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Dario passou horas observando sua paciente. Trocou a bolsa de soro e umedeceu seus lábios com o algodão molhado. Ela era bonita para uma militar, admirava-se do motivo de alguém, como ela, ter virado uma.

Com o fim da segunda bolsa, ele a rolou e pôs sob o corpo um tapete descartável higiênico, para cães, para o caso de ainda estar inconsciente quando todo aquele líquido resolvesse sair. Adormeceu, com a pistola em punho, pronto para matá-la, se fosse necessário.

Helena sentia a dor excruciante lhe roer a alma, forçando-a a perceber-se. Algo lhe tampava os olhos, estava viva e aquilo bastava naquele instante. A cabeça doía um inferno e os olhos, mesmo fechados, ardiam. A boca e a garganta secos, algo lhe feria o braço, dolorosamente. Ela gemeu, baixinho.

Dario despertou. A mulher respirava, ofegante, inquieta. Se não estivesse desperta, logo acordaria.

— Me ouve? Me entende? - Ele perguntou, em espanhol, percebia o gesto de cabeça dela, confirmando. Estava desperta. - Qual seu nome? - Ela não o respondeu. "Militar é fod@!" Ele suspirou. - Sou um amigo do deserto. Encontrei você quase morta e machucada. Eu a trouxe ao meu local, está segura aqui, Migra. - Ele disse, suave.

— Dor. - Foi tudo o que discerniu dos lábios dela, em um sussurro quase inaudível.

— Pode se sentar? - Ele se informava do estado dela.

— Não sei. Quero tentar, amigo do deserto. - Ela, dolorosamente, respondeu com um gracejo. Dario a apoiou para que pudesse se sentar. Sentia tontura e cambaleava, mesmo apoiada. - Tudo bem, não force, vou carregar você até a cadeira. Com licença. - Ele a pegou nos braços e a sentou em uma poltrona, cobrindo-a com um lençol, mulheres militares suportavam muita coisa, mas agradeciam quando lhes era dado algum respeito e um pouco de dignidade. - Como está o estômago? Sente náusea? - Ela confirmou.

— Você é médico? - Ela perguntou.

— Não. Um mero habitante do Deserto, Tenente Brown. - Ele respondeu, surpreendendo-a por um breve momento, até que se percebesse. Estava seminua, não enxergava nada e o braço ferido parecia ter sido tratado. Apesar do mal estar, não tinha fome e o braço direito parecia ter um acesso.

— Posso tomar um pouco de água e usar o banheiro? - Ela pediu.

— Sim. Vou levar você. Vai demorar um pouco até sentir firmeza nas pernas. O deserto não a quis, desta vez. - Ele falou. Tinha um timbre de voz agradável e as mãos bastante calejadas. - Sente dor, não sente?

— Muita. Minha cabeça está me matando e meus olhos ardem. - Ela respondeu.

— Um desconforto por vez, Tenente. - Ele a conduziu até o banheiro. - Precisa de ajuda?

— Sim. Obrigada. - Ela respondeu, de imediato. Sentiu as mãos dele tirarem sua calcinha, acomodando-a no assento e, depois, a secando. Ela ainda estava severamente desidratada, a urina tinha a cor de chá preto, mas estava consciente, o que era um avanço. Ele a vestiu a peça no corpo, levando-a de volta para a poltrona. Entregou uma garrafa de água fresca. Para Helena, era a coisa mais deliciosa que havia posto na boca em toda a sua vida, naquele momento. Ela bebeu com gosto.

— Preciso ver seus olhos, Helena. - Ele disse, mas a surpresa dela logo se dissipou, seu nome estava gravado nas alianças que carregava com sua identificação. Ela levou à mão ao peito.

— Onde está minha dog tag? - Ela perguntou, sentindo as mãos grandes dele lhe desvendarem os olhos. Tudo o que via era um borrão, sem forma alguma.

— Estão com suas coisas. Consegue enxergar algo? - Ele percebia as pupilas quase inertes, características de uma queimadura ou de uma cegueira por queimadura.

— Borrões sem forma e nem definição. - Ela respondeu. Tinha o espanhol afiado para uma estadunidense.

— Você fala bem o espanhol. Aprendeu em casa? - Ele, delicadamente, apoiou a nuca dela, posicionando o rosto para o alto. - Vou pingar um pouco de colírio, pode arder um pouco. - Ele anunciou, aplicando a medicação. - A pele do rosto está muito ferida. Vou passar um pouco de pasta d'água. - Ele avisou, suavemente, depositando o gel em seu rosto. Para alguém de mãos tão calejadas, era delicado e gentil. Havia um conforto inexplicável no toque daquelas mãos.

— Não. Aprendi na vida, depois de virar Migra. - Ela respondeu. - Tem mãos boas. Certeza que não é médico?

— Certeza, Tenente. - Ele disse, deixando o riso curto lhe escapar. - Por aqui, até os escorpiões sabem algo sobre cuidar de gente que o deserto não devorou. - Ele respondeu, com um tom divertido. - Como veio parar no meio do nada, Senhora?

— Me perdi em missão. - Ela respondeu, sucinta.

— Vamos supor que eu acredite que uma oficial de patente, alvejada por, pelo menos, quatro tiros, tenha errado a curva e ficado sem seu celular, no meio do deserto. - Ele ironizou, massageando, suave, os olhos fechados dela. Helena sentia um alívio indescritível. Manteve os olhos fechados. - Só pelo exercício criativo.

— Gosto da proposta, amigo do deserto. - Ela sorriu, tinha dentes bonitos, bem alinhados, mas um pouco amarelados, provavelmente, cigarros ou boas quantidades de café.

— Pronto! Tome, analgésico para a cabeça. - Ele entregou o comprimido para ela com outra garrafa de água.

— Vou ficar mal acostumada assim. - Ela gracejou. Parecia se sentir segura.

— Vou preparar algo para que coma. Ficou quanto tempo no deserto? - Dario se orientava.

— Três dias antes de sucumbir. - Ela respondeu, um pouco mais séria. "Precisamos de outras rotas." Dario calculava.

— É bastante tempo, Tenente! - Ele admirou-se daquela façanha. Era, de fato, muito resistente. Ela apenas sorriu. - Vou apagar a luz e deixar a porta entreaberta para que se sinta mais confortável, me chame se sentir que precisa de algo ou de ajuda.

— E como devo chamar você, amigo? - Ela perguntou, ardilosa.

— Amigo está bom, Tenente. - Ele respondeu, esquivo. Aquela era uma mulher forte, bonita e inteligente. As alianças no pescoço davam notícia de ser viúva, a cicatriz, mãe. Ele presumia que havia uma família esperando por ela, em algum lugar além do deserto e da fronteira.

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