Deserto da Fronteira
Deserto da Fronteira
Por: Paula Bolsoni
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DESERTO DE CHIHUAHUA

— Una migra! Una migra! Una migra! Mira! - O coiote apontou para um ponto, no alto da colina, sobre o rochedo, sozinho, com uma arma de grosso calibre no colo.

Dario Garcia estreitou os olhos, a figura estava parada no alto da rocha, inerte. Não parecia fazer mira ou algo assim, aliás, sequer parecia viva.

Ele tratou de instruir os coiotes que trabalhavam para ele e seguiu, perpendicular, em direção à figura agourenta sobre o rochedo. Aproximou-se, devagar, passo após passo, esquivando-se, entre a rala vegetação rasteira do deserto, em seu paramento militar da cor da areia.

"Uma migra, sozinha, mulher?" Ele identificava a silhueta da policial. Dario julgava: ou ela tinha se perdido ou estavam em solo estadunidense. Qualquer hipótese era problemática.

Conforme se aproximava, o contrabandista percebia as nuances. Filetes de sangue seco partiam do nariz; a boca rachada, a pele exposta. Se estivesse viva, aquela criatura miserável, em pesado paramento militar, estaria em um sofrimento indescritível.

Rastejando, Dario observava o distanciamento dos imigrantes e dos coiotes. Esperou até que a luminosidade, o vento quente e a distância do grupo lhe fossem favoráveis.

Aproximou-se o mais devagar e silencioso que pode, como uma serpente, alcançando a coronha do fuzil de assalto que ela carregava. Arma típica da Polícia de Imigração naquelas condições. Sorrateiro, de uma só vez, puxou a arma para si, não encontrando resistência. O corpo da mulher tombou, sem reação, pesado, contra o solo, caindo de lado, sobre a arma. "Ou está morta ou negociando com o anjo." Ele pensou, se aproximando ainda mais, virando o corpo de peito para o alto. Era, de fato, uma mulher. No peito, a identificação: Tenente Brown. H. J.

Dario, calculista, se aproximou do rosto dela, respirava, fracamente, mas não estava nem perto de morrer, ainda que severamente desidratada. Ela estava inconsciente, muito mais, provavelmente, pelo calor intenso do que pela severidade do deserto.

Incrível era como era resistente. "Uma migra desaparecida costuma ter recompensa gorda." Ele ponderou. Abriu o cantil e despejou um pouco de água, já morna, sobre os lábios da policial. Sob os óculos escuros, percebia as queimaduras nítidas de dias de insolação, já lhe formando bolhas na pele, sob os olhos, fundos, escurecidos com a região sob os olhos já inchada. Estava em severo sofrimento. Pelo status, militar de patente, certamente, dias e mais dias.

Dario analisava a situação da Tenente Brown. Estava ferida, para além de sua situação já preocupante, marcas de tiros no colete, um, abaixo da axila oposta da arma, havia tido o azar de raspar no equipamento e se desviar para o braço. A mão, já arroxeada, lhe informava que havia um torniquete em algum ponto daquele braço.

Ele a desarmou. Além da arma maior, duas pistolas, uma do lado esquerdo, na altura do peito; outra, do direito, na cintura. Um pequeno revolver no tornozelo esquerdo e as facas, na cintura esquerda e no tornozelo direito. Sob a jaqueta, duas bolsas: uma de água, completamente esgotada, perfurada pelo que parecia um tiro e outra, no peito, perfurada, com o que parecia ser um kit médico. Nas pernas, cartucheiras com medicação, munição e algum alimento. Era bem preparada e estava perigosamente próxima a uma das rotas que utilizavam para passar com imigrantes e contrabando.

Decidiu retornar à base de operações, definitivamente, ela estava perdida. De carro ou moto eram apenas alguns minutos, a pé e com toda aquela tralha, a informação mudava. A mulher tinha coisa de um metro e setenta de altura. Em boas condições, deveria ser um tipo bonito, de pele trigueira e boa compleição. Certeza era que era resistente. Caminhou, com ela em suas costas, desacordada, como uma mochila, até o abrigo vazio.

Ali, aparentemente, um lugar inóspito e abandonado, a passagem para um bunker, escondida entre pedras, discreta e estrategicamente posicionada, tinha um mínimo de suporte para dar algum alento àquela alma engolida pelo deserto.

Dario repousou a tenente no chão, abrindo o bunker, recolhendo-a e aos equipamentos. Na escuridão, acionou o ar condicionado e os filtros, acendendo as luzes do lugar subterrâneo.

O homem não era inexperiente, desde que sua vida desmoronou, por um ato falho de seu passado, há mais de dez anos, ele se envolveu com aquele pesado jogo logístico da fronteira, ansiando por sentir-se um pouco vivo novamente, quando o deserto adotou sua alma miserável e lhe deu sustento, riqueza e abrigo, fazendo-o esquecer, um pouco, do passado que ele mesmo havia destruído.

Dario despiu a tenente, deixando-a de lingerie de cor de pele e linhas retas, sem qualquer apelo. Havia um torniquete, pesadamente atado, com um curativo frouxo, no braço esquerdo. "Emocionante como uma velha senhora!" Ele ironizou, vendo o contraste entre o bonito corpo da Tenente, esbelto e atlético, resultado de anos de treinamento rigoroso e disciplina militar, e a lingerie horrorosa, que deveria ser confortável. Tinha a pele clara, levemente marcada pelo sol e pelo vento de missões ao ar livre. O cabelo, castanho escuro, preso em um rabo de cavalo, refletia sua praticidade e foco no dever. Pequenas cicatrizes em suas mãos e antebraços contavam histórias de batalhas e desafios superados ao longo de sua carreira. Era tudo conjuntural, mas ele imaginava aquela pequena narrativa da mulher à beira da morte.

Cauteloso, ele limpou o corpo dela, revelando uma cicatriz baixa no abdômen e a perfuração no braço, cuja munição restava quase totalmente encravada. Ele revirou as coisas dela: antisséptico, analgésicos, curativos, tinha um bom arcabouço consigo. Militar de campo, típica. No pescoço, placas de identificação e um par de alianças, gravadas: Herbert e Helena e uma data. "Helena." Ele leu, retirando aquilo de seu pescoço. Zombava-se, brincando mentalmente com dolorosas informações: "Como a Helena de Tróia. Como a minha Helena." Ele preparou a pequena cirurgia. Esterilizou a agulha e o lugar, aquecendo a lâmina de uma das facas dela, com a qual cauterizou o ferimento. A mulher, enfim, reagia, minimamente, aquele extremo de dor, sem, contudo, despertar. "Só Deus sabe o que está passando, gatinha." Ele ponderava, soltando o torniquete e dando os pontos que aquela perfuração exigia. "É um milagre estar viva." Ele analisou a munição. No colete, mais distante, contou três tiros, todos de munição perfurante.

Dario a ligou a uma bolsa de soro e abriu os olhos, delicadamente, pingando colírio. Ela tinha olhos claros, acinzentados. "Uma cor bonita. Minha Helena tinha olhos assim, mais azulados." Ele se lembrava, saudoso. "Como será que ela está? Já deve ser uma mulher. Eu gostaria de de vê-la. Depois do ensino médio e do divórcio, ela deve ter feito algo bom." Dario dava o primeiro gole no gargalo da garrafa de tequila, observando sua paciente.

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