel. – Respondi e fechei os olhos.Um tempo depois, Carol se aproximou e me entregou o copo. Ela disse que eu precisava comer algo, mas mais uma vez disse que não estava com fome. Tomei o suco e entreguei o copo de volta a ela. Peguei meu celular para enviar uma mensagem para João, mas ele disse que não podia falar no momento, pois estava em reunião. Pensei em ligar para minha amiga, mas ela estava tão feliz com a oportunidade que não queria incomodá-la. Felizmente, tenho Jarbas e Carol comigo, senão me sentiria ainda mais sozinha. Olhava para o teto quando Manuella chegou, jogou a bolsa na cama e antes de sair se virou para mim, surpresa.— O que você está fazendo aqui? – Ela perguntou, fazendo careta.— Pelo que sei, agora moro aqui – respondi, mas Manuella saiu batendo a porta do quarto e logo ouvi sua voz alta brigando com seus pais.Levantei-me e fui para a sala, onde ela es
Já se passou um mês desde o golpe que sofri, e eu permanecia na cama, mal comia, mal dormia. Perdi todas as minhas amizades, exceto Luanna, que queria voltar para ficar comigo, mas eu recusei. Disse a ela que deveria seguir seu sonho, afinal, ela lutou muito para consegui-lo. Carol e Jarbas tentavam me animar, mas nada que eles falavam parecia surtir efeito. Jarbas conseguiu um novo emprego como motorista, e Carol continuava procurando emprego, me sinto tão culpada por tê-los deixado sem emprego, sabe, os dois sempre foram maravilhosos comigo e agora aconteceu isso com eles, minha vida está um verdadeiro caos, tenho vontade de jogar tudo para alto e xingar tudo e a todos, logo mudei meu pensamento, pois lembrei que meus pais diziam que por mais que as coisas estivem difíceis não poderia ser hostil com as pessoas, vocês me fazem tanta falta, tenho certeza que se estivessem aqui nada disso estaria acontecendo. Estava deitada quando Carol tocou meu ombro e pediu para eu buscar pão. Ela m
Guilhermo (Gui)*Aí, patrão, o morro tá sussa, os canas já levaram o dinheiro.* – Rak me avisou e o mandei ir para uma biqueira fazer a cobrança. As pessoas acham que ser dono de um morro e líder de uma facção criminosa é fácil, mas isso é fácil. Há quem me estereotipe pensando que sou um criminoso que não sabe falar português, mas, ao contrário do que pensam, sou alguém que estudou muito. No começo, tentei não me envolver com essas coisas, mas quando um morro rival matou covardemente meu pai, soube que esse era o meu destino.Meu pai batalhou muito por este morro, e eu não posso simplesmente deixá-lo para qualquer filho da puta tomar. Minha mãe era uma vadia qualquer que nos abandonou a mim e a minha irmã sem pensar duas vezes. Meu pai, mesmo sendo traficante, cuidou de nós e foi um pai bom e presente. Ele amava este morro mais do que a própria vida.Estudei, fiz cursos, faculdade. Enfim, sou alguém bem preparado. Hoje estou animado, pois minha irmã finalmente está voltando após doi
Stephanny GiacomelliColoquei todas as minhas dores para fora, sentada em um meio-fio com um cara completamente estranho. Olhei para a camiseta dele, molhada pelas minhas lágrimas, e me desculpei.— Não sei por que tudo isso está acontecendo comigo. Sou uma boa pessoa, nunca ri de pessoas pobres, sempre ajudei os menos favorecidos, fiz doações para o Criança Esperança e o Teleton. Por que estou sendo punida pelo universo? Não posso ser tão ruim assim, não é? – Perguntei, percebendo que estava falando demais, e me desculpei mais uma vez.— Não tem problema, gata. Me chamo Guilhermo Fernandes.— Muito prazer, sou Stephanny Giacomelli Duarte. – Limpei minhas lágrimas com as costas da mão. — Devo estar parecendo um urso panda, não é?Perguntei a ele, que negou, mas tinha certeza de que estava mentindo. Proibi minhas lágrimas de rolarem e me levantei, mas logo senti uma dor no joelho e me sentei novamente. Quando percebi, meu joelho estava ralado, assim como meus braços. Senti dor em algum
— Sei que você é dono do morro, mas tem que trazer esse trambolho para a mesa – Ju diz soltando uma lufada de ar, e nesse momento fico ainda mais perdida. — Acho que meu irmão esqueceu de te contar que ele é dono do morro.— Você é o tal do Gui que todos falam? – Pergunto surpresa e ele confirma. — Você é muito diferente do que imaginei.— Pois é, as pessoas acham que todo dono de morro usa correntes de ouro gigantescas e não sabem falar o português de maneira correta. – Nesse momento, fiquei muito sem jeito, pois era exatamente isso que eu pensava, Julia viu o meu semblante e soltou uma gargalhada o que me deixou ainda mais desconfortavel. — Relaxa, Steph, você está acostumada ao que vê nos filmes, é normal e compreensível. — Minha irmã está certa. – Gui sorriu para mim o que me deixou um pouco mais tranquila, imagina se eu falo algo inapropriado e ele me mata? Realmente não dá para julgar um livro pela capa. — Você também não é o tipo de patricinha que os filmes retratam. – Ju, d
Estava conversando animadamente com Giovanna quando Júlia chegou em sua moto. Ela me pediu desculpa por ter esquecido de passar seu número, e eu disse que estava tudo bem. Ju me passou um capacete e me mandou subir em sua moto, e foi o que eu fiz. Rapidamente chegamos à loja, que era bem grande. Contei toda a minha história a Fabiana, que foi super legal e me deu um emprego. Agradeci muito às duas e voltei para casa animada. Contei a novidade a Carol, que ficou feliz por mim. Pedi a ela que me ensinasse a varrer a casa, e ela me mandou trocar de roupa e pôr algo bem confortável. Então, peguei uma roupa emprestada de Manu, torcendo para que ela não achasse ruim.— Segura a vassoura desse jeito e varre assim. – Carol me dava instruções, e eu me sentia uma idiota, mas ela me tranquilizou, dizendo que é assim mesmo.Depois de quebrar um bibelô, olhei para a sala varrida e me senti orgulhosa. Nem acredito que consegui fazer isso. Carol olhou para mim orgulhosa e me chamou para seu quarto.
Manuella me acordou, e levantei com a maior preguiça do mundo. Fui tomar banho, já de banho tomado e devidamente vestida, Carol preparou o café para nós. Jarbas, Manu e eu nos despedimos e fomos para nossos destinos. Jarbas me ofereceu uma carona, e eu sabia que se aceitasse, ele se atrasaria, já que ainda levaria a Manu.Fui para o ponto de ônibus, que estava repleto de pessoas. Fiquei aguardando até aparecer o ônibus que precisava pegar, e neste momento me arrependi de não ter aceitado a carona oferecida por Jarbas. Só espero que ninguém me reconheça, ou será um grande problema. Agora sei como as sardinhas se sentem dentro da lata, pois me sinto exatamente igual. As pessoas me empurravam ao passar e olhavam para mim irritadas. Assim que chegou o meu ponto, gritei para o motorista parar, mas ele passou direto. Gritei mais uma vez, e uma senhora simpática me disse que eu deveria ter apertado a cigarra. Perguntei a ela o que era isso, e ela me apontou a cordinha. Outra menina olhou par